Uma história inventada da música

stêvz
#chupamangazine
Published in
7 min readJan 16, 2020

Talvez você já tenha se pego algum dia cantarolando uma canção, sem perceber, no chuveiro. Ou assoviando uma melodia, que nem se lembra de onde veio, enquanto lavava a louça do almoço de dois dias atrás. Todos nós reconhecemos quando estamos diante de uma, mas o que é, afinal, e de onde veio a música?

PARTE 1

PRÉ-HISTÓRIA

Tudo começou há alguns milhões de anos, quando um dos nossos curiosos ancestrais descobriu, provavelmente por acaso, a primeira nota musical. Especialistas ainda divergem se tal frequência teria se tratado de um mi sustenido ou de um fá bemol, mas é certo que o confuso neandertal tomou, imediatamente, aquilo como um sinal dos deuses — que ainda estavam também por ser inventados, junto com o copyright, mas esse é outro capítulo. Até agora, a hipótese mais aceita entre os estudiosos da área é de que, ao ingerir algum alimento fora da validade, o sujeito em questão tenha emitido uma sonora flatulência até então jamais ouvida entre os mamíferos do paleolítico. Foi o bastante para mudar o rumo da humanidade. A este episódio seguiram-se a busca pela reprodução do fenômeno, e, com a experimentação gastronômica, a descoberta de outros timbres e tonalidades — o que que levou à posterior invenção da agricultura, o aparecimento das cidades, das instituições financeiras, das religiões, e daí por diante. Mas é claro que os primeiros humanos não se contentaram apenas em repetir este tipo de criação sonora tão rudimentar, e acabaram desenvolvendo inúmeros outros tipos de instrumentos e ritmos tribais, desde a percussão corporal ou com ossos de mamute, até as flautas de bambu e a polifonia cacofônica (ou cacofonia polifônica) proporcionada pelas vozes conflitantes de todo mundo gritando ao mesmo tempo sobre o que haveria para o jantar. É importante também lembrar que, desde o início, todo desenvolvimento musical foi sempre acompanhado de avanço semelhante na arte da dança, mesmo que infelizmente não restem registros capazes de reproduzir a intrincada coreografia do “passinho do dentes-de-sabre” ou do “arrasta-pé da caverna”.

GRÉCIA ANTIGA

Embora os estilos fossem se multiplicando lentamente com o passar dos séculos, foi apenas com a chegada dos bons-modos gregos que alguém parou para, de fato, analisar com frieza a cena musical. É atribuído a Pitágoras, além do título de inventor do triângulo, o de primeiro crítico deste tipo. Ao perceber que a vibração emitida pelo fio-dental tensionado mudava de altura conforme passava de um dente para o outro, ele inventou a oitava e as suas infinitas divisões, patenteando o método assim que possível (por isso seus descendentes recebem royalties ainda hoje). Acontece que os intervalos eram tantos que não cabiam no alfabeto grego, o que levou a indústria a adotar apenas sete: um para cada dia da semana (daí chamar-se escala “dia-tônica”), começando pelo dó, de domingo.

IDADE MÉDIA

Um pouco mais tarde, coube aos monges medievais revisitar a tradição grega, plagiando descaradamente alguns dos modos sobreviventes e criando as suas próprias levadas, na tentativa de subir até o topo das paradas. É bom lembrar que, naquele tempo, o jurado dos sucessos era o próprio DEUS cristão, crítico exigente e, pior, onipresente. Por isso os monges — agenciados pelo papa e com fama de bons moços — cantavam todos em uníssono e com muito reverb, como era moda na época, evitando alguns intervalos mais controversos, com medo de parecerem ousados demais. Coube a eles, ainda, a invenção da partitura e dos livros, e, consequentemente, devido aos eventuais erros de grafia, dos acidentes musicais e das notas de rodapé. Depois vieram as cruzadas, e todos os cavaleiros que se prezavam passaram a andar paramentados com uma armadura de clave específica para cada ocasião.

MÚSICA CLÁSSICA

Foi apenas com a estreia do alemão J. S. Bach (uma espécie de Jimi Hendrix barroco do órgão), que a música passou para o patamar de apelo popular massivo no qual hoje a conhecemos. Sua grande sacada foi apimentar o ritmo do momento, que ficou conhecido como “cravo temperado”, em uma jogada de marketing que imediatamente fascinou o público jovem e desagradou os mais velhos em igual medida. O que se seguiu foi uma verdadeira revolução cultural, com nomes como Beethoven (modelo de busto e autor da melodia do caminhão de gás) e Mozart (prodígio-mirim) dominando o imaginário europeu[1] e vencendo todos os editais — embora alguns os acusassem de serem vendidos e de exibicionismo barato. Daí para o período romântico foi um pulo, com nomes da estatura de Chopin, Tchaikovsky e Wagner aparecendo como headliners em todas os funerais, bailes de casamento e festas de debutante.

[1] Enquanto isso, o continente africano, as Américas e o oriente desenvolviam o seu próprio mercado musical, com referências, polirritmias e microtonalismos completamente desconhecidos para a cena europeia e metodicamente ignorados por ela desde então (a não ser pelo exotismo).

SÉCULO 20

Com o advento do fonógrafo, chegou a vez de artistas mais experimentais e disruptivos chocarem os ouvidos do público. A música passava da sala de concerto para as salas de estar, mas não sem antes tomar uma bela chacoalhada de um jovem compositor russo chamado Igor Stravinsky. Com o lançamento da sua “Sagração da Primavera” — um balé com ritmos, tonalidades e roteiro tão confusos que foi responsável por causar um verdadeiro quebra-quebra na noite de abertura — , tornou-se cativo em todas as listas de fim de ano. Mesmo julgado como charlatão por uns, ou visionário por outros, a publicidade estava garantida para que sua obra influenciasse tudo o que ainda estava por vir. Cansado dos clichês de resolução e finais felizes da música tradicional, o austríaco Arnold Schoenberg se propõe a criar algo ainda mais extremo, destruindo o tonalismo em uma espécie de abolição das classes sociais entre as notas da escala cromática, no movimento que batizou de dodecafonismo. Mas como ninguém gosta de ter que ficar fazendo conta para balançar o popô, a moda logo caiu em desuso. Com a chegada do rádio e dos singles de goma-laca, a indústria rapidamente se adaptou ao formato padrão de canções curtas, de até três minutos, em quatro por quatro, com refrões grudentos e harmonias fáceis. Era o fim da era de grandes orquestras e estreias de gala. Vieram o blues e o rock, o samba e a bossa nova, os sintetizadores, o axé e o tecnobrega. Da ópera ao videoclipe, diversas mídias de reprodução nasceram e foram extintas da noite para o dia — talvez você se lembre de algumas delas, como o cassete, o CD-RW e o myspace — , até chegarmos aos dias de hoje.

STREAMING (VOCÊ ESTÁ AQUI)

Hoje em dia, toda música é criada ao gosto do freguês, a partir de algoritmos especialmente desenvolvidos para cada assinante do serviço premium, com o exclusivo objetivo de preencher os espaços entre os intervalos comerciais.

PARTE 2

BIOLOGIA

Após esta breve introdução, você deve estar se perguntando: “OK, mas o que é que torna a música musical, afinal? Como os meus ouvidos escutam o que sai dos fones de ouvido e entendem isso como um sinal para mexer os quadris e comprar mais ingressos para megafestivais, mesmo que eu não possa pagar?” Por incrível que pareça, o processo é muito simples: ao apertar o play em uma faixa qualquer, o sistema identifica todas as notas que já estão cadastradas na sua memória, codifica o clima (ou mood) adequado para vender os anúncios dos patrocinadores e junta as peças em questão de nano-segundos, sintetizando a canção pegajosa que será gerada na nuvem e transmitida, via wi-fi, diretamente para o seu córtex cerebral.

os perigos da série harmônica para a audição dos jovens

Mas nem sempre foi assim. Antigamente, para uma melodia qualquer entrar na sua cabeça, primeiro ela precisava ser produzida pela fricção ou palhetada de uma corda, ou pelo sopro de um tubo ou golpe de uma baqueta ou membro em uma película, a partir da qual as moléculas de ar seriam transformadas em moléculas sonoras. Essas partículas microscópicas viajariam, então, da sua fonte para o microfone de captação, que as converteria em sinal elétrico e as armazenaria em forma de corrente em uma fita eletromagnética. A partir desse material, um engenheiro apertaria uma série de botões e controles deslizantes para criar a matriz de onde seriam produzidos os discos em matéria plástica. Só então o ouvinte estaria apto a ligar o seu aparelho analógico, que converteria as microincisões rugosas em energia mecânica, e daí novamente para eletricidade, o que acionaria a reprodução nos alto-falantes a ponto de vibrar as suas membranas, empurrando no ar as moléculas sonoras originais de volta para o ouvido do cidadão. Então, o que se segue é mais uma das maravilhas biológicas das quais não sabemos sequer começar a explicar: o ouvido humano repete todo esse procedimento, mas ao contrário (por isso, ainda hoje é preciso gravar todas as canções de trás para frente). Ao captar as ondas sonoras através das vibrações da membrana do tímpano, o ouvido interno ativa toda uma série de mecanismos delicados como o ossículo do martelo, que martela o ossículo da bigorna, para forjar o ossículo do estribo, que aperta as esporas do labirinto bem no fundo do seu crânio, lembrando ao cerebelo de que estamos ouvindo alguma coisa muito interessante e é hora dele parar de pensar na morte da bezerra para fazer o seu trabalho. Uma vez dentro do sistema neurológico, cabe à ordem e à ligação exata e misteriosa das sinapses determinar do que você gosta ou não gosta, e é basicamente assim que funciona a música.

Texto publicado originalmente
em dezembro de 2019
no
Chupa Manga Zine nº14

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