CULTURA

Além da passarela

Eduarda Portanova
Perspectivas em Movimento
6 min readFeb 5, 2024

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Por que a moda deve ser conservada e de que maneira pode ser vista como objeto museológico e artístico

Coleção Masp Renner quebra a barreira entre arte e moda com peças esculturais e pouco usuais, como a de Randolpho Lamonier e Vicenta Perrotta; | Foto: acervo digital Masp - Eduardo Ortega

O Metropolitan Museum of Art (MET) — localizado em Nova York — promove anualmente um evento chamado MET Gala, que marca o início da exibição de primavera do Costume Institute, sua seção designada para moda. O acontecimento tem como principal objetivo arrecadar fundos, por meio da venda de ingressos, mas também chamar a atenção do público para as peças expostas, que a cada ano exploram uma temática diferente.

Em 2024, a exposição ocorrerá de 10 de maio a 2 de setembro, e seu tema será: “Sleeping Beauties: Reawakening Fashion” (em português, algo como “Belas adormecidas: o despertar da moda”). Diferentemente dos anos anteriores, em que peças novas eram adquiridas pelo museu para o evento, a proposta de 2024 é inovar. O vídeo de divulgação no Instagram do MET revela que serão expostas 250 peças, retiradas da coleção permanente do Costume Institute e “reinventadas”, por meio de tecnologias diversas, como inteligência artificial, projeções, animações, entre outras.

Essa exibição vai propor uma experiência de imersão para os visitantes, explorando elementos sensoriais como cheiros, sons e o toque em diferentes texturas. Como forma de metáfora para a impermanência da moda, serão utilizadas imagens da natureza e paisagens sonoras. Algumas roupas da coleção estão tão deterioradas que nem sequer conseguem se sustentar em um manequim. Essas são as “Belas Adormecidas” (Sleeping Beauties). Para que o público possa visualizar as diferentes formas e níveis de deterioração, elas serão expostas em caixas de vidro e projetadas por meio de uma técnica de ilusionismo teatral.

Segundo o diretor executivo do museu, Max Hollein, em uma entrevista para a Vogue US, a exibição promete forçar as barreiras da imaginação e convidar o público para experienciar os elementos multissensoriais de uma peça, permitindo apreciar sua integridade, beleza e brilho artístico. Essa coleção promete apresentar a moda como arte e artigo histórico, evidenciando a sua relevância, mas também sua fragilidade.

Conservação: por que fazer e suas dificuldades

Não é fácil construir um acervo de moda. “Um dos principais problemas está na dificuldade de se constituir uma coleção”, diz Leandro Muniz, assistente curatorial do Museu de Arte de São Paulo (Masp), que participa da construção do acervo de moda do museu. Para exemplificar essa dificuldade, ele lembra do Victoria and Albert Museum (V&A), localizado em Londres.

Leandro explica que o museu londrino possui um dos principais acervos de moda do mundo, com mais de 24 mil peças que representam cerca de 400 anos de história. Apesar desse grande catálogo, o V&A ainda tem uma relevante lacuna: se limita, quase que na totalidade, à moda europeia.

Outro fator complicador é a fragilidade das peças. Um museu nunca poderá ter uma exposição permanente de moda. Isso porque, como explica Leandro, o têxtil não pode ser exposto por muito tempo à luz, que o desbota e deteriora. A exposição do MET, por exemplo, dura quatro meses. O Masp não excede três meses em suas exposições, pois acredita que esse é o tempo máximo que as peças aguentam, além disso, elas precisam ficar pelo menos nove meses guardadas antes de serem expostas novamente. Por conta dessas dificuldades, é possível compreender a razão de muitos museus não terem acervos de moda.

O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) tem como objetivo, desde sua criação em 2009, mapear e categorizar os museus do país. Até então, ele já possui mais de 3 mil museus cadastrados em seu sistema, e apenas 21 deles tem algo relacionado a moda em seu inventário. A pesquisa ainda não foi finalizada, então o número não é um reflexo definitivo da realidade, mas já demonstra como o têxtil é desvalorizado no meio museológico.

Mesmo com todas as adversidades, há locais que se dedicam a esse trabalho. Além do Masp, a Casa Juisi, localizada em frente à Praça da Sé, em São Paulo, é um exemplo. Iniciado como um brechó, em 2003, hoje o espaço conta com um acervo de mais de 35 mil peças, um dos maiores do Brasil, e faz isso de forma independente.

Quando Simone Pokropp e Junior Guarnieri decidiram criar o local, esse era um negócio pouco explorado. “Sentimos uma mudança no mercado e resolvemos sair do comércio. Não havia nenhum acervo mais pro fashion em São Paulo”, diz Simone. Ela não esconde as dificuldades de manter a Casa Juisi: “É muito trabalhoso, é preciso se dedicar e fazer a seleção certa. É um tiro no escuro, pois o mercado muda a todo momento. Não sei como ainda conseguimos viver com isso até hoje”. Eles trabalham também com empréstimo e aluguel de peças para o audiovisual. Isso acaba exigindo ainda mais cuidados com a conservação, pois as peças estão em uso constante e por isso acabam às vezes sendo danificadas.

Além disso, conservar as peças é bastante caro. “Ar, papel interno, ventilação, luz controlada, manuseio, sem ajuda é impossível”, diz Simone. Apesar de tudo, ela ainda encontra motivos para continuar. “Nosso país não tem cuidado com a memória. Acho importante salvar um pouco da história e contribuímos com isso resgatando e conservando a indumentária.”

Sophia Chuvas, de 20 anos, estudante do quinto semestre do curso de Moda na Unisinos, em Porto Alegre, diz que falta um estudo mais específico sobre conservação das peças: “Se fala sobre isso nas aulas de história, mas não de maneira aprofundada”. De acordo com ela, esse tema não está presente no currículo do curso e seria importante que fosse mais debatido. “Moda faz parte da história, e a história precisa ser discutida.”

Explorando a barreira entre arte e moda

Um dos projetos que valoriza essa relação entre moda, arte e história no Brasil é o Masp Renner. Leandro lembra que Pietro Maria Bardi, um dos fundadores do Masp, já demonstrava interesse em trazer peças de moda para sua coleção quando o museu foi fundado, em 1947. Ele promoveu vários experimentos esporádicos durante os anos 1950, incluindo uma escola de modelos. Mas o grande ponto de virada, como conta o assistente curatorial, foi a parceria com a empresa têxtil Rhodia, que proporcionou a aproximação da arte com a moda no museu.

Durante os anos 1960, a Rhodia começou a difundir seus tecidos sintéticos no Brasil, e, como forma de divulgação, desenvolveu uma coleção de roupas com o Masp. Foram 10 anos entre produção e circulação das peças, sendo mais de mil produzidas. Seu diferencial? Elas não eram feitas para serem vendidas. Em 1972, 79 peças da coleção foram doadas ao acervo permanente do museu, e somente em 2015 elas foram expostas ao público.

Leandro explica que a seção de moda sofreu uma grande mudança quando, em 2014, Adriano Pedrosa assumiu a direção criativa do museu e estabeleceu como principal objetivo da gestão expandir o acervo já existente. Após o sucesso da exposição Masp Rhodia de 2015, foi criado o Masp Renner. Em parceria com o movimento Renner Cultural, o projeto, que iniciou em 2018, já está em sua terceira temporada, que ocorrerá em março de 2024.

A curadoria da coleção é feita por uma parceria entre Adriano, um dos assistentes curatoriais do museu, e uma curadora-adjunta de moda, ligada ao mundo editorial. A terceira temporada, produzida entre 2022 e 2023, contou com Leandro Muniz como o assistente curatorial e com Hanayrá Negreiros, colunista da revista ELLE, como curadora-adjunta. Ao todo foram 10 duplas de estilistas e artistas, que abordaram de política a sustentabilidade em suas obras.

“Essa parceria [entre artistas e estilistas] existe desde 1910, porém não de forma tão sistemática. Ela não é mais a posteriori, é desde o começo”, diz Leandro. Segundo ele, essa sistematização é um dos principais objetivos do museu com o projeto. As duplas são escolhidas com base em lacunas apresentadas pelo acervo: “A expansão de um acervo está sempre ligada a lacunas.”

Muito mais que um vestido, a peça de Edgar de Souza e Jum Nakao é uma obra de arte | Foto: acervo digital Masp — Eduardo Ortega

As peças são feitas com o objetivo de serem expostas, e não usadas. “Desafiando a barreira entre escultura e roupa”, diz Leandro. Um exemplo é um dos vestidos produzidos pela dupla Edgar de Souza e Jum Nakao. Eles pegaram um dos manequins do museu, usado na coleção Masp Rhodia, e suturaram a roupa nele, de maneira que ela nunca poderá ser removida sem ser danificada.

Como as peças irão direto para exposição, e também por serem produzidas por artistas e estilistas em conjunto, elas destacam o elemento artístico da moda em prol de sua funcionalidade. Esse projeto, junto de outros, como a exposição do MET de 2024, reforçam que a moda é sim merecedora de seu espaço no museu e pode ser considerada arte.

Caso tenha interesse em conhecer um pouco mais sobre o projeto Masp Renner, assista aos vídeos sobre a primeira e segunda temporada, e navegue pelo acervo digital do museu.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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