Acredite, há estratégia nisso aí. (Imagem: Reprodução)

Varre, varre, vassourinha

Nasce a primeira pista de curling da América latina

Christian C Cruz
Published in
6 min readMay 1, 2020

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O manauara Márcio Cerquinho tinha acabado de chegar de Vancouver, Canadá, onde vive há seis anos. Era domingo, o último de janeiro, e ele percorreu com inusual sossego toda a extensão de uma Marginal Pinheiros sem trânsito, saindo do aeroporto de Guarulhos. Os 16 graus da madrugada ainda marcavam a manhã de São Paulo com uma brisa leve e esperançosa. Mas, ao adentrar o antigo depósito de um hipermercado pros lados da Ponte do Morumbi, na zona sul, Cerquinho se sentiu como Paulo Coelho na margem do rio Piedra: quis sentar e chorar. Seu novo local de trabalho era um amontoado de terra e entulho que precisaria ficar lisinho e congelado em três semanas. Precisaria se tornar a primeira pista de curling da América Latina.

O curling é aquela modalidade esportiva cantada em verso e melodia pelos pagodeiros do grupo Molejo. “Diga aonde você vai, que eu vou varrendo. Vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo.” Também chamado de “esporte da vassourinha” ou “jogo da chaleirinha”, dependendo do nível de escárnio de quem fala. Criado na Escócia no século XVI, consiste em deslizar por uma pista congelada pedras de granito de 20 quilos e formato que lembra o de uma chaleira. Com o bastão parecido com uma vassoura, os competidores esfregam o gelo — não para enxugá-lo, mas para esquentá-lo, derretê-lo — e assim tentam direcionar a trajetória das pedras. Vence quem põe mais pedras perto do centro do alvo, batendo e expulsando as pedras do adversário se for preciso. Bem, é mais complexo do que isso — há anos, por exemplo, dois pesquisadores, o canadense Mark Shegelski e o sueco Harald Nyberg, discutem em artigos científicos a abstrusa dinâmica das curvas que a pedra faz. Trata-se de um jogo de estratégia (“o xadrez no gelo”) que, dizem, perderia metade da graça sem tradição de tomar cerveja no intervalo e no final das partidas — com os vencedores sempre pagando a conta. Em Campeonatos Mundiais ou Jogos Olímpicos de Inverno, a prudência manda que anotem os resultados, quem deve para quem, e só ao final do torneio se dirijam ao bar para efetivar a bebedeira.

Mas quantos são, onde vivem, o que comem e como se reproduzem os brasileiros jogadores de curling? A primeira parte da pergunta é mais fácil que escorregar no gelo: eles totalizam cinquenta, se desconsiderarmos algum improvável antissocial que pratica o esporte escondido por aí. Vinte são mulheres. Trinta e seis estão filiados à Confederação Brasileira de Desportos no Gelo, a CBDG. Todos os cinquenta se falam por um grupo de Facebook e nenhum mora no Brasil. Um vive na Coreia do Sul, três na Suíça e o restante no Canadá, a maior potência da modalidade.

Cerquinho, que completa 40 anos em junho, é da turma canadense e o único jogador da seleção brasileira (sim, existe uma), ele se orgulha, a viver só do curling. Dá aulas, faz transmissão de partidas pela internet para a federação de Vancouver e é ice maker. Foi nessa condição de fazedor de gelo especialista em pistas de curling que ele desembarcou em São Paulo. “Hotel?! Tô morando aqui mesmo”, ele ri, de braços abertos, no galpão de 2.500 metros quadrados que abrigará o Maracanã do curling brasileiro. “O maior inconveniente é ficar de pés úmidos até acertarmos o ponto do gelo, mas isso eu resolvi comprando três pares de tênis e uns trinta de meias. Molhou, eu troco.”

Originalmente um programador de softwares que foi tentar a sorte no Canadá e ficou, Cerquinho descobriu no curling um jeito de lidar com seu déficit de atenção. A seleção brasileira tem equipes na quatro categorias do curling (masculina, feminina, duplas mistas e equipes mistas) e ocupa posições entre o 27º e o 38º lugares no ranking mundial. Contudo, sobre o futuro do curling entre nós, Cerquinho fala com a segurança de um missionário: “Brasil é bunda, bola e MMA. Com as pistas oficiais permanentes no país, formaremos a geração que em dez anos levará o curling nacional a sua primeira Olimpíada”. A projeto da pista é dele e do advogado Sérgio Mitsuo Vilela, também jogador da seleção e diretor da CBDG.

Por falta de material apropriado, algumas adaptações estruturais precisaram ser feitas no projeto de São Paulo. Em geral, os canos de alumínio resfriados, sobre os quais o gelo se forma, correm no sentido longitudinal das pistas. Com 45 metros de comprimento e uma polegada de diâmetro, são instalados a cinco centímetros uns dos outros. Aqui, sem encontrar um fornecedor de canos com essas medidas, Cerquinho usou artefatos menores, de cinco metros, no sentido perpendicular. Deu certo, embora tenham sido necessários 1.800 canos em vez dos 300 previstos inicialmente. Em meados de fevereiro a pista já estava funcional. Seguindo as normas da modalidade, a temperatura do gelo era de -5 graus Celsius e a umidade relativa do ar, em 20%, atingida graças à instalação de um mastodôntico desumidificador de shopping center.

Na realidade, Cerquinho não fez propriamente uma pista, mas três de 15 m x 45 m cada, uma colada na outra. Elas integram um complexo batizado de Arena Ice Brasil, que tem ainda uma quadra de hóquei e pista de patinação, um bar, uma loja de equipamentos esportivos e um mezanino que funcionará como coworking. Foi aberto em janeiro com investimentos de 2,5 milhões de reais. Um quarto da verba veio CBDG — que há cinco anos, para fazer caixa, decidiu que os atletas bancariam suas próprias despesas em competições internacionais. Metade veio da Federação Mundial de Curling, a WCF, já há algum tempo entusiasmada com o interesse dos brasileiros pelo esporte. “O Brasil gerou a quinta maior audiência da modalidade na tevê durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2018, em PyeongChang, na Coreia do Sul. Só ficou atrás do Canadá, da Suíça, da Suécia e dos Estados Unidos”, diz Mitsuo Vilela, sem informar o número exato de telespectadores. Diretor de um banco suíço, morador de Zurique e integrante do recém-formado comitê da WCF que desenhará o futuro do curling no mundo, ele revela a fonte dos 25% restantes da quantia que financiará a arena paulistana: “O bolso de alguns loucos como eu.”

A loucura de Mitsuo Vilela começou em 2010, quando ele ainda vivia em São Paulo. Pela televisão, soube que a Neutrogena, marca de cosméticos pertencente à Johnson & Johnson, estava promovendo uma ação de marketing que improvisava por dez dias uma pista de curling no rinque de patinação do Shopping Eldorado. “Eu nunca tinha ouvido falar do esporte, mas fui até lá e fiquei seis horas na fila para jogar. Lancei duas pedras e nenhuma deslizou mais do que três metros. Mesmo assim, achei incrível. E aqui estou agora, na porta do hospício”, brinca o executivo, numa conversa por telefone. Ele e os demais investidores acreditam que o empreendimento atrairá principalmente os estudantes de colégios internacionais, cujos pais têm algum contato com esportes de inverno.

Naquela mesma tarde de fevereiro, o ice maker Cerquinho experimentava pela primeira vez a nova pista no Morumbi, prontinha em três semanas. Em maio, ela receberá a quinta edição do quinto Campeonato Brasileiro de Curling — o primeiro disputado nessa terra de bunda, bola e MMA (as anteriores ocorreram no Canadá). Cerquinho, que não deixava o complexo nem para almoçar, me mandou um vídeo do test drive. Dizia-se exausto, com frio e contava ter trocado de meias três vezes só na parte da manhã. Mas estava confiante. Ele vestia um casaco para neve amarelo da seleção, na mão direita portava a vassourinha e na esquerda, a chaleirinha. Agachado rente ao chão, deslizava, deslizava, deslizava como se acariciasse a pista. E do Apocalipse inicial parecia enfim ter atingido o Gênesis: “Da terra vieste, mas a ela não retornarás. Virarás gelo!”, escreveu na mensagem.

Publicado originalmente na revista piauí, em março de 2020

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Christian Carvalho Cruz
Christian C Cruz

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