Em ação no ‘The Voice Brasil’ — Foto: Artur Meninea/Gshow

Mar aberto

Controlador. Jogador. Carrega no celular um dicionário de doenças mentais. Sente um medo de tubarão que o impede de entrar no mar além das canelas. E quase chora por Silvio Santos. Lá vem o Tiago Leifert

Christian Carvalho Cruz
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11 min readDec 5, 2017

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— Chegaí, chegaí.

Terminada a semifinal do The Voice Brasil, numa noite densa e abafada de dezembro no Projac, o Tiago Leifert abre porta do camarim e entra descalçando o sapatênis daquele jeito adolescente: sem parar de caminhar, com a ponta do pé direito pisando o calcanhar do esquerdo, tropeçando. É tudo muito rápido. Em segundos fica também sem o paletó, a camisa, a gravata e a calça, que uma camareira de olhar baixo recolhe do encosto da poltrona e pendura nos cabides. Ele está só de cueca quando me manda essa:

— O que você achou?

É quase uma da manhã e eu demoro a entender. O que eu achei do quê? Daquele sujeito branquelo e sem pelos, de 36 anos, mais alto e mais magro do que a gente vê na TV, com um símbolo do infinito bem grande tatuado na parte interna do braço direito, agora ali seminu na minha frente? Ou daquele garotão que mais cedo, depois de ter comido um bife à cavalo “com o ovo cozido, por favor”, desceu saltitante pelas alamedas sombreadas do Projac carregando uma imensa mochila nas costas como se fosse pro cursinho? Ou o que eu achei daquele apresentador de programa ao vivo, fazendo piadas corrosivas no intervalo e seguro em seus passos sobre o palco, embora fossem uns passos curtos, apertadinhos, como se a calça lhe esmagasse as bolas?

Escolho este último Tiago, o do palco, e, ainda que temendo soar como zombaria, digo a verdade:

— Não me entenda mal, mas vejo você apresentando o programa, interagindo com a plateia, conduzindo o treco todo com tanta naturalidade e… enxergo o Silvio Santos.

O Tiago, que terminava de vestir sua camiseta de liquidação de magazine americano com jeans Diesel e comeria uma tapioca ali mesmo antes de voltar pro seu apê na Barra ao fim de 12 horas de trabalho, por um momento perde aquele eterno risinho irônico e devolve, sério:

— Pô, cara, fiquei emocionado… Esse é o maior elogio que você poderia me fazer. Eu acho o Silvio um gênio. Só duas pessoas me disseram isso até hoje, sabia? A primeira foi o câmera da minha estreia na televisão como repórter de campo improvisado do Desafio ao Galo.

Lá se vão 20 anos. O tradicional futebol de várzea paulistano era transmitido pela TV Gazeta sob o comando de um amigo de infância do pai do Tiago. Ele só tinha 16. Um menino de oitava série. Ao chegar na beirada do campo, lhe deram um microfone, um fone de ouvidos e disseram: “Vai lá”. Ele foi. Quando voltou, ao final da transmissão, o cameraman, espantado com a desenvoltura daquele virgenzinho de TV, chamou: “Escuta, moleque. Eu só conheço um cara capaz de fazer o que você fez hoje, se sentir assim tão dono do pedaço como se fizesse isso desde que nasceu. O Silvio Santos”.

Bem, não foi nesse estilo Silvio Santos que o Tiago reagiu quando ouviu o mais recente “vai lá”. Era agosto, o celular tocou, do outro lado estava a voz grave do Boninho, diretor de núcleo na Globo, seco como só ele sabe ser: “Tiago, você não vai mais fazer o The Voice Kids. Não vai ter tempo. Agora você vai apresentar o Big Brother Brasil”. Ponto. Câmbio. Só isso. “Tá me ouvindo, Tiago?” Ele estava. “Tiago?!”

— Eu tomei um puta susto. Mas ponderei tudo rapidinho. O sapato que eu ia ter pra preencher, o do Pedro Bial, era enorme. Ó a responsa. Mas a estrutura do programa está montadinha há 17 anos. O diretor e os editores têm uma super experiência. Se rolar dúvida eu viro pro lado e pergunto. Não vou me sentir tão sozinho como no Globo Esporte [que ele revolucionou em 2009, criando, editando e apresentando um novo formato que consolidaria a figura do jornalista entertainer na emissora]. E mesmo sem nunca imaginar que chegaria aí… porra, cara… eu me preparei a vida inteira pra isso. Agora, se você me perguntar por que eu, por que me escolheram, não faço a menor ideia.

A crítica de televisão Cristina Padiglione, editora do site Telepadi, faz. Entre as possibilidades de rejuvenescer ou dar um ar mais família ao BBB, vira e mexe marcado por barracos sexuais, ela explica a real: o Tiago foi escolhido porque não é refém do teleprompter, o tal TP, aparelho que permite que qualquer apresentador leia textos previamente escritos olhando para a câmera — quer dizer, sem dar pinta de que está lendo. “É um cara bom de conversa ao vivo. E de conversa com o neto e a vovozinha”, avalia a Cristina. Parece uma trivialidade, mas não é. “A Globo criou muita gente no teleprompter. E morre de medo de perder o controle do conteúdo, do que será dito, o que às vezes acontece.” Âncoras tarimbados vivem deslizando fora do teleprompter. O equipamento é uma gilete: funciona como freio pra uns, mas transforma outros em robôs. “Aí aparece um cara com boa bagagem cultural, vocabulário mais extenso e um entendimento fino do que é fazer televisão. O Tiago é um alívio pra Globo”, define a Cristina.

Fato. Se a televisão no geral — e a Globo em particular — é uma máquina de fazer sonhar, cujos padrões lubrificantes foram definidos lá atrás por Walter Clark e Boni, a impressão que a gente tem é que o Tiago conhece cada parafuso, cada arruela, cada alavanca dessa geringonça. Ele mesmo diz que, embora na velhice deseje ser um “script doctor” (analista de roteiros), “o caminho natural” da sua carreira o levará a se tornar um executivo da firma. E ele até se refere ao trampo na Globo como “missão”, vai vendo:

— Eu sou um obcecado. Estudo, ensaio, decoro, planejo. Chego mais cedo, saio mais tarde. Se é programa ao vivo, quero cercar todas as possibilidades de dar merda. E quero saber como saio delas. Eu monto um plano B com o mesmo cuidado que monto o plano A. Ninguém vai me tirar de um trabalho dizendo que ele tá uma porcaria e que a culpa é minha. Ah, não vai mesmo.

Pois como a Globo, o Tiago prefere ter o controle. Ele é o tipo de sujeito que chega 4 horas antes do check-in e fica “perdido, maluco se anunciarem que vôo terá assentos livres”. Um cara de pouco talvez e muitas certezas. Sem tempo pra arrependimentos. “Não leio ficção. Vejo filmes.” É tanta segurança, auto-confiança e assertividade que dá até um pouco de aflição. Mas ao mesmo tempo ele tem tesão no risco. E eis um paradoxo que fica mais fácil entender se a gente lembra que o Tiago é um jogador compulsivo. Jogador de videogame. Portanto, ele passa os dias querendo zerar o jogo da vida. Só pra depois, sabendo onde ficam as armadilhas, os atalhos, os monstros, bônus e troféus, começar tudo de novo num modo cada vez mais casca-grossa. Porque vencer sempre do mesmo jeito não tem graça. E se algo der errado, “beijo, abraço”, ainda haverá o botão “restart”.

Se bem que a mãe do Tiago, a Leninha, tem outras explicações. Mas antes de te contar isso eu preciso dizer que a Leninha é uma mãe judia e (de ascendência) italiana. Assim você vai sacando o nível de orgulho que ela sente do filho. A Leninha tem certeza que a personalidade dele se forjou com:

1) Muita televisão. “Ele sempre viu bastante, desde pequeno. E eu nunca proibi. Nunca. Aos 3 anos ele gritou pro meu marido: ‘Pai, vai começar a Guerra das Malvinas no Fantástico. Você não quer assistir? Minhas amigas até diziam ‘Nossa, Leninha, você deixa o Tiago ver muita televisão’. O tempo mostrou que eu é que estava certa.

2) Dom natural. “O meu filho é muito talentoso. Quando ele mudou tudo no Globo Esporte e causou uma ciumeira danada e eu assistia ao programa rezando, diziam que ele só estava lá porque meu marido é diretor da Globo. Até parece. Se o Gilberto [o pai, diretor de relações com o mercado da emissora]tivesse tanto poder assim o Tiago estaria é no Jornal Nacional, dividindo a bancada comigo ou com a Marcela, minha outra filha.”

3) Leite materno. “O Tiago mamou no peito até os dois anos. Dei o quanto ele quis. Isso faz toda a diferença.”

Há três meses, depois da mudança de Leninha e Gilberto, os Leifert estão de novo reunidos. Vivem todos num mesmo condomínio onde parece haver mais seguranças do que árvores, na zona sul de São Paulo. Marcela mora no prédio ao lado do dos pais, com o marido e a filha. O Tiago e a mulher, a jornalista Daiana Garbin (eles planejam deixar de ser somente tios este ano), no da frente. À noite, a Leninha espera o filho na varanda, ansiosa por um piscar de lanterna lá adiante, cruzando o pátio. Quando acontece, ela prontamente responde piscando a sua lanterna do lado de cá e então telefona pra saber como foi o dia. Quase todo dia.

Conversar com a Leninha é conhecer um bocado do Tiago, que é uma presença — maciça, real — mesmo quando não está. Eu desembarco do elevador e a Leninha me aguarda com seus olhos miúdos de Tiago, seu sorriso de Tiago, sua loirice de Tiago e umas sandálias havaianas. “Você se incomoda de usar o propé?”, ela me saúda apontando uma caixa de saquinhos descartáveis, desses que a gente põe sobre os sapatos quando visita um doente no hospital. “É uma mania do meu filho que a família inteira adotou. Ele diz que depois que você conhece o banheiro de uma balada nunca mais deveria andar calçado dentro de casa.” Bom, eu não tinha ido a nenhuma balada, mas ponho a parada nos pés. Pro amigo e padrinho de casamento Caio Ribeiro, comentarista de futebol da Globo, esse negócio “é mais uma das frescuras do Tiago”. A outra, um terrível medo de tubarão, uma paranóia, que o impede de entrar no mar além das canelas.

— O Caio me sacaneia, mas eu não entendo esse pavor, cara. É coisa séria. Talvez seja porque um tubarão no oceano é algo que foge do meu controle.

Outra coisa que o Tiago não controla, mas tenta: o futuro. Ele separa uma grande parte do que ganha para emergências hospitalares, “porque na hora que a gente precisa o plano de saúde sempre apita”. E pro cara que no passado namorava vitrine de concessionária Ferrari como passeio de domingo e hoje é dono de um Porsche Macan, “dinheiro serve pra resolver problema e não deixar na mão as pessoas que a gente gosta”. Nesse lance de saúde e hospital, o Tiago não chega a ser um hipocondríaco, mas leva no celular um aplicativo da versão integral do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, o DSM em inglês, que ele conheceu quando estudou jornalismo e psicologia na Universidade de Miami.

— Lá eu li Freud, Jung, Karen Horney, Erich Fromm, B. F. Skinner. Mas não sou psicólogo. Tenho uma noção avançada de certas doenças e sintomas. E, embora eu use a psicologia no meu trabalho, odeio se me pedem conselho. Porque eu falo tudo na cara. E não é qualquer um que aguenta ouvir.

A formação em Miami aconteceu depois de o Tiago ficar bem puto com o curso de jornalismo numa universidade particular de São Paulo. “Não tinha aula do jeito que ele imaginava que deveria ter. Era MST na segunda-feira, PT na terça, democratização dos meios de comunicação na quarta e pau na Globo na quinta e na sexta”, resume o Gilberto Leifert, pai e exímio elaborador de tabelas com o crescimento de menções sobre o filho na internet, mas que se ressente de não curtir um charuto e um vinhozinho com ele, já que o Tiago não bebe nem fuma — nada. Lembra o Gilberto que numa discussão no grupo de e-mails da classe, um professor disse que o Tiago precisava cortar o cordão umbilical com o pai, sair de baixo da sombra dele. Na resposta, uma mistura furibunda de desagravo com declaração de amor ao seu velho, o então garoto de 20 anos bate pesado. Começa lembrando que cordão umbilical “a gente tem é com a mãe” e pergunta ao professor: “Lembra quando eu tentava falar na aula e você dizia que não ia ouvir ‘discursinho imperialista de burguesinho filhinho de papai’? Olha que LIXO. Um professor de comunicação que não deixa os alunos se comunicarem”. O professor comentou que foram “discussões normais de sala de aula”.

Então, depois de dois anos arrastados, o Tiago aproveitou a mudança da namorada para Miami e o apartamento que os Leifert há tempos têm lá e picou a mula pros esteites. Ao ser formar, trabalhou na NBC e, na volta ao Brasil conseguiu emprego na TV Vanguarda, do Boni. Dali foi pro SporTV, Globo Esporte, The Voice, É De Casa e agora o BBB. É claro que o Gilberto ajudou entregando uns currículos dele pros conhecidos, mas você precisa ser um poço de má vontade pra achar que Tiago vem nesse galope dentro do maior grupo de comunicação do país só porque o pai dele trabalha lá. O cara tem as manhas daquilo tudo. Ele é bom, sinto muito. E sabe se mover naquele serpentário. Complementando a Leninha, o Gilberto esmiúça as razões do sucesso dizendo que o Tiago tem:

1) Autenticidade. “Ele não faz tipo. É igualzinho na TV e na rua.”

2) Humildade. “Se, pelo fato de ser famoso, tentam oferecer uma furada na fila de espera do restaurante, ele vira as costas e vai embora.”

3) Bondade. “Quando criança, aquecia tolhas na secadora de roupas pra que a irmã com pneumonia não sentisse frio ao sair do banho.”

E assim voltamos àquela noite densa e abafada em que achei o Tiago parecido com o Silvio Santos. Saí do camarim tentando deduzir qual o tamanho dele dentro da Globo hoje. Em apenas oito anos o cara saiu do Globo Esporte para apresentar o BBB — um programa que a gente pode curtir ou não, mas está no ar desde 2000 com aquele monte de patrocinadores pesos-pesados. Então, eu descia as alamedas agora escuras do Projac me perguntando se o Tiago já é maior que o Luciano Huck, por exemplo. E naquele lugar, meu chapa, sabe como é: as paredes têm ouvidos e bocas também. E uma parede me explicou que não é bem por aí. “O que mede o brilho das estrelas aqui é o faturamento, grana. O Huck tá há mais tempo no céu, é um craque no network pessoal e comercial, traz muito dinheiro”. (Tem 10 milhões de seguidores do Instagram e 16 milhões de curtidas no Facebook, só pra ajudar a dimensionar.)O Tiago [1 milhão no Instagram e 500 mil no Facebook] é um jornalista alçado ao entretenimento e tem o pai trabalhando na área de publicidade. A transição, embora ele a faça com bastante competência, é mais complicada, pois ele não gosta de misturar as coisas. Então, o Tiago ainda é menor que o Huck.”

Como numa estilingada, esse raciocínio me joga de volta ao nosso almoço de bife à cavalo com o ovo cozido, do qual o Tiago saiu meio correndo para encarar um monte de reuniões, gravações, ensaios e o escambau até a apresentação do The Voice, horas depois. Naquele momento, jogando nas costas a mochila surrada em que carrega roupas, tablet e até o videogame, ele foi embora falando mais com ele mesmo do que comigo:

— Outro dia eu tava fazendo Mirasol x Catanduvense pelo Campeonato Paulista e levando cusparada da torcida na cabeça… Até que tô bem, vai…

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Christian Carvalho Cruz

Eu escrevo reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias