TECNOLOGIA

“Mãe, estou falando com meu amigo no Discord!”

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Essa frase tem se tornado cada vez mais comum nos últimos anos pela ascensão da plataforma que tem uma forma única de socializar pela internet

O Discord recebeu esse nome de seu criador, Jason Citron, pois “soava legal” e tinha relação com o diálogo | Foto: unsplash.com -Ella Don

Durante o período da pandemia, com a impossibilidade do contato presencial, as pessoas buscaram outras formas de socialização, e fazer amizades pela internet se tornou ainda mais comum. Nesse contexto, uma plataforma teve um crescimento exponencial de usuários nos últimos anos: o Discord.

Esse aplicativo online e gratuito foi criado em 2015 pelo americano Jason Citron e recebeu esse nome pois “soava legal” e tinha relação com o diálogo. Tinha como público-alvo jovens que gostam de videogames e jogos digitais em geral. Porém, com o isolamento social, começou a ser utilizado por diferentes grupos, quase triplicando seu número de usuários. De 56 milhões em 2019, passou para mais de 150 milhões no final de 2021, sendo 3 milhões no Brasil. A plataforma permite aos usuários criarem servidores — como se chamam as comunidades online — e se comunicarem por texto, voz ou vídeo. Existem tanto os servidores públicos, frequentados por milhões de pessoas e relacionados a temas específicos, quanto os privados e menores. De qualquer forma, esses também normalmente são norteados por algum gosto em comum entre seus membros.

Entretanto, desde a sua origem, o Discord é repleto de polêmicas e denúncias de crimes devido a facilidade que os usuários têm de manter o anonimato. No dia 25 de junho de 2023, por exemplo, o programa Fantástico, da Rede Globo, divulgou uma reportagem sobre o lado nefasto da plataforma. A matéria abordou crimes que envolviam automutilação, crueldade contra animais, disseminação de pornografia, ideias racistas, homofóbicas, misóginas e neonazistas. Mas, afinal, considerando esse contexto, é possível desenvolver amizades verdadeiras e duradouras em um meio que pode ser tão hostil? A resposta é sim!

Do Discord para a vida

O estudante de 18 anos Lucas Furtado Ruiz, de São Bernardo do Campo, em São Paulo, começou a utilizar o Discord na pandemia, quando ele e seus amigos da escola criaram um servidor para jogar, conversar a até fazerem juntos as atividades da escola. Porém, Lucas acabou perdendo o contato com eles e passou a utilizar o aplicativo para procurar por novas amizades online. Através do Twitter, encontrou diversas pessoas que compartilhavam o gosto pela série “Pokémon” e acabou entrando em alguns servidores do Discord com esses usuários. Em um deles, em dezembro de 2021, conheceu quem hoje considera seu melhor amigo, o também estudante João Pedro, de 19 anos, natural de São José do Rio Preto, mas que atualmente vive na Itália. Após aproximadamente dois anos de amizade pela internet, finalmente conseguiram se encontrar presencialmente na cidade de Lucas, em novembro de 2023, e passar uma tarde juntos, quando seu amigo retornou ao Brasil em uma viagem de férias. Até hoje os dois mantêm contato praticamente diário e possuem uma relação de “irmãos de consideração”, como define Lucas.

Apesar de histórias como essa serem cada vez mais comuns, fazer amizades pela internet ainda é um tema que divide opiniões, especialmente entre pais e responsáveis, como se amizades online fossem sempre um problema e tivessem menos valor que amizades “tradicionais”. Porém, a internet permite aos usuários encontrar com mais facilidade pessoas com gostos e interesses em comum, facilitando a afinidade, o que nem sempre ocorre dentro da bolha do trabalho, da escola ou da faculdade. Inclusive, um estudo, divulgado pelo G1, realizado pelo pesquisador Vili Lehdonvirta, do Helsinki Institute for Information Technology, e pelo professor Pekka Räsänen, da Universidade de Turku, da Finlândia, revelou que os jovens se identificam mais com os seus amigos online do que com os “offline” e que as relações estabelecidas pela internet podem ser tão fortes quanto laços familiares. A pesquisa foi feita com 4.299 jovens da comunidade digital Habbo que vivem no Reino Unido, Japão e Espanha.

“O Discord é hoje a comunidade social mais positiva que eu conheço”, João Victor Santos Soares, estudante de direito da Uesc

O estudante de direito da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) João Victor Santos Soares, de 22 anos, é o administrador central do servidor de Discord do canal do Youtube “Fearnalizando Games”. O canal conta com aproximadamente 23.000 membros fãs de Pokémon. Ele revela que administrar o servidor não é uma tarefa nada fácil, mas, para isso, existe uma série de regulamentos e proibições cadastrados através de programações, tanto dentro do próprio aplicativo, que apresenta diversas funcionalidades, quanto pelo uso de bots (softwares que executam tarefas automatizadas, repetitivas e pré-definidas). Além disso, o servidor tem uma equipe de administração com 10 a 15 membros diariamente ativos vigiando os chats.

João Victor afirma que, apesar de ter construído amizades verdadeiras na plataforma, várias pessoas tóxicas também aparecem, mas considera o impacto geral do aplicativo em sua vida positivo. “O Discord é hoje a comunidade social mais positiva que eu conheço”, complementa. Ao contrário de outras redes sociais, no Discord não existe a necessidade de postar fotos, se mostrar, expor a vida pessoal, é um lugar para compartilhar informações sobre jogos, fazer piadas, ter uma vida paralela em que é possível apenas se comunicar. “Sem precisar se expor para ser alguém”, acrescenta. É assim que ocorre também o lado ruim do anonimato, mas por mais que grande parte dos jogos possuam seus sistemas específicos de comunicação, a plataforma permite criar a sua própria comunidade de forma muito mais geral, autônoma e com a possibilidade de juntar vários membros, unindo tudo isso em um lugar só, sem um foco específico.

Portanto, por mais que o anonimato seja um dos fatores que levou ao crescimento da plataforma, João Victor acredita que isso deve se manter assim até certo ponto. Para a plataforma se tornar um lugar mais seguro, ele acredita que o Discord poderia tornar obrigatório o processo de identificação, exigindo mais informações dos usuários, como e-mail e celular, que permitam saber quem é quem, ao invés do completo anonimato. Mas João Victor continua defendendo que não seja necessário postar foto e nome para usar a rede.

O que diz a psicologia?

A psicóloga Bianca Ebeling, licenciada e graduada pela UniRitter, afirma que não é possível fazer uma comparação entre amizades online e tradicionais. Ela considera que a maneira de se relacionar foi se modificando. Para Bianca, hoje existem mais possibilidades de circular entre diferentes grupos além da família, do bairro, da cidade e que um tipo de relação não anula a outra.

Mas, assim como as redes podem ser um facilitador de contato, existem algumas dificuldades, como o estabelecimento de limites. “Ah, como estou em minha casa, posso fazer como eu entendo”, exemplifica a psicóloga, lembrando que o online não proporciona uma percepção de fisionomia e do estado emocional do outro. Há, portanto, uma dualidade. Ao mesmo tempo em que a internet é um facilitador, pode fazer mal, gerar angústia e medo.

“Nenhuma ferramenta é boa ou ruim, tudo está relacionado com a forma que utilizamos o que temos e o que fazemos com aquilo”, afirma Bianca. No final das contas, a responsabilidade é individual e é preciso saber utilizar as redes sociais para tirar proveito delas. É necessário saber estabelecer limites, combinar com os outros usuários questões como disponibilidade, intimidade, aspectos que às vezes na presença física funcionam de forma diferente. “Para que estejamos atentos a quem são essas pessoas, com quem estamos nos relacionando no online. Essa relação faz bem? Eu gosto da forma que essa pessoa me trata? Muito nesse sentido, que não é tão diferente da presença física”, explica a psicóloga.

Mesmo com todas as polêmicas que envolvem o Discord e as amizades virtuais, elas não têm tantas diferenças em relação às amizades tradicionais como muitos pensam. Os benefícios e malefícios podem ser os mesmos, já que tudo gira em torno do ser humano e de como ele escolhe fazer uso das tecnologias. O Discord é apenas mais uma rede social que reflete o funcionamento da sociedade. Com uma boa dose de precaução, é possível se divertir e cultivar a amizade, e isso não vale apenas para a internet, e sim para a vida como um todo.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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