melhor feito que perfeito (mas não de qualquer jeito)

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#chupamangazine
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16 min readApr 1, 2020
Chico Buarque acompanhado pelo grupo MPB-4 no 3º festival da TV Record, em 1967

Em uma entrevista no filme Uma Noite em 67 (2010), Magro, do MPB-4, conta que ainda gostaria de consertar alguns detalhes no seu arranjo vocal para “Roda Viva”[1], a canção de Chico Buarque que estreara 40 anos antes no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Não se trata de um sentimento incomum, como o produtor Tony Visconti demonstra em outra entrevista[2], de 2016, ao esmiuçar detalhes da gravação da música “Heroes” (1977), de David Bowie. Baseada em um romance do próprio Visconti, o que mais me chamou a atenção no seu relato — além das óbvias curiosidades sobre as participações de Brian Eno e Robert Fripp, o engenhoso uso de um microfone distante com gate ativado apenas nas partes mais altas do vocal, e o uso improvisado de um rolo de fita como cowbell — é o momento em que ele ouve a música e brinca que “queria mixar de novo”.

Agora imagine se os dois não tivessem liberado esses materiais naquela hora, por conta de um perfeccionismo inalcançável ou por simplesmente não conseguirem relevar detalhes incômodos para enxergar o todo. É mais difícil do que parece. Até mesmo o gigante Pablo Picasso supostamente afirmou, certa vez, que só sabia que seus quadros estavam terminados quando o marchand aparecia e os arrancava da sua mão. Como diz o velho ditado, “feito é melhor que perfeito”, e nada como um prazo iminente e inescapável para nos lembrar dolorosamente disso. A minha própria produção musical segue à risca esse princípio, já que as condições ideais dificilmente existirão para se gravar com os melhores equipamentos, instrumentos e instrumentistas, e até mesmo o tempo disponível para fazer isso entre um aluguel e outro pode ser escasso. Em retrospecto os erros são sempre mais gritantes, mas trata-se menos de captar o momento perfeito — o famigerado relâmpago na garrafa — do que de tentativas mais ou menos frustradas de se registrar as ideias como for possível. Tudo o que eu já fiz não passa de um rascunho de coisa melhor, mas aí está.

Por vezes, porém, o motivo da interrupção é simplesmente a chegada inevitável da morte. O cineasta Stanley Kubrick, embora conhecido pelo perfeccionismo — continuava editando seus filmes até o último minuto, e em alguns casos até depois das primeiras exibições públicas — , morreu antes do lançamento de De Olhos Bem Fechados, em 1999, o que leva muitos críticos a questionarem se o longa realmente saiu como ele gostaria, já que o estúdio chegou a censurar cenas mais explícitas para garantir uma classificação etária menor. O pioneiro Orson Welles também não conseguiu terminar a sua última obra O Outro Lado do Vento, que, após infinitas questões burocráticas, batalhas judiciais e financiamentos fracassados, foi enfim finalizada e lançada a público em 2018 — 33 anos após a sua morte e quase 50 anos depois de ter sido começada. Algo semelhante já havia acontecido com outro projeto incompleto de Welles: o filme Dom Quixote, iniciado por ele em 1957, porcamente editado postumamente e lançado em 1992. Alguns diretores, no entanto, tiveram a sorte de ver a estreia de títulos problemáticos que já pareciam perdidos, mesmo após décadas, como outra versão do engenhoso fidalgo de La Mancha, O Homem que Matou Dom Quixote (1989–2018, de Terry Gilliam), e o brasileiro Chatô, O Rei do Brasil (1995–2015, de Guilherme Fontes).

ÁLBUNS PERDIDOS

Existem outros casos famosos de projetos inacabados — ou indefinidamente adiados — no campo da música, seja por conta não apenas de uma autocrítica implacável ou da morte prematura, como por outros motivos menos nobres como impasses burocráticos, financeiros, incompatibilidade de gênios, doenças mentais, abuso de drogas ou mesmo pura falta de interesse por parte dos autores de seguir adiante. Basta lembrar o infame Chinese Democracy, álbum dos Guns ’n’ Roses que saiu em 2008 após uma produção longuíssima e conturbada que se arrastava desde os anos 1990; ou dos menos conhecidos Mundo Verde Esperança (1989), de Hermeto Pascoal, e Cilibrinas do Éden (1973), de Rita Lee e Lúcia Turnbull, que apesar de prontos foram engavetados por suas respectivas gravadoras e circulam até hoje apenas em versões não-oficiais.

Mas talvez um dos exemplos mais emblemáticos seja o de Smile, o disco iniciado em 1966 pelos Beach Boys e que seria o sucessor do seu aclamado Pet Sounds. Descrito por Brian Wilson como uma “sinfonia adolescente para Deus”, o projeto era tão ambicioso e tecnicamente complexo para a época que teve de ser abortado, dele restando apenas fragmentos modulares inacabados e a lenda sobre o mitológico álbum que nunca fora terminado e atormentaria seu criador por décadas[3]. Algumas das canções chegaram a figurar em outros títulos, mas não da forma imaginada por Wilson, que se afastou do grupo e dos holofotes enquanto lutava contra uma esquizofrenia debilitante. Com o passar dos anos, a aura de Smile crescia à medida que fãs fervorosos trocavam fitas piratas com possíveis versões e ordem das músicas — o que só aumentou exponencialmente na era da internet, através de blogs e fóruns obscuros. Foi apenas em 2004 que Wilson retomou o projeto — com a ajuda do letrista original Van Dyke Parks — e veio a gravar o que seria sua forma definitiva: o sublime Brian Wilson Presents Smile, já sem a participação dos Beach Boys mas seguido de relançamentos das sessões originais dos anos 60 por parte da gravadora, graças ao mapa agora completo da sua sequência e melodias faltantes.

Brian Wilson em foto da Getty Images

O caso de Smile é curioso justamente por ter sido regravado do zero, com outros músicos, 38 anos depois — o que obviamente levou a severas críticas tanto dos fãs mais puristas quanto dos ex-companheiros de banda, que o acusam de haver perdido a “aura” original, tanto por conta das vozes (a de Brian agora longe do seu auge juvenil, e as dos Beach Boys ausentes), quanto pelos equipamentos de gravação modernos em vez dos analógicos dos estúdios da época. Mas talvez tenha sido justamente o avanço da tecnologia (além, possivelmente, do distanciamento temporal necessário) o que tenha permitido a sua conclusão, já que, desde o início, as composições eram pensadas como módulos intercambiáveis e exigiam um tipo de edição não-linear semelhante ao do cinema[4], como reconhecido por Carl Wilson, irmão de Brian e ex-integrante do grupo.

Mesmo assim, isso não quer dizer que certas coisas devam ser feitas apenas por que a tecnologia permite. Com a chegada do áudio digital, nos anos 1980, o entusiasta da edição de estúdio Frank Zappa notoriamente substituiu baixos e baterias de diversos de seus discos antigos, além de mudar as mixagens e adicionar reverbs em um punhado delas, para relançamentos em CD. É verdade que algumas das masters originais estavam danificadas a ponto de haver se tornado irrecuperáveis, o que justificaria alguma intervenção nesse sentido, mas, mesmo conhecido por constantemente reutilizar e alterar material antigo em trabalhos posteriores, nem todos os ouvintes gostaram muito da novidade.

Além do puro experimentalismo ou revisionismo técnico, a insegurança e indecisão criativas também podem fazer com que um trabalho já lançado seja constantemente modificado, mesmo que com a desculpa de tratar-se de uma “obra em progresso” — conceito cada vez mais comum desde o advento das campanhas de financiamento coletivo, por um único projeto ou recorrentes (como uma espécie de assinatura mensal do material de determinado/a artista). Foi o que aconteceu com The Life of Pablo, por exemplo, álbum de Kanye West lançado em 2016 e que, graças às facilidades do streaming, recebeu diversas atualizações e reedições, cortes e acréscimos, numa suposta estratégia de marketing confusa que irritou muita gente.

O EFEITO DROOPY

Voltando a Zappa, o compositor, falecido em 1993, retornou recentemente dos mortos — na forma de um reluzente holograma — em uma turnê com cheiro de caça-níqueis e mais uma das polêmicas envolvendo o seu legado, disputado pelos filhos em batalhas legais e trocas públicas de farpas. A moda parece que veio para ficar, tanto no Brasil (Cazuza, Renato Russo) como lá fora, com turnês esgotadas de Elvis Presley, Michael Jackson, Buddy Holy, Whitney Houston e Amy Winehouse no horizonte, todos em versão holográfica.

Os hologramas saem em turnê

A indústria cinematográfica enfrenta questão parecida, com cada vez mais aparições de atores falecidos em franquias multimilionárias e afins — Peter Cushing e Carrie Fisher em Star Wars, ou Marlon Brando em Superman, por exemplo. É verdade que a prática não é tão recente, mas geralmente tratava-se de um recurso extraordinário para finalizar alguma produção cujos atores infelizmente partissem dessa pra melhor antes de terminar de filmar as suas cenas; vide o mestre das artes-marciais Bruce Lee em seu último filme Jogo da Morte, de 1978, ou o seu próprio filho, tragicamente, em O Corvo, de 1994. O primeiro, aliás, também foi trazido de volta em 2013 para um controverso anúncio de uísque, e o mesmo ocorreu com as antigas estrelas Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, Grace Kelly, Marlene Dietrich, Humphrey Bogart, James Cagney e Louis Armstrong, todos ressuscitados digitalmente para vender chocolates, perfumes e refrigerantes, diretamente do “vale da estranheza”[5].

Steve Buscemi em versão “deep fake” de Jennifer Lawrence — ou seria o contrário?

A tendência tem levado personalidades a procurar ajuda jurídica para garantir os direitos sobre a sua imagem mesmo após a morte[6], como já fizeram Tom Cruise (o qual teve as suas feições digitalizadas em alta resolução para uso em efeitos especiais de um filme, mas conseguiu reaver todos os dados) e o humorista Robin Williams, antes de tirar a própria vida. No estado da Califórnia, já existe uma lei[7] de 1985 que obriga os estúdios a conseguirem autorização dos herdeiros para o uso de imagem de qualquer personalidade falecida, mas, com o recente advento dos deep fakes, nem mesmo isso poderá impedir que qualquer pessoa tenha o seu rosto “hackeado” para uso alheio. Parece que num futuro próximo os robôs também roubarão o emprego das celebridades de Hollywood.

Mas não se preocupe, é certo que, como bons capitalistas, eles darão um jeito de lucrar com isso. O uso cada vez mais recorrente de doppelgängers, sósias e clones digitais, pode gerar uma espécie de efeito Droopy — alguém se lembra do fleumático cachorro de desenho animado que estava em todos os lugares ao mesmo tempo, deixando o lobo mau maluco? O que impedirá os rostos inconfundíveis das celebridades de multiplicarem-se para atingir virtualmente todos os mercados possíveis, atuar em todas as frentes do entretenimento e da publicidade, estampando mais ensaios fotográficos de revista, comerciais televisivos e longas-metragens pasteurizados do que humanamente possível? Já que a sua marca registrada — as suas simétricas feições e a sua imagem — poderá ser explorada exaustivamente por alguém para todos esses fins, pelo menos que seja por eles mesmos, naturalmente pensarão. Talvez chegue mesmo o dia em que todos, artistas e público, não passarão de hologramas respectivamente executando e consumindo as obras geradas automaticamente por algoritmos mirabolantes e auto-suficientes, inteligentíssimos e estatisticamente perfeitos. A partir daí, não haverá mais diferença entre a vida e a arte, pois já não existirá nenhum das duas.

AUTOCRÍTICA AUTOMÁTICA

Os perigos da automação para a arte têm sido discutidos pelo menos desde a invenção do fonógrafo, mas uma também pode ser utilizada para transportar a outra a horizontes inexplorados e anteriormente inimagináveis. O conceito de arte generativa parte desse princípio, em que uma série de parâmetros e condições previamente determinadas servem de base para um desenvolvimento automatizado posterior — frequentemente com espaço para uma bem-vinda dose de aleatoriedade, o que acaba levando a obra até uma conclusão imprevisível. É claro que esse tipo de empreitada pode, muitas vezes, tornar-se apenas um exercício curioso para iniciados, como o National Novel Generation Month — uma reunião de romances inteiramente gerados por códigos de programação, organizado desde 2013. Mas a própria indústria do entretenimento tem se apropriado justamente desta prática para escolher quais produtos financiar, e até fabricar argumentos, baseada inteiramente em big data[8], hábitos de consumidores, nuvens de palavras e gráficos de engajamento. Prestei a minha devida homenagem a esta nova era do audiovisual personalizado no twitterbotNtflx Generator”, por sinal, que cria sinopses por vezes indistinguíveis das do serviço de streaming, de hora em hora. Como um bom work in progress generativo, o seu código volta e meia é atualizado com novas estruturas de frases e vocabulário, e ainda está longe de esgotar todas as possibilidades de combinações.

“Máquina de aplausos” de Simone Giertz

Pensando no lado mais mecânico da coisa, também temos exemplos maravilhosos de geringonças automáticas a serviço exclusivo da nobre causa do humor; como os robôs inúteis da sueca Simone Giertz em sua empresa “Artificial Stupidity” — que vão desde uma “máquina de aplausos” a um capacete que serve pipocas — , ou os jogos operados por moedas no “Novelty Automation” de Londres, um arcade aberto ao público com peças fabricadas pelo cartunista britânico Tim Hunkin. Nele, os visitantes podem receber uma sessão de podologia, sofrer uma revista automática para saber se são suspeitos, tirar cara ou coroa em um “tomador de decisões executivas” ou mesmo consultar um especialista para saber se qualquer objeto é ou não arte. Talvez o crítico autômato não aprovasse a curadoria de galerias sérias que já realizam mostras com obras geradas, se não totalmente, com o auxílio de inteligência artificial. Uma das artistas que tem elevado essa questão a outro patamar é a chinesa-canadense Sougwen Chung, que realiza performances de artes visuais onde pinta junto com robôs programados por ela através de redes neurais. Inicialmente, o projeto incluía um braço mecânico que imitava seus movimentos, mas, após a constatação de certas limitações práticas do protótipo, decidiu incorporar essas imperfeições e investir justamente no “erro” e na diferença como elementos fundamentais nas suas obras. Os robôs tornaram-se, desde então, verdadeiros colaboradores dela, e não apenas ferramentas.

No ramo da música, o uso de playbacks em apresentações ao vivo sempre foi uma fonte inesgotável de controvérsia, como no icônico caso da dupla alemã Milli Vanilli, acusada de fraude em uma série de processos — francamente meio ridículos — de proteção ao consumidor, no fim dos anos 1980, e que foi obrigada até a devolver prêmios depois de “desmascarada”. A prática já havia sido retratada muito antes, no clássico e metalinguístico Cantando na Chuva, de 1952, em que a estrela do cinema mudo interpretada por Jean Hagen tem que ser dublada por Debbie Reynolds em um filme falado, por conta da sua voz desagradável. Nada que não tenha sido relevado por seguidas gerações de adolescentes enlouquecido/as pelos integrantes das girl ou boy bands coreografadas que lançam mão desse recurso na música pop.

SPOILER ALERT: Cosmo é um tremendo babaca

O onipresente autotune talvez fique um pouco atrás na lista de “falcatruas” mais odiadas por comentaristas de Youtube nos últimos anos, mas o auxílio de elementos automatizados não é fenômeno recente na música. O próprio uso, hoje amplamente difundido, de samples e drum machines ainda pode ser visto com maus olhos. Mas, em mãos criativas, nada disso importa. Partindo do fascínio que tinha na infância pela pianola da casa do avô, o guitarrista Pat Metheny talvez tenha chocado alguns ouvintes esnobes de jazz em 2009, ao resolver lançar um disco e uma turnê em que sua banda de apoio consistia do que ele descreveu como “uma falange de instrumentos notáveis e personalizados, tocados através de interruptores solenoides e pneumáticos”. O gigantesco “Orchestrion”[9] era capaz de acompanhar o músico em tempo real, com ritmos e texturas surpreendentes, em mais uma bela demonstração de obra colaborativa entre homem e máquina.

A mecanização do jazz: Pat Metheny e seu “Orchestrion”, banda de apoio com dezenas de instrumentos automatizados

MÚSICA DO FUTURO

Mas uma máquina conseguiria compor sozinha? Experimentos nesse sentido já vêm sendo feitos pelo menos desde os anos 1960[10] na Rússia e nos EUA, e hoje começam a tornar-se realidade — com muitos poréns. Conhecido pelas suas recomendações musicais assustadoramente precisas[11] (mais do que o acervo, são elas o seu verdadeiro diferencial), o líder de mercado Spotify foi acusado pelo site Music Business Worldwide, ainda em 2016, de criar “artistas falsos” com músicas genéricas exclusivamente encomendadas para popular playlists oficiais de altíssima visibilidade e com milhões de execuções, tudo para não ter que pagar direitos autorais. É claro que, eventualmente, a coisa passaria para o nível seguinte: pouco depois, o mesmo MBW reportou que a plataforma havia contratado François Pachet, um especialista em inteligência artificial da Sony, cuja equipe fora responsável por criar as primeiras músicas pop conhecidas utilizando essa tecnologia[12], e que defendeu, em uma palestra, que obras desse tipo deveriam ser isentas de royalties. Desde então, diversas empresas de tecnologia têm investido pesado na composição musical gerada inteiramente por computadores; como a AIVA, a primeira compositora virtual a ser reconhecida por uma entidade oficial (a SACEM, sociedade francesa dos autores, compositores e editores de música), e que oferece um serviço totalmente personalizado, em diversos estilos, para clientes como o TED. A gigante Google também tem a sua aposta, chamada Magenta, e provavelmente veremos cada vez mais trilhas sonoras, jingles, sinfonias e operetas criadas por máquinas no futuro próximo.

Rumo ao Grammy: AIVA’s Greatest Hits

A questão dos direitos autorais permanece uma incógnita, já que, mesmo em processos legais recentes a linha entre autoria e plágio ainda é nebulosa, mesmo tratando-se de humanos. Afinal, quem pode ser realmente DONO de uma melodia (já que esse é o parâmetro geralmente levado em consideração nos tribunais) se elas não passam de uma sequência de notas em determinada ordem, estatisticamente previsíveis? Pensando nisso, o advogado Damien Riehl e seu amigo Noah Rubin criaram o projeto “All The Music”, em que usaram um código para gerar todas as sequências melódicas ainda possíveis do mundo, e disponibilizar tudo em domínio público, esperando assim liberar compositores para criar sem medo de serem processados. É claro que, apesar da engenhosa ideia, eles lidaram com um conjunto de dados extremamente limitado (atendo-se a duas oitavas e sequências de até doze notas, sem levar o ritmo em consideração), o que não esgota ainda TODAS as melodias possíveis. Na prática, trata-se mais de uma provocação teórica do que uma revolução jurídica na área do copyright, mas certamente uma iniciativa louvável e não muito distante dos questionamentos que o próprio pai da cibernética, o matemático Norbert Wiener, levantava já em 1950:

Do ponto de vista de propriedade, os direitos de reprodução são resguardados pela nossa lei de direitos autorais. Existem outros direitos que nenhuma lei pode resguardar e que, quase que de igual modo, suscitam a questão da possibilidade de qualquer homem ter posse efetiva de uma criação artística. Neste ponto surge o problema da natureza da genuína originalidade. (…) As limitações intrínsecas da natureza mercantil da comunicação mal são levadas em conta pelo público em geral. (…) [O homem comum] não pode conceber informação sem proprietário. A idéia de que a informação possa ser armazenada, num mundo em mudança, sem com isso sofrer enorme depreciação, é uma idéia falsa.

E, para quem achar que tudo isso possa representar o fim da criatividade e do/as artistas de carne e osso, emendava:

Só Deus sabe quantos problemas não existem a serem resolvidos, quantos livros a serem escritos, quanta música a ser composta! No entanto, com pouquíssimas exceções, para se chegar a tanto, é mister realizar tarefas maquinais que, em nove entre dez casos, não se tem nenhuma razão imperiosa para realizar. Que o Céu nos livre dos primeiros romances que são escritos porque um jovem aspira ao prestígio de ser romancista e não porque tenha algo a dizer! (…) Nas artes, o desejo de encontrar coisas novas para dizer e novas maneiras de dizê-las é a fonte de toda vitalidade e interesse. [13]

NOTAS

[1] A canção foi originalmente escrita para a peça de teatro (também dele) de mesmo nome, que, em 1968 teve duas de suas apresentações interrompidas pelo Comando de Caça aos Comunistas, cenários depredados e atores agredidos.

[2] No programa Music Moguls: Melody Makers, da BBC Four, na íntegra em bbc.co.uk/programmes/p03g18sx

[3] Em um caso típico de síndrome do impostor, Wilson ficou aterrorizado por Smile por muitos anos, diminuindo repetidamente o álbum ao mesmo tempo em que o associava com todos os seus fracassos. Em diversos momentos considerava as gravações “sem alma”, como imitações baratas de Phil Spector ou “música brega influenciada por drogas”.

[4] Segundo o próprio Brian Wilson: “Eu tinha muitas ideias inacabadas, fragmentos de música que chamava de ‘sensações’. Cada sensação representava um clima ou uma emoção que eu sentia, e planejava organizá-las como um mosaico”.

[5] “Vale da estranheza” (uncanny valley, no original) é uma hipótese no campo da estética, robótica e computação gráfica que diz que quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida — mas não idêntica — a seres humanos reais, provocam repulsa entre observadores humanos. O “vale” em questão refere-se à queda repentina no gráfico da reação positiva de um ser humano em função da verossimilhança de um robô, seguida de uma eventual retomada.

[6] Mais sobre o assunto em screenrant.com/actors-refused-resurrected-cgi-rights/, reuters.com/article/us-film-resurrections-analysis-idUSKBN14J1TU e telegraph.co.uk/news/2019/11/10/bringing-icons-back-dead-hollywoods-chillingly-immoral-trend/

[7] O Celebrity Rights Act foi implementado após campanha do filho do eterno Drácula, Bela Lugosi, inconformado com a exploração da figura do pai em incontáveis produtos de merchandising, mesmo décadas após a sua morte.

[8] Certamente não teríamos como falar sobre automação em redes sociais sem lembrar dos seus usos antiéticos e com consequências potencialmente devastadoras, cada vez mais corriqueiros, como a radicalização de opiniões e comportamentos, e a influência sobre eleições no mundo inteiro. O próprio jornalismo tradicional, que poderia (e deveria) ajudar a combater esse tipo de prática, apesar de também atualizar-se aos poucos — na automatização de conteúdo descritivo como resultados esportivos, previsão do tempo e relatórios de trânsito, por exemplo — , ainda parece engatinhar nesse sentido.

[9] patmetheny.com/orchestrioninfo e também em soundonsound.com/people/pat-methenys-orchestrion

[10] Em 1960, o pesquisador russo R. Kh. Zaripov publicou o primeiro artigo internacional sobre composição musical algorítmica, utilizando o computador “Ural-1”. Em 1965, o inventor Ray Kurzweil estreou uma peça para piano criada por um computador que era capaz de reconhecer padrões em várias composições, analisar e utilizá-los para criar novas melodias.

[11] É importante deixar claro a diferença entre inteligência artificial e “inteligência algorítmica”: enquanto a primeira é mais sobre computadores serem capazes de pensar, entender e se adaptar de um jeito semelhante a um ser humano, a última diz respeito a usar a matemática para ajudar pessoas e máquinas a trabalharem juntas, em tarefas operacionais mundanas. Utilizar algoritmos para prever de que música você gostará no Spotify ou que filmes deveria assistir no Netflix é algo esperto, mas não necessariamente criativo em si mesmo. Não há nada de artificial nisso. Mais em venturebeat.com/2017/04/15/the-art-of-algorithms-how-automation-is-affecting-creativity/

[12] As duas canções em questão, “Daddy’s Car” e “The Ballad of Mr. Shadow”, no entanto, ainda precisaram de um ser humano para fazer os arranjos e a produção do material escrito pela máquina.

[13] No livro Cibernética e Sociedade — O uso humano de seres humanos (Editora Cultrix, São Paulo, 1968, 2ª edição).

Este texto foi publicado originalmente no Chupa Manga Zine nº 15, em março de 2020. Saiba mais!

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