Além do campo de batalha

Desde o ataque terrorista do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, e a resposta israelense na Faixa de Gaza, casos de islamofobia e antissemitismo cresceram em diversas partes do mundo

Lucas Moller
Perspectivas em Movimento
6 min readFeb 5, 2024

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O conflito provoca mortes, ferimentos, prisões e discriminações a muçulmanos e judeus | Arte: Freepik

Os eventos recentes, que tomaram proporção desmedida no Oriente Médio, haviam dizimado até o final do ano passado 22 mil vidas, sendo 20,6 mil palestinos e 1,4 mil israelenses, de acordo com o porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza e as autoridades israelenses, respectivamente. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 1,5 milhão de palestinos tiveram que deixar suas casas desde o começo dos ataques de Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Outra consequência que o conflito desencadeou foi o aumento do número de casos de preconceito étnico, racial e religioso contra muçulmanos e judeus. Na maior parte do mundo, os relatos de antissemitismo e islamofobia são constantes desde antes da guerra, mas se agravaram após o dia 7 de outubro de 2023, quando houve o primeiro ataque do Hamas e a resposta israelense.

O conflito entre Israel e Palestina já dura 75 anos

O movimento sionista surgiu como forma de resolver a questão do antissemitismo através da formação de um estado-nação exclusivamente dos judeus, e a proposta acabou ganhando força após o fim da Segunda Guerra Mundial. Precisamente em 1947, a ONU propôs um acordo para a criação de dois Estados: Estado árabe e Estado judeu. Os árabes, por entenderem haver uma desigualdade de divisão territorial e consequentemente de recursos, recusaram-se a assinar o acordo. Logo em seguida, em 1948, foi criado o Estado de Israel, gerando revolta por parte dos palestinos e uma guerra, a Guerra dos Seis Dias. A partir desse conflito, Israel tomou o território da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.

Em 1993, foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP) para assumir a administração política dos territórios palestinos, mas apenas em 2005 Israel deixou a região da Faixa de Gaza. Somente em 2012 a ONU reconheceu a Palestina (formada pela Faixa de Gaza e Cisjordânia) como um Estado-observador não membro, permitindo que a Palestina tivesse acesso a agências da ONU, além de sua admissão no Tribunal Penal Internacional. Em 2014, também houve conflito entre os dois Estados na Faixa de Gaza, causando a morte de pelo menos 2 mil pessoas. À medida em que as situações conflituosas ocorriam, tanto judeus quanto muçulmanos sofreram e ainda sofrem discriminação contra suas etnias e religiões.

Islamofobia no Brasil

A partir do conflito instaurado em outubro de 2023, não demorou para a comunidade muçulmana ser hostilizada por uma grande quantidade de pessoas ao redor do mundo pelas mortes de judeus em território israelense. Insultos islamofóbicos foram proferidos por meio de ameaças, assédios verbais, intimidações nas redes sociais e até agressões físicas.

Para avaliar as consequências que o ataque de 7 de outubro trouxe para os muçulmanos que residem no Brasil — estimados entre 800 mil e 1,5 milhão de pessoas segundo a Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (Fambras), foi realizado no mês de novembro um Relatório de Islamofobia no Brasil pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), da Universidade de São Paulo (USP). A partir da pesquisa, respondida por 310 pessoas, computou-se que 84% dos homens muçulmanos notaram ter aumentado entre pouco ou muito a intolerância contra a comunidade muçulmana. Para as mulheres muçulmanas, após o ataque do Hamas, aumentou entre pouco ou muito em 92% a intolerância.

Segundo o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, depois do começo do conflito, referido pelo representante dos palestinos como “genocídio e uma limpeza étnica”, aumentaram os casos de ódio contra muçulmanos e apoiadores da Palestina: “Passou a haver agressões, especialmente nas mídias sociais, mas não apenas nelas. As mulheres muçulmanas passaram a ter mais medo de andar na rua, porque elas se vestem mais caracteristicamente dentro de algumas regras alegadamente islâmicas, especialmente o véu”.

“Eu arrisco a dizer que essa é a maior islamofobia, arabofobia e palestinofobia da história do Brasil” , Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil

Rabah também declara que houve perseguições perpetradas por apoiadores de Israel no Brasil tanto contra palestinos, como também a acadêmicos, intelectuais, jornalistas, escritores, artistas e ativistas que apoiaram a Palestina e recusaram e denunciaram o incitamento ao genocídio israelense contra o território palestino. O presidente da Fepal, por fim, endossa: “Eu arrisco a dizer que essa é a maior islamofobia, arabofobia e palestinofobia da história do Brasil, e eu também arrisco a dizer que, no mínimo, rivaliza com a islamofobia e arabofobia instaladas no mundo ocidental a partir do 11 de setembro”.

Também no Relatório, foi perguntado aos participantes se entendiam que a cobertura jornalística sobre o ataque do grupo Hamas contribuía para a intolerância contra os seguidores do Alcorão. Entre os homens muçulmanos, 95% entendiam que a mídia influenciava, sendo pouco ou muito, para os casos de intolerância, enquanto 97,8% das mulheres muçulmanas concordaram que a relação da imprensa e seus estereótipos colaboraram com as perseguições contra a comunidade muçulmana.

A partir de especialistas e pesquisas sobre, entende-se que a cobertura jornalística instiga, mesmo que de forma involuntária, a incitação à intolerância. A doutora e professora em Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do deslocamento de palestinos Denise Fagundes Jardim avalia o papel da mídia ante os preconceitos sofridos por muçulmanos: “O modo de veicular a violência, como espetáculo, sem refinar mediações sobre modalidades estatais e de resistência a modos de dominação históricas, deu lugar à construção de um discurso único sobre a violência. Ela é condenável, mas não é incompreensível. Ela é inclusive atrativa, produtora de heróis. Mas nunca justificável. Ou seja, a violência como espetáculo midiático para consumo, likes, ou outrora a venda de jornais não deve colocar em risco a qualidade da informação”.

Antissemitismo no Brasil

Historicamente, o antissemitismo não é um fenômeno novo. Sua raiz carrega diversas épocas de estereótipos e discriminação, agravados durante episódios como o Holocausto. Depois do 7 de outubro, a comunidade judaica também foi e vem sendo alvo de insultos preconceituosos após o começo do conflito. No Brasil, dezenas de postagens com declarações antissemitas foram publicadas.

Em novembro, a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) divulgaram um levantamento que indicou um aumento no número de denúncias de discriminação e violência contra judeus. O estudo indicou que, após o início da guerra entre Israel e Hamas, o número de ataques preconceituosos disparou quase 1000%, incluindo tanto antissemitismo — que é a aversão contra povos de origem judaica -, quanto antissionismo — que se configura como oposição política ao sionismo, ideologia judaica com o intuito da existência de um Estado judaico. Dentre as condutas consideradas antissemitas, negar a existência e os efeitos do Holocausto ou reproduzir estereótipos como os de que judeus controlam a mídia ou a economia são exemplos de crimes, enquadrados no Brasil como preconceito, crime de ódio e até mesmo racismo.

A quantidade de eventos do tipo, assim como contra muçulmanos, com ameaças, assédios verbais e intimidações nas redes sociais e nas ruas, vem ocorrendo em um período extremamente curto, além de serem mais intensos do que o usual, tanto no Brasil quanto no mundo todo. Em um contexto global onde o antissemitismo está em ascensão, o Brasil não está imune a essa preocupante tendência. Para o presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul, Márcio Chachamovich, o antissemitismo aumentou a partir da falta de informação e pela desinformação, que se transforma em ódio, um ódio enquadrado como um crime de racismo.

Por meio de plataformas online, diversas pessoas destilam discursos de ódio por meio de “críticas” às ações do governo israelense, de forma rápida e sem filtros, mas, para Chachamovich, muitas vezes isso acaba alimentando preconceitos e desinformação contra a comunidade judaica. Entretanto, vale lembrar que não necessariamente atos de governos refletem as opiniões e crenças de todos os cidadãos do país.

Linhas estão sendo ultrapassadas

Em resumo, os resultados de ambas as pesquisas mostram um aumento da intolerância contra muçulmanos, muçulmanas, judeus e judias no Brasil após o ataque do Hamas, com os veículos de comunicação sendo apontados como um dos fatores que contribuíram para esse crescimento. As práticas tanto de islamofobia quanto de antissemitismo muitas vezes estão presentes de forma sutil e implícita, com frases que reforçam estereótipos preconceituosos. Ou seja, muito disso é fruto de generalizações e desconhecimento da sociedade sobre ambas as religiões.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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