música e quadrinhos: de cage à periquita

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#chupamangazine
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8 min readJun 24, 2020

Diferente da música, as histórias em quadrinhos não são uma mídia temporal, mas espacial. Isso significa que o leitor determina o seu próprio ritmo de fruição, podendo modificar a ordem de leitura, pular quadros e páginas inteiras, avançar e retroceder quando bem entender. Uma página pode ser percebida de uma vez só, como uma grande moldura e, ao autor ou autora resta apenas sugerir o ritmo da narrativa, através da disposição dos elementos. A imaginação do leitor deve fazer o resto, no espaço entre os quadros conhecido como sarjeta. [1]

Na música, só existe o presente. [2] Com a necessidade de preservação e difusão — antes do advento do fonograma — ao longo dos séculos, a partitura tenta comunicar a música em uma forma espaço-visual. Ainda assim, qualquer registro desse tipo não é mais do que uma série de instruções para a sua execução. O nível de detalhamento, ainda hoje, pode variar desde acordes cifrados abertos a interpretações até notações extremamente específicas, e à medida em que a música de vanguarda do século 20 tornou-se mais e mais complexa, também complicou-se a sua escrita. Em resposta a isso, diversos compositores desenvolveram, a partir dos anos 1950, novos sistemas e métodos de notação gráfica, como John Cage, Morton Feldman e Earle Brown, da chamada “Escola de Nova Iorque”.

“Projection 2”, de Morton Feldman (1951)

Desta forma, uma linha que se alonga, muda de direção e de espessura, pode ser lida como a representação sonora de uma melodia que faça o mesmo, e assim por diante — mas isso é assunto para outro texto. As possíveis variações são infinitas, e esta é uma forma de delegar um papel maior ao intérprete ou ao próprio acaso na performance, dependendo da intenção do autor. Partindo dessa premissa, qualquer informação visual pode ser interpretada como música. A série The Way I See It, do MoMA, por exemplo, registrou o pianista Jason Moran interpretando o quadro “Broadway Boogie Woogie” (de Mondrian, 1942) como uma partitura sinestésica.

“The Way I See It”, ótima série do MoMA

Não é surpresa, portanto, que mais cedo ou mais tarde alguém tentasse o mesmo com uma história em quadrinhos. As duas artes já dialogam há um bom tempo, com referências uma à outra, seja na aparição de personagens em capas de disco e letras de canções — “Casper The Friendly Ghost”, de Daniel Johnston, e “Superbacana”, de Caetano Veloso, para ficar em dois exemplos distantes e distintos — , como nas citações musicais nas páginas dos gibis — um Jimi Hendrix completamente alucinado na “homenagem” de Robert Crumb a “Purple Haze” na Zap Comix, ou Los 3 Amigos dançando “Cantor de Mambo”, dos Mutantes. É interessante, nesse ponto, observar as diversas formas com que os desenhistas escolhem representar os sons musicais, aludindo desde à notação tradicional e onomatopeias ao timbre dos instrumentos (por vezes de forma semelhante à das partituras visuais).

“Total Jazz”, de Blutch. (Fantagraphics, 2018)

As HQs com temática diretamente musical são relativamente comuns, seja em biografias de artistas reais ou imaginários — Carlos Gardel, de Muñoz e Sampayo; Coltrane, de Paolo Parisi; ou O Pequeno Livro Do Rock, de Herve Bourhis — ou com aspectos mais filosóficos e metafísicos — A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes; e Aparecida Blues, de Biu e deste que vos escreve — , mas uma aproximação realmente híbrida entre as duas áreas nem tanto. Podemos naturalmente citar o clássico Tubarões Voadores (1984), de Luiz Gê e Arrigo Barnabé, como uma tentativa de mesclar música e quadrinhos em uma só obra — ou, ao menos, em duas obras construídas juntas mas que podem ser consumidas separadamente. É também o caso do excelente Música Para Antropomorfos (2007), parceria do artista gráfico Fabio Zimbres com a banda Mechanics. Em uma experiência ainda mais radical, os músicos enviaram demos instrumentais das canções para Zimbres, que criou uma narrativa totalmente subjetiva em cima delas, de onde a banda retomou para criar as letras. O resultado é um disco e um livro que, assim como no exemplo anterior, podem tanto ser absorvidos separados como juntos, criando uma nova experiência. [3]

“Tubarões Voadores”, de Arrigo Barnabé e Luiz Gê (1984)

Mas talvez nenhuma obra tenha ido tão longe nesse campo quanto o obscuro Music From Nancy, de 1979. Relativamente desconhecida no Brasil, a personagem — uma garotinha esperta de oito anos com um laço vermelho nos cabelos arrepiados — de Ernie Bushmiller, surgiu em 1930 na tira “Fritzi Ritz” e ganhou sua própria série em 1938. Por aqui, foi publicada como Xuxuquinha, Periquita e Teca entre os anos 1960 e 70. Com seu traço econômico e preciso, e por trás de um aparente enredo bobo, Bushmiller criou um microcosmo perfeito de gags visuais que levou a arte dos quadrinhos até a sua síntese. Reverenciada por nomes como Art Spiegelman e Scott McCloud[4], Nancy é tão parte do inconsciente coletivo norte-americano que foi pirateada por ninguém menos que Andy Warhol e rendeu até um livro inteiro de versões zoadas do artista Joe Brainard.

Nancy revisitada por Joe Brainard e Andy Warhol, e no livro de Paul Karasik e Mark Newgarden

Para comprovar sua importância, os autores Paul Karasik e Mark Newgarden lançaram, em 2018, o livro How to Read Nancy: The Elements of Comics in Three Easy Panels (Phantagraphics), onde dissecam o estilo de Bushmiller — analisando exaustivamente, em especial, uma tira específica de agosto de 1959, reduzindo-a a seus elementos mais básicos, para demonstrar a maestria visual do desenhista.

A famosa tira publicada em 8 de agosto de 1959: uma aula da narrativa visual de Bushmiller

Anos antes desse reconhecimento formal, três amigos recém-saídos da faculdade se propuseram a criar uma performance musical baseada na personagem. Segundo eles, “um tributo a Ernie Bushmiller que tenta traduzir a sensação visual de Nancy em uma sensação aural, empregando uma abordagem programática”. Partindo de 16 tiras dentre as suas favoritas, Steve Sweet, Jesse Poimboeuf e Steve Cunningham idealizaram Music From Nancy, que teve a sua estreia em novembro de 1979 no Centro de Arte Contemporânea de Nova Orleans e seria apresentada publicamente apenas outras poucas vezes.

A obra submetia as tiras escolhidas a uma série de condições preestabelecidas, para criar as 16 curtas peças que, juntas, somam em torno de 10 minutos. Nelas, cada personagem é representado por um instrumento — numa referência deliberada a Pedro e o Lobo, de Prokofiev — , e o cenário (interior ou exterior, dia ou noite) por um drone específico. Nancy é representada pelo Mellophone, um sintetizador de brinquedo, e seu amigo Sluggo — traduzido no Brasil como Tico ou Marciano — pelo Accordiotone, um pequeno órgão híbrido. Os três músicos de smoking se revezavam entre tocar estes e uma dezena de outros instrumentos pouco convencionais, como bolhas sopradas por um canudo na água, além de vídeos pré-gravados que eram exibidos em uma televisão de tubo. A apresentação contava ainda com recortes coloridos enormes dos personagens, que eram levantados por cordas à medida em que apareciam nas tiras projetadas acima do palco para que o público pudesse acompanhar o programa.

Facsímile de uma das páginas do programa original de “Music From Nancy” (1979)

Para chegar à composição, os autores decidiram que a cabeça de cada personagem representa uma nota. Sobrepondo-se uma pauta musical sobre a tira, o intervalo entre as notas é definido. A qualidade (maior-menor) de cada intervalo é determinada dependendo se as mãos do personagem estão no quadro (maior, tom) ou fora dele (menor, semitom). A cada intervalo foi, então, designado um valor numérico conforme essa legenda:

Um intervalo médio foi determinado para cada tira, dividindo-se a soma deles pelo número de quadros. A série de intervalos médios de todas as tiras define, por exemplo, o TEMA PURO DE NANCY, com a nota dó escolhida como ponto de início.

Depois, a curva formada pela progressão da cabeça de cada personagem em uma tira é comparada ao contorno melódico do seu tema, e o segmento correspondente ao formato da curva determina o motivo a ser tocado em cada quadro. Para cada quadro subsequente, a nota inicial do motivo é determinada pela posição relativa das cabeças. Empregando um andamento moderado, o motivo é repetido para caber na duração pré-determinada de cada quadro, de acordo com a sua largura. Por exemplo: um motivo de quatro notas tocado seis vezes para caber em 19 segundos é representado pela “fórmula de compasso” 19/6. Todas as notas têm a mesma duração.

Ufa! Parece complexo, e realmente o excesso de regras torna a coisa toda um pouco difícil de acompanhar — em um jornal da época, um crítico reclamava que a explicação da peça era mais longa do que a própria performance — , mas não temos dúvidas de que essa seja possivelmente uma das tentativas mais sérias de ser produzir uma obra musical baseada diretamente em uma história em quadrinhos, de forma objetiva, mesmo que o resultado não seja exatamente agradável. [5] Em um vídeo da apresentação de estreia, disponível na íntegra no canal de Steve Cunningham no Youtube, é possível conferir Music From Nancy com os seus próprios olhos e ouvidos.

A gloriosa estreia de “Music From Nancy”, em novembro de 1979

E você? Conhece algum outro exemplo de interação desse tipo entre música e histórias em quadrinhos?

NOTAS

1. Não me lembro onde li argumento semelhante quanto à diferença do cinema em película para o digital: de que o espaço “morto” entre os quadros do rolo de filme é o que causaria essa “mágica” da imaginação no primeiro.

2. No entanto, na cabeça do ouvinte há também a memória do que passou e a expectativa do que virá, e é exatamente essa dinâmica que a torna interessante.

3. O processo foi explicado detalhadamente no livro Comiczzzt! — Rock e quadrinhos: Possibilidades de interface (Contato Comunicação, 2015), de Márcio Júnior, vocalista dos Mechanics. A obra também traça um panorama histórico da aproximação entre música e quadrinhos.

4. McCloud chegou a desenvolver um exercício narrativo em que usa quadros recortados das tiras de Nancy, chamado “5 card Nancy”.

5. Fica a vontade, agora, de ver outros experimentos do tipo com personagens da cultura nacional: imagine a performance eletroacústica da série atonal do Almanacão da Mônica, os contornos melódicos da turma do Pererê ou a tessitura sonora da Graúna!

Publicado originalmente no Chupa Manga Zine nº 16, em maio de 2020.

Este texto só foi possível graças ao zine Bubbles, de Richmond (EUA), que gentilmente nos disponibilizou a sua entrevista com os autores de Music From Nancy, além das imagens do programa original da peça.

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