Fotografias de Pedro Lobo no livro Not Yet (Editora Documenta, 2020)

O homem é o lobo do homem

Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

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Portela do Fojo era para ser uma insignificância. Um quase nada de casas com muros baixos e ruas vazias ao entardecer que cruzaríamos voltando de Pampilhosa da Serra para nosso hotel em Figueiró dos Vinhos. O vento gelado meneava os pinheiros e, nem por isso, cogitamos encostar para tomar um café. O lugarejo seria só uma ponte, nada mais que uma ponte entre o dia poeirento na estrada e um banho quente.

Mas ao pé de uma colina, já na saída da cidade, havia um terreno baldio. No terreno, restos de um parque de diversões com suas ferrugens, podres e descascados se misturando ao matagal. E nos restos do parque de diversões abandonado no centro geográfico do Portugal cavo e vagaroso, uma decisiva interpretação da obra de Pedro Lobo, dada por ele mesmo: “Eu não consigo não fazer essas fotos. Amanhã isso pode ter sumido. E a minha percepção é que tudo o que eu admiro desaparece”, ele disse, saltando do carro com a câmera e a ansiedade a tiracolo.

Pedro admira as ferrugens, os podres, os descascados. Dos objetos, dos lugares e das pessoas. Fotografa-os com a intensidade brutal e delicada de sua personalidade. Por isso estávamos ali. Durante três dias rodamos setecentos quilômetros pela região portuguesa onde ele tinha fotografado seu trabalho mais recente: os incêndios florestais de 2017 e 2018. Melhor dizendo, o rastro de destruição e tragédia deixado por eles.

Um ano depois de contido o fogaréu, Pedro retornava a esse Portugal de eucaliptais devastados e vidas perdidas para rever, repensar, refotografar e, como gosta de repetir, perambular. “Nem todos que perambulam estão perdidos”, ele havia me dito, citando Tolkien, ao partirmos de sua casa no Alentejo, com a opção “evitar rodovias” acionada no GPS. Um dia antes, confabulávamos sobre este livro, exposições e influências literárias, quando Pedro afirmou, olhando a imensa fotografia de um velho crânio humano pendurada na parede de seu ateliê: “Quem só passa pelo meu trabalho não entende. Não é para criança. Eu pego pesado.”

Pega mesmo. Nestes tempos em que a memória virou bugiganga chinesa comprada em loja de suvenir, a fotografia do Pedro é um grito inconveniente. Há anos o seu percurso artístico está assentado sobre ruínas, catástrofes, desmoronamentos e decrepitude. Começou nos anos 2000 com uma série de imagens em grande formato feitas em favelas. Passou por cadeias, prostíbulos, igrejas, pedreiras, o Alentejo, símbolo do Portugal arcaico que vai se perdendo, e agora o fogo. Tudo fotografado com reverência de arquiteto, mergulho de etnólogo e certa aflição de quem, na beira do precipício, encara a finitude. Junto disso, como motivação e consequência, a precariedade de uma vida em trânsito com mais mares do que portos.

Pedro nasceu no Rio, mas passou a primeira infância em Budapeste, onde o pai foi trabalhar. Viveu em São Paulo, Nova Friburgo, Petrópolis, Cromwell, Boston, Nova York. E afora os três meses de intercâmbio no colegial vividos com uma família americana estruturada e rotineira, a sensação foi sempre de deslocamento e tormenta. “A verdade é que me sinto estrangeiro. Com parentes, amigos, comigo mesmo”, resigna-se.

Pedro se explica de fora para dentro: “Eu trabalho com os esquecidos, os malditos, os apodrecidos. Não para preservar o que está fodido, e sim as histórias que aconteceram antes do abandono. Assim eu igualo a importância das coisas: o podre e o nobre”. Um jogo de paradoxos. A destruição como forja da permanência. A ruína como vislumbre do que é vivo na morte, diria Walter Benjamin. Pedro continua: “No Carandiru, por exemplo, eu podia retratar o prisioneiro na cela. Ok, seria bonito. Mas meu assunto era outro. Era o que sobrou de humanidade naquele cara e como. Por isso olhei para os desenhos nas paredes, os objetos, a delicadeza possível ali dentro. As coisas bonitas merecem ficar, não serem desprezadas. Na nossa era de mass information, a memória vai sendo soterrada sob uma avalanche de imagens. Nunca o mundo foi tão registrado e tão esquecido”.

É uma análise coerente de um artista pleno em seu fazer. Porém incompleta. Há uma explicação de dentro para fora acerca do trabalho do Pedro. Ele pode evitá-la ou mesmo rejeitá-la, mas ela está lá. E acaba emergindo num parque de diversões abandonado em Portela do Fojo. “Tudo o que eu admiro desaparece”, ele disse naquela tarde, quando anotei mais algumas palavras dele em meu caderno: “Que achado!” “Isso é o máximo!” “Imagina quantas crianças brincaram nisso!” Em seguida, apontei com meus garranchos: “Parece um menino no parquinho com o pai. É tudo tão claro agora”.

Em 1981, o pai do Pedro sumiu. Ex-quadro profissional do Partido Comunista Brasileiro, depois publicitário de sucesso e fazendeiro falido, Demósthenes da Silveira Lobo partiu sem conversar com família, sem deixar carta, bilhete, despedida ou aviso. Nada. Arrumou a mala, foi embora, desapareceu. Pedro tinha 27 anos. Desde então e até hoje, aos 65, essa ferrugem na alma é o que o faz perambular sem se perder e perder-se sem chegar ao fim, porque sua busca será infinita. “Passei anos olhando pelo retrovisor onde quer que eu estivesse. Se visse no carro de trás uma cabeça grisalha meio inclinada, um gesto característico de meu pai, eu freava e esperava o carro passar por mim para verificar se era ele ou não. Isso é uma merda de vida. Uma pessoa que faz isso mata você da vida dela. Ela não se suicida. Ela te suicida”, diz.

Pedro, então, fotografa o seu desmoronamento, a sua corrosão particular. E ele encara essa dilaceração com volúpia e dor para retornar das cinzas com uma produção cuja potência está, além da estética, na rejeição feroz ao senso comum. Se o jeito “mais fácil” de lidar com isso seria tratar do próprio descarte para denunciar a sociedade de consumo que usa e joga fora, Pedro caminha pela mão contrária: enobrece o “lixo” do mundo para se vingar do abandono e lamber as feridas. Talvez por isso prefira Garrincha a Pelé. O torto, o estragado, o inviável que amansava a aridez da vida com ingenuidade infantil e muitas biritas ao Apolo negro entronizado no reino da perfeição.

Muitas vezes, a ruína do Pedro não foi apenas contemplada e fotografada. Foi vivida com o desespero e a violência de um pássaro que se esfola nas grades da gaiola. Até que a vinda a Portugal, em 2004, parece ter lhe aberto a portinhola. Em Borba, cidadezinha luminosa e labiríntica, onde vive com a mulher, Patrícia Telles, Pedro alcançou tranquilidade para trabalhar, enxergar a beleza e viver sua calcinação inextinguível sem se debater. Ou debatendo-se menos. “O trabalho do Pedro é a sua redenção, com tudo o que ele tem de melhor e pior. Suas dores, sua intensidade e sua generosidade”, resume Patrícia, uma historiadora da arte com visão privilegiada do artista.

Quando nos conhecemos, Pedro me disse que tinha lido textos meus e ficado assustado. O trabalho dele era mais profundo do que a minha redação “engraçadinha” poderia atingir. Depois, detonou as minhas fotografias sem um pingo de misericórdia — no que tinha total razão. Mas aos poucos, ao longo de animados cafés da manhã em sua varanda em Borba, ou em perambulações pela paisagem incendiada no Portugal central, fomos nos entendendo. Na minha partida, ele inventou uma pressa incomum para ir ao dentista. Não queria ficar para despedidas alongadas. Trocamos um aperto de mãos protocolar sem palavras desnecessárias e foi tudo. Pude vê-lo dobrar a esquina, de chapéu panamá e puxado por seu cãozinho Pancho. E fiquei com a impressão que retumbava nele a frase decisiva transformada em sina: “Tudo o que eu admiro desaparece”.

Texto originalmente publicado no livro Not Yet, do fotógrafo Pedro Lobo
Editora Documenta
Apresentação Rosely Nakagawa
Tradução: Ricardo Sternberg

Para saber mais ou adquirir o livro: https://www.sistemasolar.pt/pt/produto/521/not-yet/

Para conhecer melhor o trabalho de Pedro Lobo:
https://pedrolobofoto.com

Vídeo do debate de lançamento do livro:
https://www.youtube.com/watch?v=wzAsOie0bUQ

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Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

Eu escrevou uns negócio. Reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias.