Insegurança alimentar

Hoje não dá”

Em 2022, o Brasil voltou ao mapa da fome. O reflexo de uma crise social que pode ser observada diariamente nas principais vias de Porto Alegre

Nycolas funk
Perspectivas em Movimento

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“Hoje não dá”, “Não consigo”, “Não tenho”. Caminhar pelos arredores dos principais supermercados da cidade de Porto Alegre é, há algum tempo, um exercício de desculpas e respostas automáticas. As súplicas por dinheiro e comida chamam a atenção de quem caminha em direção aos enormes pavilhões climatizados que abrigam, por ironia, grandes quantidades do que se pede na entrada. A percepção de que, a cada dia que passa, mais pessoas estão pedindo por alimentos não é errada. A fome aumentou. A insegurança alimentar, por consequência, também.

“Às vezes as ‘pessoa’ falam: Ah, trabalhar não quer, só sabe pedir”, Priscila de Lima, desempregada

A receita do imaginário popular de como conseguir alimento parece óbvia. Trabalhe, ganhe seu salário, compre o alimento e coma. Entretanto, as histórias de mulheres e homens sentados em frente aos supermercados indicam um perfil de pessoas cuja necessidade por alimento é tão grande que fica impossível dedicar-se a um emprego que os tire oito horas do dia. Esse tempo é precioso na possibilidade de arrecadar o leite que vai servir de sustento para o filho e o ovo que auxiliará na “forração de estômago” da família inteira.

“Às vezes as ‘pessoa’ falam: Ah, trabalhar não quer, só sabe pedir. Mas ninguém sabe, eu já trabalhei ‘de tudo’. Já passei até em concurso pra limpeza urbana. Mas aí, como eu vou ficar mais de um mês sem receber, deixar a pequena com quem?”, diz Priscila de Lima, de 26 anos, que segurava a filha Érika, de dois anos e meio, nos braços.

O depoimento dela explica algumas das dificuldades apontadas pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). A pesquisa do órgão, coletada em 2022, revelou que a capital do estado tem mais de 719.000 pessoas em algum nível de insegurança alimentar e, destas, aproximadamente 147.000 enfrentam a fome crônica.

A história de Priscila, contada em meio a pedidos contínuos por ajuda, dá luz a alguns agravantes e é um reflexo dos resultados apresentados. Ela explica que aluga um quarto conjugado com a filha em uma espécie de pensão próxima ao bairro Santana, em Porto Alegre. Diz receber um auxílio do governo, mas não revela o valor. Conta, apenas, que é insuficiente para suprir todas as necessidades básicas delas. Priscila diz que as creches onde a menina tem vaga garantida ficam próximas ao seu antigo endereço, a Vila Cruzeiro, na zona leste. Érika observa a mãe enquanto come “bolachas Maria” que se despedaçam em suas mãos. Elas dividem o pacote.

A solidariedade pode alimentar, mas muitas vezes não nutre | Foto: Freepik

De volta ao Mapa da fome

A insegurança alimentar, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), é “a falta de garantia e acesso regular e permanente aos alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sua sobrevivência”. Já o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, divulgado em 2022, demonstra que 33,1 milhões de pessoas não têm garantia sobre o que comer — um aumento de 14 milhões de novos brasileiros nessa situação. Inclusive, o país voltou ao chamado “Mapa da fome”, lista que parecia ter definitivamente deixado para trás em 2014. Nesses dados, há, pela primeira vez, a inclusão de números sobre a categoria “insegurança alimentar moderada”, que é onde se enquadram as dietas de muitos que ficam nas portas dos supermercados.

A nutricionista Cristina Fabian, diretora de segurança alimentar e nutricional da Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Caxias do Sul, na serra gaúcha, explica que existem perfis diversos de pessoas que se alimentam de forma inadequada ou insuficiente. “A fome é diferente. Quando falamos da insegurança alimentar do tipo moderada, estamos falando da falta de certeza do que se vai comer e, também, de uma adequação deficitária, ou seja, é aquela pessoa que teve que adaptar sua fonte de proteína à salsicha, que é a de menor valor no mercado, por exemplo. O que, de longe, não é o mais saudável. E, a falta de saúde afeta tudo o que um indivíduo desempenha no seu dia a dia. Então, há o que chamamos de ruptura”, diz ela, que foi a responsável por comentar a pesquisa durante o encontro do Conselho Regional de Nutricionistas da segunda região (CRN2). A fome, por sua vez, é um estágio avançado da insegurança alimentar. Considera-se que uma pessoa “passa fome” quando, dentro de sua rotina, há lapsos frequentes de mais de um dia sem refeições.

“A gente não escolhe o que come, come o que as pessoas dão”

No sábado, dia 15 de dezembro de 2023, a dez dias de uma data reconhecida pela fartura de alimentos postos à mesa, o movimento de consumidores no maior supermercado da Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, é alto. Os jornais haviam anunciado uma onda de calor que viria a confirmar o dia mais quente da história recente da capital gaúcha. Nesse cenário, postado estrategicamente à sombra da marquise que entremeia a entrada e a saída dos clientes, Aldino Saldanha, de 38 anos, esperava ganhar algum alimento que pudesse levar para casa.

“A gente tenta sempre pedir o que rende mais, né? Pra família toda conseguir comer. Pra mim não adianta eu pedir um pastel da padaria. Porque aí só eu como. Vou chegar em casa, eu já vou estar com fome e minha família também. Não vou dizer que não peço, mas só peço se vejo que tá fácil. Tipo, a pessoa pegou o lanche e oferece, claro que eu não nego.”

A proximidade geográfica com o lugar onde está a comida parece ser o último recurso de Aldino, que, assim como Priscila, também tem uma casa, uma família e, de acordo com ele, nenhum contato recente com drogas, fato este que ele acrescentou com certa insistência. Aldino veste roupas simples e, aparentemente, limpas. Detalhes que revelam sua busca por serviços em obras da região. Sua fala, um tanto trêmula, não sabe, mas acaba de o definir como alguém que passa por insegurança alimentar moderada, explicada por Cristina.

“A gente pede o que sabe que sustenta mais, né. Ovo, leite, às vezes quando eu vejo que tá em promoção, eu peço um quilo de frango congelado. Mas a maioria das pessoas dá um sanduíche, dá ‘umas miojo’ e bastante bolacha, assim. A gente não escolhe o que come, come o que as pessoas dão”, diz Aldino.

A quantidade de calorias e nutrientes que um homem de 38 anos, como Aldino, uma mulher de 26, como a Priscila e até de uma criança de 2 anos e meio, como Érika, necessitam é relativa. Porém, o que é certo pensar é que a base de sua alimentação deve ser de controle próprio e, mais do que isso, deve gerar, pelo menos a curto prazo, a certeza da nutrição básica. E não é isso que acontece com eles e com muitas outras pessoas que dependem da solidariedade de alguém para comer.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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