SAÚDE MENTAL

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Luiza Beber
Perspectivas em Movimento
7 min readFeb 5, 2024

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A importância do tratamento psicológico como prática democrática e plural

Na praça, de manhã, duas pessoas conversam entre uma placa que anuncia “Psicanálise na Praça: atendimento individual e gratuito aos sábados das 10h às 12h20”. O texto foi escrito com giz, em um quadro negro
O Coletivo Psicanálise na Praça completou cinco anos de funcionamento em 2023 | Foto: Isabelle Rieger

Fernanda Vial Costa tinha acabado de comemorar uma década de graduação no curso de Psicologia quando teve uma ideia. O ano era 2018, e a psicóloga se encontrava intensamente envolvida com a academia: além de ministrar aulas na Uniritter, também iniciava sua formação psicanalítica. O dia 14 de março de desdobrou como qualquer outro para ela. Quarta-feira, metade da semana, dia lotado. Foi somente à noite, no momento em que as ruas de Porto Alegre assumiam seu semblante sombrio e seus habitantes recolhiam-se em suas casas, que recebeu a notícia. A vereadora Marielle Franco havia sido brutalmente assassinada no centro do Rio de Janeiro.

Para a psicóloga, aquilo foi um choque total. Era inadmissível que uma mulher negra, lésbica, que lutava pelos direitos humanos, tivesse perdido sua vida em um ato tão covarde como aquele. A morte era de alguém que criava espaço para o que era invisível, dava voz para o que era silenciado. Mais que um assassinato literal, o que acontecia naquela noite para Fernanda era um assassinato da palavra.

A partir disso, deparou-se com um comando interno que não se calaria tão cedo: “Devo fazer algo”. Mas o que ela, uma “semi-psicanalista”, interiorana tornada porto-alegrense, poderia fazer para auxiliar nessa situação que mobilizava a totalidade do povo brasileiro? Era a questão que se instalava em sua mente.

Para mim, psicanálise é isso, entrega para o inusitado, para o novo, comenta Fernanda

Algumas semanas depois, ela topou com uma edição da revista Cult. Era uma publicação relativamente antiga, que veiculava uma reportagem sobre o Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt, de São Paulo. Foi o primeiro contato que Fernanda teve com uma iniciativa de psicanálise no âmbito da saúde pública. Nunca tinha visto algo assim antes. Intrigada, a psicóloga mandou uma mensagem para a organização. Essa, por sua vez, prontamente respondeu, propondo que ela fosse à capital paulista conhecer o trabalho realizado na prática.

Para ela, essa possibilidade de atender pessoas à margem da sociedade conseguiu finalmente satisfazer o desejo que sentia desde o mês de março. Era sua chance de reagir ao assassinato de Marielle Franco: de seguir, de alguma forma, com o trabalho tão essencial realizado pela vereadora.

“Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Para mim, psicanálise é isso, entrega para o inusitado, para o novo. Eu cheguei e pude trabalhar com eles. Os meus dois primeiros atendimentos na praça foram lá porque eles me deram a possibilidade de vivenciar isso”, comenta Fernanda, hoje com 40 anos, sobre os dias que passou em São Paulo.

Quando retornou para Porto Alegre, pôs-se ao trabalho. Ela juntou colegas que achou que pudessem se interessar pela ideia e foi em busca de um local em que fosse possível realizar seus atendimentos. Optou pela Praça da Alfândega, onde o trabalho se mantém até hoje. O plano era oferecer sessões gratuitas, abertas ao público, todos os sábados, durante três horas. As pessoas chegariam, pediriam por uma sessão e poderiam conversar com um profissional durante uma hora.

Dito e feito: em julho de 2018, onze profissionais começaram os trabalhos. Na primeira semana, muitos foram os curiosos que flertaram com a ideia. Aproximaram-se, afastaram-se. Mas apenas uma pessoa sentou-se e pediu uma sessão. Esse indivíduo seguiria retornando todo o sábado durante alguns anos.

Atualmente, o “Psicanálise na Praça” conta com uma média de dez profissionais ativos, que seguem atendendo semanalmente nos sábados. Fernanda diz que o trabalho realizado constitui, acima de tudo, uma tentativa de democratizar a psicanálise. O Coletivo busca desmistificar esse lugar superior e elitizado em que a prática é por vezes colocada, que acaba afastando as pessoas no lugar de atraí-las.

Duas mulheres, de costas, caminham lado a lado na Praça da Alfândega segurando cadeiras de praia
Os psicanalistas prestam atendimentos na Praça da Alfândega | Foto: Isabelle Rieger

É importante frisar que os Coletivos, como o “Psicanálise na Praça”, constituem apenas uma, em uma gama de alternativas para se obter atendimento psicológico gratuito no Brasil. Nesse sentido, o Sistema Único de Saúde (SUS) desenvolveu, em 2017, a Rede de Atenção Psicossocial, que tem como objetivo possibilitar que portadores de transtornos mentais tenham acesso a um tratamento digno, que contemple suas necessidades. Para conseguir uma consulta, é preciso primeiramente marcar um atendimento com o clínico geral de uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Esse, por sua vez, é responsável por encaminhar o paciente a um atendimento especializado — o que pode demorar um tempo devido à alta demanda e à simultânea baixa quantidade de profissionais disponíveis.

Além disso, existem também as chamadas “Clínicas-Escola”, usualmente montadas por graduandos do curso de Psicologia nas universidades. Nesse caso, os estagiários oferecem atendimento psicológico aberto ao público, gratuito ou com o preço muito abaixo da média. As vagas, porém, acabam sendo limitadas, por isso uma nova agenda de horários é aberta periodicamente, normalmente no início de cada semestre. Esses espaços, assim como todos os outros que contemplam as alternativas mencionadas, procuram, acima de tudo, proporcionar um lugar de escuta para aqueles que o necessitam.

Na prática

Foi essa mesma necessidade que levou o estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Francisco Conte, de 22 anos, a entrar pela primeira vez no consultório de um psicólogo. Cisco, como é chamado, era uma criança quieta e reservada. Aos oito anos, passou por um momento difícil, e sua mãe, percebendo alterações no seu comportamento, decidiu levá-lo a uma consulta. Os atendimentos duraram cerca de três meses, até o momento em que precisaram ser interrompidos, porque os horários eram limitados e sua mãe tinha de faltar ao trabalho para levá-lo, comprometendo a renda da família.

Ele foi levando a vida como era possível. Lidava com episódios depressivos e alterações de humor da forma que conseguia. Foi quase uma década depois, aos 17 anos, que Francisco retornou à terapia. Na época, sua mãe trabalhava como diarista na casa de uma psicóloga, com quem comentava eventualmente sobre a saúde do filho.

Certa vez, essa terapeuta mencionou a possibilidade de realizar uma consulta gratuita com Francisco. Os dois se deram muito bem, e o primeiro atendimento deu início a uma série de sessões que duraria em torno de um ano. Francisco já passou pela psicanálise, pela terapia dos esquemas e pela cognitivo-comportamental. Já teve experiências com várias clínicas e diversos profissionais, e deixa muito claro o lugar fundamental do tratamento em sua vida e trajetória.

“As minhas experiências com a terapia desde a infância, com certeza, me emanciparam. Me tornaram uma pessoa emancipada em relação aos meus processos. Ter seis irmãos, vir de uma família pobre, é um fator muito externo a qualquer pessoa. E como isso influencia a vivência, a configuração de alguém? A terapia vem para mim nesse sentido, de entender as minhas estruturas, a maneira como eu me relaciono com o mundo a partir das coisas que aconteceram comigo”, reflete o estudante.

A constituição do sujeito por meio da palavra

“Toda palavra, sim, é uma semente.” Essa frase é proferida pelo pai do protagonista do romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Na cena em questão, o personagem principal discute suas angústias em retornar à casa da família, da qual havia se retirado. O pai, em uma tentativa de fazer com que o filho compartilhasse seus sentimentos, diz:

“Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo”.

A palavra possibilita que as pessoas se constituam como sujeitos. Ela amplia as percepções sensoriais, faz o simbólico se tornar palpável. Representa a alternativa mais simples que existe — e também a mais efetiva — para conseguir dar sentido às coisas.

É com esse pensamento que trabalha a psicóloga Nathalie Magrini, de 54 anos. Junto de outras duas profissionais, ela também faz um trabalho de “escuta voluntária”, na Praça Roosevelt, em Bragança Paulista, no estado de São Paulo. Suas conversas se dão principalmente com moradores de rua e dependentes químicos, que ficam circulando pelo local.

A terapeuta diz que, acima de tudo, não tem o intuito de mudar completamente a vida dessas pessoas com o seu trabalho. Ela deseja, primordialmente, proporcioná-las um local em que possam compartilhar seus pensamentos, seus anseios e devaneios. “Queremos fazer apenas com que eles possam falar. O processo analítico vem através da linguagem, da fala. Em muitos momentos, quando o paciente está falando sobre si mesmo, ele começa a resgatar a própria identidade, que a rua muitas vezes vai tirando.”

Quando os espaços de escuta não são disponibilizados para as pessoas marginalizadas, é arrancada uma possibilidade de elas pensarem sobre si mesmas — de se reconhecerem. Olhar para si certamente não é tarefa fácil de sustentar, mas todos devem ter o direito de tentar realizá-la.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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