Lorca em sua casa, na zona sul de São Paulo (foto: Christian C. Cruz)

O bailarino da fotografia

German Lorca faz 95 anos de idade, 70 de fotografia. E continua dançando

Christian Carvalho Cruz
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5 min readDec 6, 2017

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Um crítico disse uma vez que fotografia é luta. Confronto árduo e direto com o visível. German Lorca sabe disso. E sempre vence a briga. Talvez porque fotografe não como quem peleja mas como quem tira a imagem pra dançar. Leve, despretensioso, embora conhecendo cada canto do salão e os passos exatos da valsa, ele vai fabricando cenas cheias de harmonia, provocação. Vai transformando o mais prosaico cotidiano em beleza. No português cafona em voga dir-se-ia que o Lorca é um bamba. E ele riria.

O bailarino da fotografia brasileira acaba de fazer 95 anos, no dia 28 de maio. Isso mesmo: 95 anos de idade. 70 de fotografia. E dançando. Em fevereiro, fotografou com celular pela primeira vez, para uma exposição no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Fez retratos de amigos e conhecidos. “Usar o celular foi fácil. Coloquei num tripé, ia batendo papo e tchum, tchum, tchum, disparava no controle remoto”, conta. “Difícil foi fotografar o Amyr Klink, meu vizinho. Ele não sorri. Esse camarada só dorme três horas por noite”, lamentou, balançando a cabeça.

Emanuel Araújo fotografado com celular: ‘Tchum, tchum, tchum”

O Lorca dorme mais, umas oito. Mas tem o sono agitado por dois pensamentos insistentes. Um é antigo, nunca o deixou desde que trocou a carreira de contador pela fotografia, nos anos 40: “Passo o tempo todo pensando em como posso fotografar isso ou aquilo”. O outro é mais recente: o esgotamento da velhice. “Me assusta perder a memória. Eu vivo dela. Vejo as fotografias, os quadros e lembro dos amigos, das situações”, ele diz, num gesto amplo de abraço a todas aquelas recordações penduradas nas paredes da sala da sua casa, na zona sul paulistana.

Passava um pouco das 11h da manhã. De bermuda florida e camisa de botão, o Lorca ouvia Mozart e lia o jornal. Pediu licença para ir “lá dentro vestir algo mais decente” e sumiu no corredor com a coleção de pratos de porcelana de sua mulher. Maria Isabel morreu em 2010 e desde então o Lorca mora sozinho. Àquela altura ele já tinha dado a sua caminhada diária de meia hora pelo quintal e definido o menu do almoço (que quase todos os dias ele mesmo prepara mas desta vez estava a cargo da Adriana, que vem duas vezes por semana): salada de alface, tomate e pepino, macarrão, asinhas de frango fritas e vinho tinto catalão servido no copo de uísque.

Tudo parece ser muito simples pro Lorca. Num catálogo, ele mostra fotografias de 2014 que fez ali mesmo, naquela sala, numa semana de gripe forte. Formas, luz e sombras dos móveis no chão. Intrigantes, lindas. “São fotos simples. Mas a turma gosta. Vendi uma porção”, ele ri, maroto. A turma gosta e paga bem. Em outubro do ano passado, a todo-poderosa Sarah Hermanson Meister, curadora de fotografia do MoMA, de Nova York, veio a São Paulo para adquirir ampliações vintage do Lorca para o museu. Escolheu quatro e deixou um cheque de US$ 40 mil.

— E aquela fotografia do alemão Andreas Gursky, Lorca? “Reno II”, uma das mais caras da história. O que você acha dela?

— Não conheço. Quanto custou?

— US$ 4,3 milhões

— Cacilda! Tem ela aí pra eu ver?

Reno II, de Andreas Gursky: “Cacilda!”

A cena monótona de Gursky, formada por tiras uniformes de céu, rio, grama e rua, surge na tela do celular. O Lorca a examina com minúcia e reage de duas maneiras. Primeiro levanta os olhos e apenas sorri maliciosamente outra vez. Depois, com as mãos sobre a tela, num gesto típico dos fotógrafos, reenquandra a imagem e decreta: “Tirando um pouco desse céu, olha aqui, ficaria melhor”.

Um jeito de entender o Lorca é ver as cópias das fotografias dele. Tem fotógrafo que gosta de imagens contrastadas, duras. É gente de personalidade forte, sem muito jogo de cintura, brava até. “Outros preferem ver todos os tons de cinza, a suavidade das gradações entre o preto e branco. Esses, como o Lorca, têm a alma leve de criança”, conta a laboratorista Rosângela Andrade, que há 15 anos amplia os negativos do Lorca. E se você perguntar que colegas ele mais admira os nomes, mestres dos meios tons como ele, estarão na ponta da língua. Apenas dois: o formalista cearense Chico Albuquerque (1917–2000), “pelo perfeccionismo técnico”, e o porra-louca baiano Mario Cravo Neto (1947–2009), “pela ousadia e criatividade”.

A tarde avança. Como o disparador sequencial da câmera o Lorca vai metralhando minhas perguntas. Ideia de felicidade: “Sempre fui trabalhador, nunca tive tempo de pensar nisso”. Uma tristeza: “Bem, eu sou corintiano, às vezes acontece”. Um arrependimento: “Vendi um Volpi muito barato”. Fotografia: “É tanto amor que uma vez, enciumada, a Maria Isabel tacou a minha Leica no chão”. O que você fez? “Comprei outra, oras.” E como é ter 95 anos? “Quando eu tinha 13 quase morri afogado no rio Tietê. Fui nadar, perdi o pé, engoli água e, enquanto afundava, a minha vida inteira até ali explodiu nos meus olhos como se fosse um flash. A pobreza no Brás, onde nasci, meus pais, irmãos, primos, o grupo escolar. Na última hora consegui agarrar o capim na margem, me salvei e toquei adiante. Ter 95 é isso. É como sobreviver a um afogamento. A gente sai do rio e não olha pra trás”.

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Christian Carvalho Cruz

Eu escrevo reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias