Ben, à esquerda, nasceu em Acra, em 1963. Foi segurança de Pelé entre 2010 e 2018 e hoje vive na capital ganesa, onde dirige a Arslan Afica Security, sua empresa de proteção pessoal

Eu quero segurar a sua mão

Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

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Por quase dez anos fui o guarda-costas do Maior de Todos.
Aqui vão algumas lembranças dos dias mais incríveis da minha vida

Por Ben Brobby

Texto: Christian Carvalho Cruz *

É nesta vila de pescadores chamada Kokrobite, em Accra, que eu reencontro meu amigo Pelé todos os dias. Eu vivo aqui, a alguns passos da praia, desde que voltei de Londres. Um lugar calmo, de areias claras, pessoas simples, bom para caminhar, comprar peixe fresco e tomar um trago. Tenho uma vista ampla do oceano. E de manhã cedo eu gosto de vir até a beirada do mar, molhar meus pés e contemplar a imensidão entre Gana e o Brasil: as marolas levam a minha saudade, a minha tristeza, e trazem de volta as recordações dos melhores anos da minha vida, quando tive a sorte de ser o guarda-costas do Rei do Futebol.

Tudo começou em 2010, na festa de 70 anos dele. Estávamos no Mandarin Oriental Hotel, em Manhattan, e quando o vi pessoalmente pela primeira vez foi algo mágico e perturbador. Eu fiquei fascinado, quase em transe. Também estavam lá o Carlos Alberto, o Giorgio Chinaglia e o pessoal do velho Cosmos. Mas acho que naquele momento, do Bronx à Wall Street, ninguém mexia tanto com o ambiente como o Pelé. De longe eu o observava, ouvia a sua voz poderosa. Uma mística envolvia todo o saguão, algo elevado, e até hoje eu não consigo explicar isso direito. Foi difícil manter a minha discrição e a minha racionalidade, as características profissionais que tinham me levado até aquele emprego.

Eu vinha trabalhando como segurança pessoal do empresário inglês Paul Kemsley, que foi vice-presidente do Tottenham, cuidou da carreira do cantor Boy George, entre outras atividades. Em 2010, o Paul comprou o Cosmos e os direitos da marca Pelé e um dia me chamou à sala dele:

— Ben, que tal ir cuidar do Pelé? Eu preciso de alguém como você pra garantir que ele esteja sempre bem.

O Paul me conhecia fazia seis anos. Acho que ele enxergava no meu jeito uma mistura de suavidade, lealdade e rigor que poderia cair bem no trabalho de guarda-costas do Pelé. Eu nasci em Gana, fui criado por meu avô, um funcionário público muito calmo que gostava de jogar damas, e me mudei pra Londres aos 17 anos. Estudei tecnologia da informação. Mas um dia vi no jornal o anúncio de um curso de segurança pessoal oferecido por ex-militares do exército britânico. Fiz o treinamento de seis semanas, gostei, voltei à faculdade para estudar gerenciamento de riscos e foi assim que entrei no ramo. Eu sempre fui fã de futebol, torcedor do Arsenal, mas jamais imaginei que viveria dias incríveis com o maior de todos os tempos.

Preciso dizer: apesar de mágico, não era um trabalho fácil. Basicamente porque o Pelé era o Pelé, um sujeito adorável, educado, que nunca dizia “não” ou “agora chega”, mesmo se estivesse caindo de cansaço ou a situação, pelo acúmulo de pessoas em volta dele, pudesse se tornar perigosa. Então eu era o cara encarregado de dizer “não” e “agora chega” pelo Pelé. Mas ele não conseguia. Em qualquer lugar do mundo, se visse um grupo de brasileiros se aproximar, podia ser de madrugada, depois de um dia exaustivo de trabalho, me dizia “Pode deixar, Ben. Vamos tirar umas fotos e aí a gente vai embora”. Agora mesmo sou capaz de ouvir a voz dele me dizendo “péra, péra, péra”, para gente parar mais uma vez e ele poder dar mais um autógrafo. O Pelé não resistia a um grupo de brasileiros, principalmente — espero que a Márcia não esteja lendo — se entre eles houvesse uma loira bonita.

Houve apenas uma ocasião em que as coisas realmente ficaram feias. Foi numa convenção de fazendeiros no interior do Brasil. Voamos pra lá em um jatinho particular e quando descemos eu vi que estava tudo caótico. Gente de mais, estrutura de segurança de menos. Assim que o Pelé terminou o trabalho, fomos para um quartinho que tinham montado pra ele tomar um lanche e descansar. Era uma dessas estruturas pré-montadas de metal e madeira. A multidão começou a cercar o local. Eu olhava pra fora e via mais e mais gente chegando. Não dava mais pra gente sair. E eu temia que as pessoas entrassem. Então, por rádio, pedi que o motorista encostasse o carro na parte de trás desse quartinho. Assim que ele chegou, quebrei um pedaço da estrutura com socos e pontapés e tirei o Pelé por ali. Ele me via chutando a parede e dizia “Calma, Ben, não fica nervoso. Calma, Ben”. Foi um sufoco.

Na maioria das vezes, no entanto, tudo corria bem. Eu chegava aos lugares dois ou três dias antes do Pelé e cuidava de todo o planejamento. Por onde ele ia entrar, sair, estudava os trajetos, calculava o tempo dos deslocamentos, essas coisas. Meu trabalho era esse: fazer com que as coisas fluíssem de forma suave, tranquila, para que o Pelé ficasse confortável e que eu não precisasse aparecer mais do que ele. No final do dia, sentávamos para jantar, conversar e contar piadas. Que saudade eu sinto daqueles dias…

O Pelé ganhava muitas garrafas de uísque, relógios, e de vez em quando me dava essas coisas de presente. Também tenho um camisa da Seleção Brasileira autografada por ele, claro. Mas, numa noite em Paris, estávamos indo pro quarto do hotel e ele me deu o maior presentes de todos: gravou um vídeo em que ele canta Despacito pra mim, alterando a letra: “Despacito vamos bailar e o Ben vai ajudar. Vamos Ben, vamos bailar, despacito”. Tenho o vídeo no celular e o revi nesse instante. É um lembrança simples e afetuosa: o Pelé, ao meu lado, rindo ao final de um dia de trabalho.

A propósito, só vi o Pelé triste uma vez. Em fevereiro de 2012 nós estávamos no Gabão, tomando café da manhã, quando o noticiário na TV anunciou a morte da cantora Whitney Houston, nos Estados Unidos. Ele gostava muito da Whitney, contava que ia com ela à discoteca Studio 54, em Nova York. Ao ouvir aquilo e depois ler sobre as circunstâncias em que tinha acontecido, o Pelé se fechou. Passou o resto do dia em silêncio, amuado, muito introspectivo. Me lembrou um pouco o semblante que eu via em seu rosto nos momentos antes de ele pisar num campo de futebol. Qualquer que fosse o motivo, receber uma homenagem, dar o pontapé inicial numa partida amistosa, ou entregar um troféu, nessas horas o Pelé, mesmo depois de décadas aposentado como jogador, estava invariavelmente sério e pensativo.

Afora isso, ele sorria o tempo todo. Às vezes se sentia cansado, pois já era um senhor de mais de 70 anos, e ainda assim mantinha o bom-humor. Nos eventos muito chatos, muito longos, em que os anfitriões vinham a todo momento à mesa dele para tirar foto, apresentar um amigo, interrompendo o jantar, o Pelé cochichava pra mim: “Sabe, Ben, nessas horas eu queria ser o Edson pra tomar o meu café antes de esfriar.” Ele falava numa boa, com um pouco de pesar, mas nunca com raiva. Eu me entristecia, porque meu sonho era poder ajudar o Pelé a tomar o seu café quentinho.

Nos vimos pela última vez em 2018, na Copa da Rússia. E hoje, molhando meus pés no Atlântico, eu penso no meu amigo metido numa encrenca, sem que eu esteja por perto pra cuidar dele: ele no céu tentando tomar o seu café, cercado de pessoas querendo uma foto ou um autógrafo. Marilyn Monroe, John Lennon e Da Vinci são os primeiros da fila.

Até breve, querido Pelé.

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Ben Brobby nasceu em Accra, em 1963. Foi guarda-costas de Pelé entre 2010 e 2018 e hoje vive na capital ganesa, onde dirige a Arslan Africa Security, sua empresa de segurança pessoal

Colaborou Miguel Geiling Cruz

Texto originalmente escrito para a edição de colecionador da revista Placar em homenagem ao Rei

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Christian Carvalho Cruz
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Eu escrevou uns negócio. Reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias.