MERCADO EDITORIAL

A sobrevivência das estantes e dos papéis

A pandemia da Covid-19 contribuiu para o aumento da compra online de livros e do consumo dos e-books, trazendo à tona a discussão de qual será o futuro das livrarias e dos próprios livros físicos

Bernardo Contri
Perspectivas em Movimento

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O espaço Book Hall, no Bourbon Country, em Porto Alegre, até setembro de 2023 ocupado somente pela Livraria Cultura, hoje abriga três lojas | Foto: Bernardo Contri

O impacto das lojas online de livros no Brasil, com os preços mais baixos, mais opções e entregas rápidas, ao lado da tecnologia do livro virtual, teve grandes consequências no mercado editorial.

Para o leitor, o cenário imediato é confortável. Caso queira ir em uma livraria, ele pode. Caso prefira realizar sua compra online, também tem essa opção. A escolha pelo livro físico ou digital dependerá do que cada pessoa prioriza ou busca naquele momento. Para o leitor, hoje existe a possibilidade de carregar uma biblioteca imensa dentro de um dispositivo móvel.

A longo prazo, no entanto, se as novas tecnologias forem a opção principal a ponto de dominarem totalmente o mercado editorial, os serviços da cultura literária tradicional, cultivada por anos, passam a ser ameaçados. É essa a preocupação enfrentada pelas editoras e livrarias atualmente.

O que os números dizem

As mudanças provocadas no comércio de livros são visivelmente notadas no fechamento de mais de 100 lojas da Saraiva, após ter a falência decretada em outubro e deixar de existir por completo. A Livraria Cultura quase chegou a esse ponto, depois de perder, entre 2020 e 2023, 15 das 17 lojas que tinha no país.

De acordo com a Nielsen BookData, empresa de serviços, pesquisas e análises do mercado editorial, o setor livreiro no Brasil, de modo geral, sofreu uma queda em 2022 em relação a 2021. As vendas de livros reduziram em 23%, de 409 milhões de unidades para 324 milhões, o que significou uma redução de 6% no faturamento final do setor, de R$5.83 bilhões para R$5.5 bilhões.

Segundo a mesma pesquisa, a venda de livros no Brasil em canais exclusivamente digitais, em 2022, pela primeira vez na história, superou a comercialização em livrarias e sites próprios: 35,2% do total foi comercializado em sites como Amazon, enquanto as lojas físicas representaram 26,6%. Os e-books também tiveram crescimento nas vendas, com o faturamento de bibliotecas virtuais aumentando em 69% de 2021 para 2022.

As consequências desse novo contexto para a edição de livros físicos e para as lojas presenciais que os vendem são sensíveis. A Nielsen Bookdata indicou que o faturamento das livrarias brasileiras caiu de R$ 1,183 bilhão em 2021 para R$ 1,082 bilhão no ano retrasado, uma diferença de quase 10% do total. Números apurados pela Associação Nacional do Livro (ANL) contribuem para a compreensão do cenário, revelando que 20% dos estabelecimentos que comercializavam obras literárias no Brasil fecharam durante a pandemia.

A luta dos livreiros

Para o consumidor, talvez as estatísticas e fechamentos de lojas sejam as mensagens mais claras de que há mudanças ocorrendo em virtude das novas tecnologias. No entanto, para quem trabalha no mercado editorial, os efeitos são sentidos na luta diária pelo ganha-pão.

Para Jussara Luccas, proprietária da Livraria Londres, não há dúvidas de que o movimento na loja reduziu desde o isolamento, e que as vendas seguem a mesma tendência. Ela, que também é fundadora da loja que opera no bairro Bom Fim, em Porto Alegre desde 1980, analisa que os números sempre se mantiveram constantes até 2019.

“Só agora as vendas vêm reduzindo. As pessoas vêm aqui, tiram foto dos livros, folheiam e saem, dizendo que vão comprar na Internet”, conta Jussara. “Elas reclamam dos preços, mas nós trabalhamos com preço tabelado, a margem de lucro sempre foi a mesma”

Carmen Menezes, dona da Traça Livraria e Sebo, no mesmo bairro e com mais de 37 anos de existência, relata prejuízos semelhantes no pós-pandemia. A loja tem um site próprio para vendas online e também comercializa pela Estante Virtual, tendo números equivalentes no ambiente digital e na loja física. Mas Carmen considera as vendas online mais trabalhosas

“O site da traça tem 24 anos, então existe uma confiança. Mas as pessoas que navegam nesses meios são muito inseguras e nervosas, então tem que dedicar muito tempo ao atendimento do cliente, o que é exaustivo”, explica. Ela também tem críticas à Estante Virtual. “Como passou por vários donos, mudou de política de marketing, e isso afeta o livreiro. Pela política de preço, pelo público, são várias questões, além dos valores cobrados de comissões”, diz.

A proprietária concorda que a existência dos sites digitais, assim como a possibilidade da leitura online, ameaça a existência da livraria física. Ela acredita que a procura pelas novas tecnologias é inevitável, projetando uma situação similar à substituição dos CDs pelo Spotify e dos cinemas pela Netflix.

As explicações e a esperança

Em contraste com a conjuntura negativa, o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, Maximiliano Ledur, não vê o futuro das livrarias e dos livros físicos com pessimismo. Ele acredita que o mercado editorial passou por uma readequação como aconteceu com outros mercados, o que causa certa agitação no setor.

“Por conta dessas turbulências, houve quedas inclusive no número de livrarias, mas agora vem se estabilizando. Ainda que as grandes tenham fechado, hoje abrem livrarias menores, redes menores, com um público mais nichado”, diz.

A opinião de Ledur vai ao encontro de dados mais recentes da ANL, que revelam que, entre abril de 2021 e novembro de 2022, mais de 100 novas livrarias abriram no Brasil. Também concorda com a análise do jornalista João Gabriel Batista, publicada no MoneyTimes, portal de notícias digital referência no mercado econômico e de investimentos. João acredita que existe um “espólio valioso” deixado pelas livrarias Cultura e Saraiva, agora a ser disputado por novas iniciativas literárias. Em Porto Alegre, por exemplo, o grande espaço onde se situava a Livraria Cultura, no Bourbon Shopping, hoje é dividido entre ela e mais duas livrarias.

E a leitura, vai acabar?

Que o mercado editorial está mudando não resta dúvida, mas, para Ledur, isso não indica que não haverá mais leitores. “A gente disputa o tempo das pessoas com celular, televisão, streaming, mas são formas de passar conhecimento, inclusive o e-book, que é importante porque cria e incentiva o hábito da leitura”, afirma.

A professora de literatura Fernanda Borges, doutora em Teoria da Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), também discorda de que haja inimizade entre o e-book e os livros físicos, enxergando como desnecessário “demonizar o Kindle”, do qual ela própria faz uso.

“A leitura virtual é complementar ao livro físico, ninguém deixou de comprar os livros físicos em detrimento só dos digitais. Muitos livros não poderiam nem ser facilmente colocados em e-book, porque a disposição textual é pensada para a forma física, e no digital perde sua autenticidade e objetivo”, opina.

Para Fernanda, sequer os celulares, tablets, televisões e videogames devem ser vistos como ameaças para a manutenção de um público leitor. Ela diz o que realmente considera que precisa mudar:

“É fundamental pensar que, por meio dos distratores, as pessoas também têm acesso ao conhecimento, e neles também se acessam narrativas. Mas é preciso, ainda, incentivar para que haja leitura; não só a leitura, mas a arte de modo geral”

Mauro Meirelles, sócio fundador da Editora Cirkula, acredita que o melhor caminho para a mudança do cenário atual é as pessoas entenderem que a leitura não se resume ao objeto livro, existe também a experiência que só a livraria fornece. Acrescenta que o Estado também tem um papel importante em relação ao mercado dos livros.

“Na França, a Amazon não pode fazer venda abaixo do preço de capa, nem entrega gratuita. Porque o governo interveio, e em um ano abriu livraria por toda Paris. A função do Estado é regular o mercado, e não deixar ele à mercê dos próprios interesses, porque ao mercado só interessa o lucro”, compara. Mauro enxerga que, no Brasil, o mercado editorial não está organizado. “Onde não existe organização política, existe o predomínio do mercado. Por isso, as grandes plataformas fazem o que querem”, critica.

Com alguns ajustes, o futuro da cultura literária física, então, pode não ser tão ruim como as estatísticas vem mostrando. “Os livros físicos e as livrarias não vão acabar, são coisas que te dão uma identidade. São espaços de cultura, conhecimento e de encontro”, acredita a professora Fernanda. Há razões, portanto, para acreditar na sobrevivência das estantes e dos papéis.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da Fabico/UFRGS

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