Radiação cósmica pode ter moldado a quiralidade da vida, diz físicos

Yara Laiz Souza
Ciência em Pauta
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3 min readJun 5, 2020

A quiralidade de moléculas biológicas, um detalhe importante quimicamente, pode ter tido inferência espacial

Na Biologia, muitas moléculas biológicas têm uma versão ‘destra’ e ‘canhota’ de si mesmas (Créditos: Simons Foundation)

Os físicos Noemie Globus, da Universidade de Nova York e pesquisador da Simons Foundation, e Roger D. Blandford, professor da Universidade de Stanford, especularam em um artigo sobre a questão da quiralidade em moléculas biológicas e o quanto essa característica foi influenciada por fatores espaciais, mais especificamente por raios cósmicos. A interação de moléculas com raios cósmicos em um passado muito distante da Terra pode ter acarretado nesta característica importante das moléculas biológicas atuais — e sendo decisivo para o percurso na vida terrestre. O artigo está disponível no periódico The Astrophysical Journal Letters.

Imagine um par de sapatos: existe um lado feito especificamente para o pé esquerdo e outro feito especificamente para o pé direito. São sapatos iguais, mas, se você tenta calçar o lado direito do sapato no lado esquerdo do pé, fica desconfortável ou não cabe. Se você tenta empilhar os sapatos, colocando um em cima do outro, a imagem a ser criada não será uma imagem alinhada ou certinha. Tente colocar sua mão direita nas costas da sua mão esquerda: são duas mãos iguais, mas não são imagens sobreponíveis. A mesma coisa acontece com moléculas quirais: são moléculas semelhantes em aparências, mas diferentes em ligações químicas.

Quiralidade dá aspectos semelhantes a moléculas orgânicas, mas algumas diferenças no sentido das ligações (Créditos: Wikimédia Commons)

A quiralidade de moléculas pode ter tido grande influência dos raios cósmicos, nos tempos em que moléculas autorreplicantes começavam a aparecer no caldo nutritivo que havia na Terra. Sem a presença de uma atmosfera eficiente, os raios cósmicos entravam livremente no planeta, interagindo com essas moléculas.

“Propomos que a capacidade biológica que testemunhamos agora na Terra se deve á evolução em meio à radiação magneticamente polarizada, onde uma pequena diferença na taxa de mutação pode ter promovido a evolução da vida baseada no DNA [molécula composta de dupla fita], em vez de sua imagem espelhada”, explica Noéme Globus, autor principal do artigo, em release para o site da Universidade de Stanford.

A quiralidade é algo de extrema importância. Um detalhe simples em moléculas quirais já muda completamente a funcionalidade e até a letalidade de uma molécula. A talidomida, por exemplo, é um fármaco composto por duas moléculas quirais: apenas uma delas, que não é uma imagem sobreponível da outra, é a causadora da má formação em fetos (que conhecemos como Bebês da talidomida).

A chave para este entendimento está na ação dos múons. Múons são partículas instáveis, de vida curtíssima (existem por apenas 2 milionésimos de segundo) e são advindos da degradação de raios cósmicos quando estes atingem a atmosfera terrestre e chegam no solo. Estas partículas teriam afetado significativamente o percurso inicial da vida. Os autorreplicantes, após muito contato com múons, acabaram tendo um aumento de taxas mutacionais, fazendo com que suas moléculas tivessem um lado ‘destro’ e outro ‘canhoto’. Este detalhe, inclusive, está presente no DNA, molécula que guarda a informação genética dos seres vivos.

Claro que esta é uma ideia inicial, apesar de bastante interessante. Os autores, inclusive, esperam que em breve esta hipótese possa ser testada em experimentos. Eles também esperam que analises possam ser feitas em asteroides ou no solo de Marte para verificar a existência de química quiral.

“Experiências como essa nunca foram realizadas e estou animado para ver o que elas nos ensinam. Surpreendentemente, as surpresas vêm de trabalhos adicionais sobre temas interdisciplinares”, finalizou Globus.

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Yara Laiz Souza
Ciência em Pauta

Comunicadora Científica, bióloga em formação, pesquisadora da Educação e do Ensino de Biologia.