O rei do gozo

Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz
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6 min readNov 10, 2022

A gloriosa aposentadoria do touro Sherlock

Não fosse um detalhe, coisinha besta de nada nesses tempos em que produtividade virou felicidade, o touro Sherlock estaria com a vida mansa. Célebre, idolatrado, admirado por sua excelsa contribuição à pecuária brasileira, morando num cercado só dele repleto de árvores sombrosas, com pasto fresco, ração e água à vontade, o que mais ele poderia desejar na doce vida de aposentado em Uberaba, Minas Gerais? Não que o tenham visto pelos cantos ruminando a esse respeito, mas, depois de tanto, uma companheira viria bem a calhar. Pois esse guerreiro da inseminação artificial de gado de corte se despediu do seu trabalho baseado em sexo sem uma mísera cópula real no currículo.

Por nove anos, Sherlock deu duro numa central de coleta e venda de esperma bovino. Forneceu 540.000 doses de sêmen, que foram vendidas a pecuaristas no Brasil e no exterior e geraram mais de 300.000 filhos e filhas, hoje pastando em 1.000 rebanhos de norte a sul do país e também no Paraguai, na Bolívia e na Colômbia. Seu proprietário, Luciano Borges, há 40 anos no ramo de melhoramento genético de gado nelore em seu Rancho da Matinha, em Uberaba, diz que desconhece outro touro que tenha permanecido esse tempo todo “produzindo”. A média é de seis anos de serviço. Mas Sherlock sempre foi mais que um funcionário padrão.

Ele tinha um ano e meio quando Borges o mandou para a Central ABS, uma multinacional anglo-americana situada na cidade vizinha de Delta, também em Minas. Ali, três vezes por semana, Sherlock era conduzido à área de coleta, onde uma vaca condicionada ao trabalho o aguardava. Depois de ter seu prepúcio higienizado por um funcionário, ele se insinuava em preliminares meio bruscas, com fungadas, cabeçadas e lambidas, montava seu corpanzil de 1 tonelada na vaca e… Bom, aí vinha a parte para a qual um dia haverá de existir alguma reparação, não é possível: na cara do gol, a centímetros da glória, Sherlock tinha seu pênis desviado (sim, aquele mesmo funcionário) para dentro de uma vagina artificial. Um mero tubo de plástico revestido de látex macio, aquecido a 37 graus e com um coletor no fundo — era ali, na mais sem graça imitação das partes íntimas de uma fêmea, que Sherlock depositava até a última gota da sua sina.

Normalmente, um touro nelore no auge produz de 300 a 500 doses de sêmen por dia. Sherlock produzia 900, às vezes 1.000, chegando a 1.500 em manhãs descansadas e inspiradas. São de 5 a 8 mililitros por ejaculação. Esse volume é diluído em doses únicas de 0,25 mililitro cada, que então são congeladas e armazenadas em nitrogênio líquido a 196 graus Celsius negativos. Uma dose de sêmen bovino faz uma inseminação e é vendida por cerca de R$ 50. Noves fora a discrição mineira nessas horas e a inflação do período, estima-se que os esforços de Sherlock tenham rendido mais de R$ 20 milhões em nove anos de labor — sem contar as 8.000 doses que ele deixou no freezer ao tirar o time de campo, em junho. Na praxe do setor, os proprietários que levam seus touros para produzir em centrais de esperma recebem royalties de 20% a 30%.

Mas potência não é tudo no ambiente corporativo dos bovinos de alta performance. O que fazia de Sherlock um Jeff Bezos nos cascos era, digamos, mais jeito que força. “Do ponto de vista genético, a principal característica dele era gerar, de maneira muito padronizada, descendentes com altíssima eficiência alimentar”, diz o zootecnista Arthur Vieira, coordenador de produto corte na Central ABS. “Isso quer dizer que os filhos do Sherlock ganham mais peso comendo menos.” É o Santo Graal dos frigoríficos, um Eldorado da picanha maturada. Ou, como define Vieira, Sherlock foi uma “Ferrari que rodava 20 quilômetros com 1 litro de gasolina, um sonho”. Foi também um trabalhador extremamente saudável e manso — e isso tem peso na lista de láureas do campeão: muita saúde e pouca agressividade significam menos gastos com veterinários, remédios, menos brigas com outros machos e menos peões pra cuidar dele. “Eu fui contratado junto com o Sherlock, em 2014. Acompanhei toda a carreira dele e nunca o vi agressivo ou doente um dia sequer”, recorda Vieira.

Até que chegou o dia em que Sherlock foi chamado no RH, esvaziou as gavetas e deixou a firma. Tudo muito profissional, pois são apenas negócios. Segundo Vieira, é natural que os índices genéticos de touros produtores de sêmen declinem conforme a idade avança. Com Sherlock, que aguentou firme três anos além da média, não seria diferente. Contudo, trata-se de um iluminado: o garanhão de Uberaba deixou uma leva de descendentes tão bons e até melhores do que ele. Há pelo menos 70 filhos, netos e bisnetos de Sherlock batendo cartão em centrais de esperma atualmente. Todos eles honrando e dando seguimento à combinação perfeita de eficiência, mansidão e lucros que o patriarca legou ao mundo.

“Você vê como são as coisas? Um ser vivo transformado em máquina de imprimir dinheiro. É a objetificação da vida em prol do acúmulo de capital”, pasma-se o professor Francisco Garcia Figueiredo, coordenador do Núcleo de Justiça Animal na Universidade Federal da Paraíba. “Será que essa era a vontade do touro em questão?”, ele pergunta. Em 2018, a Assembléia Legislativa paraibana transformou em lei um projeto de Figueiredo: o Código de Direito e Bem-Estar Animal, que garantiu a todos os bichos, em âmbito estadual, “o direito de ter suas existências física e psíquica respeitadas” e determinou que “não serão impostas aos animais condições reprodutivas artificiais que desrespeitem seus respectivos ciclos biológicos naturais”. Noutras palavras, proibia a inseminação artificial na Paraíba. De lá pra cá, mais da metade da lei foi questionada judicialmente. Em 2019, acolhendo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Associação Brasileira de Inseminação Artificial, o Supremo Tribunal Federal suspendeu o dispositivo que vedava a reprodução artificial.

Figueiredo, que se lançou à militância pela causa animal depois de um chamado espiritual, não encarou como derrota. Para ele, o debate está na mesa e não pode mais ser ignorado. O professor conta que baseou seu projeto na Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, de 7 de julho de 2012. Naquele dia, um grupo de 26 PhDs capitaneados pelo neurocientista canadense Philip Low, então pesquisador da Universidade Stanford e do Massachusetts Institute of Technology, o MIT, chacoalhou a comunidade acadêmica com um documento que trazia uma afirmação inédita e inconveniente: todos os mamíferos, todas as aves e até alguns moluscos, como o polvo, têm consciência. “Eles possuem estruturas nervosas que produzem consciência. Isso quer dizer que sofrem”, disse Low na ocasião, cogitando até abrir mão de sua tara por queijos e virar vegano. Segundo ele, existem diferentes tipos de consciência, mas a habilidade de sentir dor e prazer em mamíferos e seres humanos é muito semelhante.

E Sherlock com isso? Para Figueiredo, “um animal escravizado que não pôde exteriorizar sua libido livremente”. Então, que ao menos agora, na aposentadoria, não lhe condenem ao celibato eterno. Do Rancho da Matinha, casa de Sherlock, a veterinária Rafaela Kava pede calma. Primeiro, diz ela, que sexo não é o objetivo principal dos bovinos. “Eles passam 70% do tempo se alimentando e ruminando”, explica. Mas, como Sherlock marcou a história da pecuária nacional e acabou se condicionando a ejacular, ejacular e ejacular, ter a companhia permanente de uma fêmea em seu piquete sombreado não está fora de cogitação. “Pra ele não ficar estressado”, resume Rafaela. A doutora calcula que Sherlock tenha de cinco a oito anos de vida pela frente. Quando ele vier a faltar, será o primeiro touro do Rancho da Matinha a ganhar um mausoléu na propriedade. No que vai escrito na lápide, ninguém ainda pensou. Deixo, pois, uma sugestão ordinária: “Esse gozou”.

Colaboração para a revista piauí | nov. 2022

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Christian Carvalho Cruz
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