ECONOMIA CRIATIVA

Arte pulsa em Porto Alegre

Eventos multiculturais independentes acontecem com cada vez mais frequência e se apresentam como alternativa em uma cidade que ainda conta com editais burocráticos de incentivo à cultura

Francisco Conte
Perspectivas em Movimento

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Para além de um espaço comercial, a Calçada Cuir proporciona trocas de vivências entre expositores e frequentadores da feira (foto: Francisco Conte)

Conversas paralelas de amigos empolgados, o DJ que toca e parece transportar quem o escuta à outra realidade, a poluição sonora vinda da avenida movimentada que subitamente se torna inaudível; em meio a tudo isso, encontram-se os artistas expositores da feira. Suas mesas organizadas com as mais diversas obras de arte são como mostruários que convidam o público a conhecer e interagir com as peças, e com quem as criou.

O dia extremamente quente não impediu que pessoas visitassem a “Calçada Cuir’’ — trocadilho com a palavra queer, esquisito em inglês — , que aconteceu no bar Pito, no dia 16 de dezembro de 2023, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre. Um evento multicultural que teve como atrações DJs, performances de dança e feira de artes visuais. “Eu me sinto bem apoiando pessoas que fazem o que realmente acreditam”, diz a estudante Cla Lacerda, de 18 anos, que encontrou nas feiras um espaço de acolhimento e identificação.

As feiras de arte independentes se tornaram eventos recorrentes em Porto Alegre desde a normalização da pandemia da Covid-19. Surgem como um suspiro transgressor ao engessado e burocrático sistema de arte atual. Editais complexos e concorridos tornam difícil a inserção de novos artistas no meio convencional da validação da arte, como exposições em museus, por exemplo. Além disso, proporcionam aos produtores a possibilidade de realizar o tão sonhado objetivo de ‘viver da própria arte’.

Para a coordenadora do curso de Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Flavya Mutran, esse novo sistema se insere em um contexto pós-pandêmico, época em que os artistas tiveram de se reinventar em espécies de quarteliês— os ateliês no quarto.

“Muitos tiveram que improvisar em seus quarteliês com o uso de diferentes materiais, que geram produtos como fotografia e serigrafia, o que provoca uma autonomia para o próprio artista”. O isolamento social proporcionou a penosa tarefa de exploração de novos modos de criar, assim como novas necessidades de existir enquanto artista.

Para Flavya, o aumento do número de feiras também se dá em função do descaso que o poder público demonstrava perante manifestações artísticas durante a pandemia. Os artistas como classe, então, acabaram encontrando maneiras de se inserir no mercado. “A gente viveu um período de muita repressão, estávamos sem editais, tinha acabado a Funarte, assim como acabaram os concursos para licenciatura por conta do novo ensino médio. Então eles [os artistas] se unem em coletivos para dividir essa responsabilidade de prospectar visibilidade”, explica a coordenadora.

Unir para resistir

É com os ideais de proporcionar espaços com trocas culturais e movimentar a economia criativa que múltiplos coletivos de artistas têm surgido em Porto Alegre, como a Galeria Gazzebo, que tem como uma de suas idealizadoras Ana Bertoldi, de 28 anos, graduada em Artes Visuais. “A Gazzebo é como uma incubadora de artistas que busca articular e profissionalizar os artistas da nossa geração’’, diz.

O coletivo — que já foi indicado ao Prêmio Açorianos — produz a Feira Canário, evento também multicultural que surgiu dessa necessidade que Ana percebeu de tornar o fazer artístico uma profissão. A primeira edição aconteceu em setembro de 2022, em parceria com o Bar do Osvaldo, no bairro Bom Fim, e foi um sucesso.

Para Ana, as feiras se tornam também um lugar de identificação e liberdade, tanto para os artistas quanto para quem frequenta: “É muito legal você poder olhar nos olhos da pessoa que fez aquela arte, trocar uma ideia, não é um núcleo academicista e fechado, a gente não se propõe a ser totalmente sério. Deixamos um lugar aberto para experimentação.” Com essa proposta, a Gazzebo se tornou uma espécie de referência entre as feiras de arte independentes.

Há uma troca essencial também entre os próprios produtores das feiras, que em meio a tantas dificuldades de manter um emprego formal, se propõem a construir coletivamente a resistência através da cultura. É uma pulsão instintiva, que os move para não deixar que o sistema burocrático e academicista da arte apague as suas existências enquanto artistas. Por isso, expõem nesses espaços alternativos mesmo recebendo muito pouco — às vezes nada — financeiramente.

Paulie Barros Silva, de 26 anos, designer e produtor, e Kairo Ferreira, de 27 anos, produtor, tatuador e cozinheiro, encontraram na produção cultural uma maneira de trabalhar com o que acreditam para além de um retorno monetário. Ambos se conheciam há algum tempo, mas não eram tão próximos.

Foi a partir de um evento da Gazzebo que deram os primeiros passos para criar a Calçada Cuir. “Quando Kairo me convidou para fazer as artes da divulgação da Cuir, eu fiquei com brilho nos olhos, queria há um tempo fazer parte do meio cultural”, conta Paulie.

No início enfrentaram diversas dificuldades, que seriam superadas com a experiência: desde pensar no papel higiênico que deve ter no banheiro até o cabo de luz que vai ligar um holofote.

A primeira edição da Calçada aconteceu em uma via pública no dia 2 de novembro de 2022, mas os produtores contaram com a parceria do Espaço Not Meat para os visitantes da feira utilizarem os sanitários e fazerem refeições. “Quando rolou a primeira edição, a gente pôde enxergar a potencialidade que o evento tinha e tudo que poderíamos alcançar. Imagina o que a gente poderia fazer se houvesse um financiamento público’’, diz Paulie empolgado.

A relação entre os produtores e os artistas expositores é de comunidade. Um dos motivadores da dupla para elaborar esses eventos é a classe se voltar para si e reconhecer as dificuldades enfrentadas pelos seus pares.

Pensando nisso, Paulie e Kairo idealizaram a Calçada Cuir como um ambiente focado no protagonismo LGBTQIA+ e em especial para pessoas trans. Isso se reflete nas escolhas dos artistas que terão uma mesa para expor suas artes.

“Eu percebi que era um caminho”, Aysha Piovesani multiartista e expositora com foco na produção digital

Aysha, 21 anos, começou a criar desenhos e pinturas digitais em seu “quarto estúdio”, usando o Photoshop, pois materiais como tinta à óleo, que ela tinha interesse, eram muito caros.

Atravessada pela pandemia, que “potencializou tudo” e a fez “enxergar de maneira diferente” sua própria produção, Aysha, então passou a ver nas feiras a validação material de sua arte.

Entre o trabalho formal de auxiliar de cozinha e alguns bicos de diarista, Aysha frequentava e expunha prints de suas criações digitais nas feiras, mas não conseguia ainda focar completamente nisso. Foi quando ela comprou um videogame Nintendo DS, após juntar dinheiro durante alguns meses, que passou a produzir muito mais e investir em feiras. “A primeira feira que eu vendi meu estoque inteiro foi no Dia das Mulheres, e aí eu percebi que era um caminho possível”.

Hoje em dia, as feiras somam a totalidade da sua renda, e só em 2023 Aysha expôs em mais de 11, um salto enorme em comparação às quatro de 2022.

Investimento que não chega

No ano de 2023 a Fumproarte (Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre) investiu 5 milhões no incentivo à cultura na cidade, atingindo o maior patamar dos últimos 30 anos. No entanto, a forma de acesso ainda é restrita àqueles que entendem sobre as burocracias que envolvem o processo de arrecadação de verbas.

A necessidade de desburocratizar os editais de incentivo à cultura se tornou consenso na 21ª Conferência Municipal de Cultura de Porto Alegre, realizada em outubro de 2023, assim como a urgência de marcos regulatórios para a garantia de que os investimentos cheguem concretamente aos produtores culturais. Sendo assim, demandas reconhecidas pela prefeitura, mas que ainda não se reverteram em políticas públicas efetivas.

Em meio a esse contexto maçante gerado pelo poder público, as feiras independentes acontecem de maneira orgânica e espontânea, criando espaços de convivências e trocas culturais indispensáveis para o pleno exercício da cidadania dos portoalegrenses.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem para o curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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