disco é frescura?

o papel da reprodução e do suporte na era do acesso instantâneo à informação

stêvz
#chupamangazine
11 min readFeb 6, 2020

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Ainda nesse tema, o pianista e crítico Charles Rosen refletia, em seu livro The Future of Music, de 2001:

em nossa época, a música popular inverte a relação clássica entre composição e execução: a execução se tornou tudo. (…) Nos grandes exemplos de música popular de nosso século — aqueles que já chegaram a um status de clássicos, como as grandes improvisações de jazz de músicos como Art Tatum ou Miles Davis — , a composição original passa a ser identificada à performance. (…) Tatum não realiza a composição de Porter, ele compõe uma obra inteiramente nova na qual a composição de base serve como um componente estrutural. No começo do século 20, as formas mais avançadas de música popular eram eventos essencialmente improvisados, sendo cada um único e efêmero: eram preservados não por uma partitura, mas ocasionalmente por uma gravação, e eram basicamente irrepetíveis. [1]

Acrescentando, ainda, quanto ao papel cada vez mais reduzido da improvisação no campo do rock:

nele, a gravação tomou conta. Uma apresentação pública de rock raramente é uma obra improvisada ou uma nova execução de uma partitura, mas simplesmente a reprodução de uma gravação. A maioria do público já conhece a música a partir de um disco e vai assistir para ter uma experiência comunal, em massa (no rock, o papel criativo do processo de gravação também deve ser levado em conta).

O fato é que há um bom tempo a efemeridade da performance tornou-se passível de conservação, sem prazo de validade. Não deixa de haver uma certa magia nisso. Mas concordamos com Rosen em relação à “reprodução da gravação” que parece ser a regra nos concertos de música rock e pop hoje em dia, notadamente. Ele chega a citar, também, a música eletrônica, e define uma das vantagens da performance ao vivo em detrimento de gravações (mas parece esquecer do vídeo como uma alternativa):

Ao ouvir um disco, não se sente a dificuldade física da execução do texto musical, nem se testemunha, como num concerto, o espetáculo emocionante dos tormentos do intérprete.

Como a anedota em que ao ouvir um solo gravado de Miles Davis não podemos perceber o desgaste necessário para tocar cada nota. Esse tipo de observação implica, antes de mais nada, o reconhecimento de um outro campo, visível, na percepção musical que, para além da apreciação puramente técnica[2] — os bastidores da execução, ou como ela é feita — implica o lado subjetivo de reconhecer o esforço do intérprete, torná-lo humano ou distanciá-lo em igual medida, enquanto ser superior. Desde a invenção da litografia, a figura do artista passou a ser tão importante quanto sua obra[3], e, em alguns casos, é possível argumentar que desde a era da televisão a imagem é tudo o que realmente importa. De qualquer forma, as percepções musicais do autor e do público serão sempre distintas, não importa o quão escolado ou descolado seja esse último. O ouvinte ideal, segundo Aaron Copland,

está ao mesmo tempo dentro e fora da música, julgando-a e desfrutando dela, desejando que ela fosse para um lado e observando como ela vai para o outro — quase como o compositor no momento em que compõe, porque para escrever a sua música, o compositor deve estar dentro e fora dela, levado por ela e ao mesmo tempo friamente consciente do que está ocorrendo. [4]

Além disso, a percepção de cada indivíduo será sempre distinta da dos demais — e dele próprio, dependendo da situação. Cortázar já havia cantado a pedra, no primeiro tomo de sua Volta ao Dia em 80 Mundos [5]:

Agora uns amigos me deixaram uma vitrola e uns discos de Gardel. Entenda-se logo que Gardel deve ser ouvido na vitrola, com toda a distorção e a perda imagináveis; sua voz sai dali como foi ouvida pelo povo que não podia ouvi-lo em pessoa, como saía de vestíbulos e de salas em mil novecentos e vinte e quatro ou vinte e cinco. (…) Não são apenas as artes maiores que refletem o processo de uma sociedade.

Isso não impede que, em comentários no YouTube, alguns críticos afirmem que Gardel canta melhor a cada dia. Trata-se, porém, para lembrar Walter Benjamin, do perfeito exemplo de como qualquer avanço no campo da reprodutibilidade técnica acaba por revestir de uma nova aura de autenticidade o objeto tecnológico (disco, no caso) anterior— na medida em que o legitima como “a forma em que deve ser ouvido” e este adquire valor nostálgico de culto, embora também seja uma reprodução. “O defeito de uma mídia vira efeito na seguinte”, ou algo assim, como diz a frase atribuída ao inovador Brian Eno. No ritual do ouvinte de discos de vinil é clara, e frequentemente mencionada, a recepção tátil e óptica do objeto como fator fundamental da experiência.

Acima, o músico Rosendo Uruchurtu grava em um fonógrafo de cilindro para o acervo de preservação do folclore mexicano e indígena de Charles Lummis, junho de 1904.

O disco eventualmente democratizou o acesso à música, como a tecnologia continua a fazer cada vez mais e além: do simples acesso à reprodução para o controle completo da cadeia de produção, gravação, edição e distribuição de áudio que temos hoje. A cada avanço, vêm as tentativas da indústria vigente de reprimi-lo. Foi o caso do gramofone contra o rádio, do rádio contra a televisão, do vinil contra o cassete e do CD contra o download, até chegarmos ao streaming. No fim, tudo acaba sendo absorvido, domesticado e comercializado para nos dizer o que e como devemos consumir.

Em 1998, essas eram as preocupações da indústria fonográfica: Em um prospecto de acordo da venda da PolyGram para a Seagram — uma companhia de bebidas e refrigerantes — , por 10 bilhões de dólares, resgataram uma análise econômica de riscos da década anterior que “culpava a pirataria em fitas cassete pela queda dos lucros (…) e concluiu que o único modo de reverter a queda nas vendas era uma campanha agressiva para que se cumprisse a lei contra os piratas.” Em outras palavras, o sucesso do capitalismo dependia de uma intervenção vigorosa do Estado, como nos conta Stephen Witt no ótimo Como A Música Ficou Grátis (ou LIVRE, no duplo sentido perdido pela tradução — Intrínseca, 2015).

A pirataria era algo que todo executivo da música levava muito a sério, e, em consequência da pirataria física dos CDs, a PolyGram já havia sido forçada a deixar completamente alguns mercados da Ásia e da América Latina. A pirataria nesses países era mais um produto do crime organizado do que de indivíduos, mas, com a popularização do gravador de CD doméstico, havia o risco de o problema se espalhar para a Europa e os Estados Unidos. Algo semelhante já acontecera no início da década de 1980 com o lançamento do gravador de fita cassete para uso pessoal. Os consultores de investimentos consideravam esse um relevante estudo de caso.

Witt prossegue demonstrando claramente as arbitrariedades econômicas e políticas que ditam o padrão de formatos e aparelhos para consumo de música nos últimos 20 anos. Ou até antes disso. Ele lembra que “a pirataria assola as indústrias artísticas desde a invenção dos tipos móveis, e, no contexto da violação de direitos autorais, o termo ‘pirata’ tinha mais de trezentos anos”. Mas isso não impediu a indústria fonográfica de demonstrar resistência a todos os novos formatos de reprodução introduzidos desde o fonógrafo — ou da TV a cabo, serviços de táxi, hotelaria, e telefonia repelirem respectivamente o Netflix, Uber, AirBnB e Whatsapp, embora esses sejam exemplos de um outro tipo de disputa. É certo que ninguém previu a revolução digital e o novo acesso instantâneo a praticamente todo o conteúdo cultural do planeta (exceto, talvez, pelo químico inglês Pumpernikle[6] com seu invento do Gás Musical em 1837, ou Frank Zappa nos capítulos finais de sua autobiografia de 1989: A Proposal for a System to Replace Phonograph Record Merchandising; além de possivelmente uma dezena de outros visionários ao longo dos séculos, mas vai saber), tampouco a indústria fonográfica. Ela também lutou ferozmente contra esse avanço, sob o pretexto de combater a pirataria, em uma batalha que parecia perdida, processando usuários e criando bodes expiatórios como Jammie Thomas[7] para servir de exemplo — em um modus operandi que lembra o proibicionismo e a guerra às drogas ainda vigente em boa parte do mundo. Mas “para que o capitalismo prosperasse na era digital, o compartilhamento precisava ser penalizado”, e o inexplorado e promissor ciberespaço deslumbrante dos anos 1990 deu lugar a uma nova relação da sociedade para com a rede. Em parte por uma maior regulação desses espaços, hoje compreendidos como uma extensão da vida social — e não terrenos mágicos onde “vale tudo” –, em parte por puro lobby das corporações e tentativa de controle sobre as informações dos usuários. O fato é que a internet livre como há pouco a conhecíamos vem se tornando cada vez mais regulada, um cenário de disputa entre interesses econômicos e políticos fortíssimos, combatidos por um insurgente ciberativismo a favor da neutralidade na rede — o que já rendeu prisões, exílios e suicídios nos últimos anos. Acesso à informação é poder.

Seja como for, o suporte determina uma série de fatores na produção e no consumo da música, por vezes retomando costumes antigos — ou fechando um ciclo, por assim dizer. Com a chegada do iTunes e seu serviço de downloads pagos, por exemplo, ninguém mais precisava comprar um álbum inteiro por causa de uma música[8]. Em termos econômicos, as vendas dos álbuns eram um exemplo clássico da venda casada, e, segundo Witt “o rock feito para álbuns morrera na década de 1980, vítima da MTV e do walkman, e nos últimos anos a música fora um negócio voltado para hits”. Um modelo que remetia aos singles em compactos de sete polegadas da primeira metade do século vinte.

Felizmente, para todo segmento que se vê dominado por multinacionais e megaconglomerados bilionários, existe uma reação contrária por parte do público mais inconformado. Um retorno às raízes, digamos, que valoriza métodos artesanais e locais de produção contra o corporativismo frio e sem rosto (embora maquiado) e suas ilusões de liberdade de escolha. Tem sido assim com o setor alimentício, editorial, musical e muitos outros. A política do “faça você mesmo” retorna junto com a nostalgia fabricada pela própria indústria, gerando um contraponto interessante e necessário. Tem sido assim com o retorno dos discos de vinil enquanto opção de suporte para o consumo de música. Mesmo após ter sido descartado como obsoleto, com o advento do CD, e ter tido seus meios de produção sucateados, algumas fábricas se mantiveram na ativa graças ao interesse de puristas e colecionadores que ainda viam no formato alguma coisa superior da qual não conseguiam se desfazer. DJs e produtores de música eletrônica continuaram encomendando dubplates e o ofício pôde se manter vivo. Agora, com o retorno de um interesse, ainda de nicho, por parte de bandas independentes e público alternativo, fábricas começam a reabrir e as que ainda estavam de pé têm agenda cheia, com uma fila de espera para produção que pode chegar a meses. Mas o que mantém as prensas funcionando a todo vapor? Relançamentos de clássicos das grandes gravadoras, que souberam se aproveitar rapidamente do interesse em ascensão pelo velho formato. Pheeew. Seja na gigante GZ Media da República Tcheca, na americana United Pressing (famosa por rodar as extravagâncias fetichistas de Jack White, outro milionário com menos gosto real pela experimentação do que talentos marqueteiros), na alternativa Pirates Press ou na brasileira Polysom, a fila é longa e os preços não muito convidativos. Sem falar nos impostos envolvidos em importação (disco ERA cultura, veja bem), caso se decida prensar fora do país, mesmo em fábricas menores — mas isso é assunto para outro texto, como veremos mais adiante. Daí a movimentação crescente em torno do artesanalismo e na busca por alternativas, como o disco por demanda, riscado um a um, caso dos lathecuts prometidos pela novíssima Lombra Records ou da mais antiga Vinyl Lab, por exemplo, uma real possibilidade graças a engenheiros alemães focados em produção de pequena escala. De qualquer forma, é uma pena que ainda tenhamos que importar o maquinário e a matéria prima, quando temos a tecnologia disponível no quintal de casa, esperando por ser descoberta e incentivada. É o caso de um senhor de Sobradinho (DF), que criou sua própria máquina caseira [9], sem projeto e com peças improvisadas, que risca discos de baixa fidelidade em cera de carnaúba. Uma verdadeira resistência auto-suficiente made in brazil, embora ao que pareça o interesse do seu criador seja menos revolucionar qualquer mercado ou lançar material alternativo do que simplesmente divertir-se com a mecânica da coisa em si. De qualquer forma, o vinil está de volta, é a nova corrida do ouro e uma bela forma de registrar material sonoro. Modas e audiofilias à parte, é possível pensar no disco como um backup confiável, enquanto o futuro de plataformas como Bandcamp ou Soundcloud é incerto e possivelmente nebuloso — basta lembrar do moribundo Myspace.

[1] Tradução de Adriano Scandolara, na revista Serrote #13 (Instituto Moreira Salles, 2013).

[2] Vale lembrar a história de Robert Johnson, por exemplo, do qual se dizia tocar de costas para o público, para não revelar sua técnica. Além das lendas envolvendo pactos com o diabo e toda a mitologia do blues, os relatos na época eram de que seu violão soava como duas pessoas tocando ao mesmo tempo. Por outro lado, é notório o aspecto exibicionista da maioria dos intérpretes solistas, de Liszt e Paganini aos guitar heroes modernos, por muitas vezes dramatizando — e sensualizando — o virtuosismo, como forma de garantir alguma, ãhn, satisfação pós-concerto (ou simplesmente vender mais ingressos).

[3] Mais sobre o tema em O Triunfo da Música, de Tim Blanning (Cia. das Letras, 2011).

[4] No livro Como Ouvir e Entender Música (Artenova, 1974).

[5] Civilização Brasileira, 2008.

[6] Em artigo humorístico publicado no periódico francês Le Menestrel, décadas antes do surgimento do fonógrafo ou do rádio. Um verdadeiro exemplo de steampunk. Nele, Pumpernikle informava a descoberta de um sistema de transmissão musical através das redes de iluminação a gás recém implantadas em Paris. “De lá podia ser canalizado para assinantes, que só precisariam abrir uma torneira em hora marcada para ouvir um concerto. No futuro, ao voltar para casa à noite, os parisienses poderiam ouvir notas estranhas, gemidos melódicos ou até irrupções de harmonia escapando da rede de tubos sob as ruas”, como citado por Tim Blanning. O artigo também aparece no site imaginaryinstruments.org

[7] Considerada culpada em um processo de 222 mil dólares (Virgin Records America Inc. versus Thomas-Rasset, 2007), por violação de direitos autorais de 24 músicas baixadas no Kazaa.

[8] Um processo que, segundo o lendário produtor André Midani, vinha de antes. Ao priorizar a divulgação de músicas isoladas em vez do artista em si — lucros instantâneos versus investimento a médio prazo na carreira do intérprete –, a indústria se defrontou com a necessidade de estourar uma quantidade maior de hits no rádio para garantir as vendas de CDs. “A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num ‘jingle da vida’ durante os três minutos de sua existência… Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música, ‘a música de trabalho’, e o preço do jabá foi à estratosfera”. André Midani: Música, Ídolos e Poder — Do Vinil ao Download (edição web, 2013)

[9] Infelizmente o vídeo não está mais no ar, provavelmente devido a alguma reivindicação automática de direitos autorais por conta da música com que o inventor testa a sua criação. Só esse tópico renderia muitos outros textos, mas é mesmo uma pena.

Texto publicado originalmente no Chupa Manga Zine nº2, em abril de 2016. Saiba mais: chupamanga.tumblr.com/zine

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