Dentro do Personagem — Cyrus (Pokémon Diamond, Pearl, Platinum)

Victor C
Cia dos Videojogos
Published in
9 min readMar 19, 2018

Dentro do Personagem é um quadro da Cia dos Videojogos dedicado especialmente a ensaios e textos analíticos sobre personagens de um jogo. O conteúdo do artigo é marjoritariamente opinativo e de responsabilidade do autor do texto, isentando os criadores de qualquer personagem aqui abordado.

AVISO: qualquer texto desse quadro pode — e muito provavelmente vai — conter spoilers do(s) jogo(s) em que esse personagem está participando.

(arte por JohnSegway)

Cyrus doesn’t give a fuck.

O meme criado pela comunidade Pokémon pode não passar de uma piada com a personalidade do estranhamente carismático Cyrus, mas ao mesmo tempo resume perfeitamente a sua natureza. O líder da organização criminosa Team Galactic aparece em Pokémon Diamond, Pearl e Platinum diversas vezes, e em nenhuma delas esconde sua natureza. Apesar de não gritar “EU SOU O CHEFÃO FINAL DO JOGO” diretamente, ninguém ganha pontos por ter adivinhado desde o começo que seria contra ele a batalha derradeira (no sentido do enredo, né, já que a batalha final final mesmo é sempre contra o campeão da Elite Four). A sua primeira fala, em Pokémon Platinum, já escancara quem é Cyrus:

“… O fluir do tempo… a expansão do espaço… eu vou torná-los todos meus um dia… Cyrus é o meu nome. Lembre-se dele… até lá, durmam enquanto podem, Pokémons lendários do lago…”

Pesado. Bom, pra dar crédito a ele, ele não fala isso diretamente pra você, mas sim é flagrado pelo jogador em uma cutscene no Lago Verity. Mesmo assim, no seu terceiro encontro com ele, no Mt. Coronet, ele solta essa logo de cara:

“Por conta da fraqueza do incompleto espírito humano, conflitos se espalharam… este mundo está sendo arruinado por eles… eu acho uma tragédia essa situação…”

De novo: pesado. Mas tá, e daí, ele não gosta do mundo, qual o problema? Muita gente não gosta do mundo. Cinco minutinhos no Twitter já devem te mostrar gente o bastante, e nenhum deles é o vilão principal de um jogo. Não, o que torna Cyrus mais do que um simples cidadão revoltado é o fato de que seu objetivo é destruir o universo inteiro.

Destruir.

O universo.

INTEIRO.

Volto a repetir: “Cyrus doesn’t give a fuck”.

Um niilista da cabeça aos pés, Cyrus se torna o cabeça do Team Galactic e chefia a organização criminosa em seus esforços para dominar não só o mundo, mas a galáxia, com trabalhos extremamente perigosos como roubo de materiais de pesquisa científica e sequestro de cientistas. O Team Galactic é, de longe (talvez perdendo para o Team Flare, de Pokémon X/Y), a equipe criminosa mais imbecil da franquia, com os seus subordinados superando o mero “brutamontes ignorante” e entrando no reino de “mentalmente incapaz” — mas Cyrus, de idiota, não tem nada. Ao contrário de seus servos e admins, Cyrus está sempre sozinho, anda sozinho, e fala sozinho. Muitas das vezes em que ele e seu personagem se encontram, ele aparenta estar falando mais consigo mesmo do que com você — uma proeza, em um jogo onde o protagonista não fala. Além disso, Cyrus é eloquente, escolhe bem as palavras, e não faz questão nenhuma de esconder seu descontentamento com a humanidade, especialmente com as emoções que nós, humanos, sentimos por natureza.

A trágica história de Cyrus, revelada após sua derrota, começa quando ele ainda era jovem, morando na cidade de Sunyshore. Ele sempre preferiu a companhia de máquinas, mantendo pouco ou nenhum contato com Pokémons e humanos, e assim cresceu frio e distante — mas ainda completamente são. O que empurrou-o do penhasco da sanidade mental foi não corresponder às expectativas dos seus pais, e é aí que termina a explicação “canônica”, mas diversas teorias apontam que Cyrus tentou se tornar um treinador Pokémon e não conseguiu. Feito isso, o futuro líder dos Galactics culpa sua própria fraqueza e suas emoções, e jura viver num mundo em que não existem emoções. O resto, como sabemos, é o enredo do jogo.

Por isso, junto dos trabalhos “pequenos” do Team Galactic, Cyrus tem seu próprio projeto especial, que é a captura dos três Pokémons lendários Uxie, Azelf e Mesprit — os Pokémons que representam sabedoria, força de vontade e emoções — e a criação, a partir deles, de uma corrente capaz de prender os Pokémons lendários Dialga (tempo) e Palkia (espaço) sem reduzir sua força com a comodidade de uma Poké Bola. Até essa parte, tudo bem. Seus subordinados sabem de todo esse plano, e o apoiam porque Cyrus lhes promete, com isso, criar um novo mundo só para eles. Mas uma conversa privada entre o protagonista e ele, na parte em que você invade o HQ do Team Galactic, revela o verdadeiro fim para o plano maligno de Cyrus: destruir o universo inteiro, e recriá-lo na sua imagem, em um mundo sem emoções, sem conflito, sem o espírito humano. Um mundo onde só Cyrus existe, e é o deus de tudo.

Bom, como personagem, Cyrus representa diversos aspectos de personalidade que vemos diariamente: primeiro, ele se vê acima da humanidade por não ser “ignorante”. Certamente você conhece pessoas que não riem de nada, não aceitam nenhum conteúdo em nenhum lugar que seja minimamente lúdico, que criticam a sociedade não como um membro indignado, mas como alguém que realmente se vê como superior a seus colegas humanos… basicamente, é a fusão de um comentarista de notícias do G1 com aquele mala sem alça que quebra uma janela toda vez que aparece uma notícia sobre as Kardashians na seção de entretenimento. Muitas dessas pessoas “desejam” que o mundo acabe e comece de novo, desejam que a humanidade inteira seja como eles, e deseja que todo aquele que não couber na sua visão de mundo deixe de existir, seja pelas mãos da natureza ou pelas suas próprias.

Cyrus é uma representação exagerada dos pensamentos e atos dessas pessoas, e também é uma representação do que normalmente acontece com elas. Seu plano de capturar os Pokémons lendários dá errado; Dialga e Palkia não se curvam a ele, geram uma distorção no tempo-espaço e de lá sai Giratina, que é basicamente o satanás dos Pokémons, e o leva para “o outro lado” do tempo-espaço. No “mundo da distorção”, onde nada faz sentido, Cyrus (que já tem muito com o que se preocupar) tenta capturar Giratina, não consegue, perde de você em uma batalha, e acaba preso nesse mundo pra sempre. Basicamente: se você tentar destruir a humanidade, você acaba sozinho, e seu “mundo ideal” acaba não sendo tão ideal quanto você pensava. Essa é a moral que a Nintendo e a Game Freak tentam dar para a história.

Outra representação de Cyrus, meio relacionada com o niilismo e meio relacionada com outro conceito, é o seu populismo e sua facilidade de manipular e forjar emoções. Apesar de não fazer muita questão de se mascarar quando você e ele se cruzam, quando você invade o HQ do Team Galactic e ouve um discurso de Cyrus a seus seguidores, nota-se que Cyrus utiliza palavras de motivação, cheias de encorajamento, mostrando que sabe fingir que é um grande general de guerra quando precisa que seus servos o apoiem. Normalmente eu me mantenho preso aos jogos quando analiso o personagem, mas não custa fazer uma curta menção ao anime — que, até certo ponto, se baseia no jogo — e notar que Cyrus inicialmente aparece como um “homem de negócios”, de terno e gravata e tudo mais, e sorri bastante.

Em Pokémon Ultra Sun/Ultra Moon, Cyrus tem um curto retorno no segmento pós-jogo do Team Rainbow Rocket. Ali, uma versão de Cyrus que vem de uma linha do tempo onde ele não foi detido por ninguém se vê frente ao protagonista, em um castelo nada familiar. Sua primeira pergunta é: “é esse aqui o ‘mundo ideal’?”. Sem saber o que exatamente aconteceu depois de capturar Giratina, Cyrus mostra que sua obssessão com o genocídio e o universo perfeito segue viva, mas já está perdendo força; primeiro, ele demonstra um interesse grande na sua RotomDex, e depois, chega a dizer que entende a vontade do protagonista de defender o mundo em que vive, mas que é “tarde demais” para ele voltar atrás nos seus planos. Um raro momento de humanidade de Cyrus, e uma metáfora descrevendo aquele cansaço com arrependimento que sucedem um surto de raiva. Ao perder, Cyrus reforça seu niilismo e te entrega a chave para sair da sala numa boa, prometendo a Rotom que não vai fazer nada com seu mundo, e que só deseja voltar ao seu “mundo ideal”. É a maneira dele de tentar encontrar paz com a sua decisão, sem desfazê-la completamente. Progresso? Talvez.

No geral, Cyrus é um em um milhão de pessoas socialmente desajustadas, com problemas e conflitos que vêm desde a infância, mas que decidem tomar a justiça por suas próprias mãos e criam um complexo de messias que os leva a extremos desumanos. As críticas dessas pessoas podem, às vezes, soar como válidas, mas são entregues de maneira completamente sociopata e com uma obssessão com morte, genocídio, ou qualquer coisa que implique um “fim” para que haja o “recomeço”. Para essas pessoas, é mais “simples” matar todo mundo — por mais que se perceba o trabalho que dá depois — do que tentar fazer as coisas do jeito “correto”. Exemplos de Cyrus existem em todo canto, seja na ficção ou na vida real: Zamasu, Eliot Rodger… apesar de que nenhum deles tentou literalmente destruir o universo, né.

Mas Pokémon é uma franquia que tenta ensinar lições simples e positivas mesmo no mais complicado dos vilões. Se você se identifica em um, dois, ou mil pontos com o personagem Cyrus, é só ver até onde suas ambições o levaram em todos os 5 jogos em que ele aparece, notar que ele falhou em todas, e entender que seu principal erro foi não buscar ajuda — não confiar nas emoções que ele tanto abomina. A obssessão com a perfeição inatingível é um padrão de vilões, não só na franquia Pokémon, mas Cyrus tem uma vertente muito específica dessa obssessão que é mais “fácil” de tratar do que outras.

Tem alguma coisa, e essa parte é 100% subjetiva, sobre a música de batalha do Cyrus que me faz imaginar uma pessoa “do bem” sendo dominada por uma negatividade fora do seu controle, se tornando um vilão, e partindo em uma destruição desenfreada na cidade. Meio que um “Majin Vegeta”. Isso pode ter um pouco a ver com o personagem em si influenciando o contexto da música. Falem o que quiserem de Cyrus, e especialmente de Pokémon Platinum, mas o homem tem uma presença enorme. Dentre todos os vilões da franquia até aqui, ele é o que apresenta mais profundidade, e não é à toa. Humanos são, afinal de contas, criaturas complexas, e quanto menos emoções tentamos mostrar com o corpo… mais emoções saem pelos nossos atos.

Se você sorrisse um pouquinho mais, Cyrus, acho que o Giratina ia aparecer na forma distorcida logo de cara

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Victor C
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autoridade em dragon ball, lenda do football manager, jornalista frustrado, ativista de saúde mental, modelo & atriz. escrevo mais quando tô triste.