SAÚDE MENTAL

No limbo do diagnóstico

Segundo a Associação Brasileira do Déficit de Atenção, no Brasil, mais de 2 milhões de adultos possuem TDAH, mas muitos desses casos não são tratados

gabriel ortega
Perspectivas em Movimento

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Entre os sintomas mais comuns ligados ao TDAH, estão: desatenção, procrastinação e problemas com organização e planejamento | Foto: cookie_studio no Freepik

TDAH é a sigla para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Caracterizado por um conjunto de sintomas, como falta de atenção, aumento de distratibilidade, inquietação forte, agitação interna e impulsividade, o transtorno é geralmente associado às crianças, mas está sendo comprovado, cada vez mais, que adultos viveram décadas sem ser diagnosticados com essa síndrome. É consenso entre pesquisadores que os sintomas acabam se intensificando e se tornando mais perceptíveis caso não haja tratamento. Além disso, sabe-se que o transtorno está ligado a uma alteração química no cérebro e que existe uma influência genética, mas não hereditária.

Segundo o psiquiatra Vitor Torrez, que é formado em Terapia Comportamental Dialética (DBT) e possui experiência na área de doenças neurodegenerativas, trabalha-se com uma divisão bem consolidada em três domínios principais para os sintomas do TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade, mas também se estuda categorizar um novo domínio, o da desregulação emocional.

“Isso é de família”

Márcia Ximendes tinha 21 anos, em 1989, quando passou em primeiro lugar para o curso de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Ela trabalhava em um cursinho pré-vestibular de Porto Alegre, estudava lá e tinha se encantado com os seus professores de História e Geografia, o que fez com que almejasse uma carreira nesse ramo.

Seus pais ficaram surpresos com a notícia da sua classificação. Seu pai, Noé, ficou muito feliz. Sua mãe, Elsa, no entanto, teve outra reação. Decidiu telefonar para uma tia sua que havia sido diretora da primeira escola em que Márcia havia estudado. Foi lá que uma professora de Educação Física e a diretora fizeram uma reclamação para os pais de Márcia alegando que ela tinha algum “problema mental” e que era “retardada” por não conseguir aprender direito: “A ligação não era só para contar a notícia. Tinha muito de querer jogar na cara da minha tia, também”, afirma Márcia. Nas aulas de caligrafia, por exemplo, a professora zombava dela por não conseguir acompanhar a turma e por ser desatenta.

Essa reclamação acabou gerando um problema para a família: Elsa entendeu que chamarem a sua filha de “retardada” era uma afronta a ela mesma e a sua educação. Por isso, os pais acabaram trocando Márcia de escola, mas a cobrança ficou maior. Ela fazia as tarefas de casa, estudava, mas, na hora das provas, travava e não se lembrava do conteúdo. Com as notas ruins, vieram as punições, como cuidar dos filhos da irmã mais velha. Além disso, sua mãe a xingava de burra e a comparava com a outra irmã, que tinha resultados melhores. Com isso, Márcia rodou duas vezes na quinta série.

Os castigos e a pressão da mãe continuaram, e Márcia foi para uma escola particular, onde ela conseguiu superar algumas dificuldades. Infelizmente, porém, por problemas financeiros, seus pais não conseguiram pagar as mensalidades, o que impediu Márcia de realizar as provas bimestrais, fazendo com que ela rodasse mais uma vez. Sua experiência escolar, portanto, foi extremamente difícil. Mesmo assim, ela conseguiu passar em primeiro lugar na PUC para História.

O entusiasmo do início da graduação começou a diminuir logo em seguida. Para dividir as mensalidades do curso com seus pais, Márcia teve que trabalhar de manhã e de noite para estudar no período da tarde. Com a alta carga de trabalho e aulas que faziam com que ela se sentisse um “peixe fora d’água”, pensou em desistir já no início do primeiro semestre. O ultimato ocorreu quando os problemas financeiros voltaram, e sua família não conseguiu bancar mais a metade da mensalidade. No fim do primeiro semestre, ela tinha rodado na maioria das cadeiras e, como não conseguia acompanhar o conteúdo, não viu sentido em manter os estudos.

Já nos anos 2000, quando Márcia passou por uma crise depressiva que não melhorava com nenhum remédio, seu psicólogo da época decidiu aplicar nela um teste para TDAH. Com um novo diagnóstico e um novo tratamento, tudo passou a fazer sentido: ela não era “retardada, burra e doente mental”, ela tinha TDAH, que nunca tinha sido tratado.

Márcia já estava casada e com dois filhos quando recebeu o diagnóstico. Alguns anos depois, eu, seu filho, também seria diagnosticado com o transtorno. Quando conversamos sobre a síndrome, ela sempre repete a mesma frase: “Tu tem, eu tenho e teu avô certamente tinha. Isso é de família”.

Uma nova perspectiva

Mesmo sendo diagnosticado desde os 12 anos, eu nunca tive uma relação boa com o TDAH. Embora os profissionais fizessem o trabalho deles- de explicar o que estava acontecendo comigo, de que eu não era pior do que ninguém e nem melhor, só funcionava de um jeito diferente,- o ambiente na minha volta nem sempre foi receptivo para minhas necessidades.

Desde o início, o tratamento envolveu acompanhamento psicológico e uso de remédios. Na minha escola, não tinha nenhum outro colega que passava por aquilo que eu estava vivendo. Parecido com a minha mãe, eu me sentia um peixe fora d’água na minha turma. Mesmo que eu fosse um aluno aplicado e dedicado aos estudos, eu nem sempre conseguia acompanhar o conteúdo, nem sempre conseguia estar presente nas aulas, e isso se tornou um problema várias vezes. Me recordo dos professores zombando das minhas dúvidas, da minha falta de atenção e disciplina. Olhando para trás, eu noto como eles não estavam preparados para lidar comigo. Em um conselho de classe, eu escutei de um professor que ele achava que TDAH era um tipo de autismo, de que eu ia ser um aluno não-funcional, que se eu não estivesse faltando aula, eu estaria ou dormindo, ou conversando e atrapalhando a aula dele. No fim, ele falou num tom de elogio: “Mas tu é supernormal!”.

Enquanto, na infância, eu tomar Ritalina era algo estranho para meus colegas, quando cresci, alguns pediam alguns comprimidos pensando que, ao tomar a pílula milagrosa, eles conseguiriam atingir um novo ápice de atenção. Por muito tempo, o assunto sobre os remédios que eu tomava envolviam o ponto de que a minha inteligência estava intrinsecamente atrelada ao remédio, de que qualquer um com o remédio seria mais inteligente.

Mesmo assim, quando eu estava me formando no colégio, duvidava que conseguiria ter algum tipo de sucesso acadêmico. Logo quando saí da escola, passei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para História. Entrei com 17 anos e, desde o início, um fantasma do possível fracasso em função do diagnóstico rondava meus estudos.

A carga de leituras, a cobrança de produção de textos e a rigidez acadêmica sempre foram as coisas que me desanimaram. Encontrei tudo isso ao longo do curso e, felizmente, consegui trocar para Jornalismo. Logo no início do segundo semestre, tive uma surpresa. Uma professora declarou na sua primeira aula que tinha o diagnóstico de TDAH e que o início de suas aulas podiam ser um pouco mais travadas.

“Aí, no jornalismo, eu me achei, porque tu vai falar de mil coisas diferentes. Cada pauta é uma pauta. Se tu quiser, tu vai te aprofundar naquela pauta. E aquilo vai acabar, e tu vai fazer outra coisa com outras pessoas. Pensa, isso é incrível, né?”, Marcia Benetti, professora do curso de Jornalismo da UFRGS

A professora Marcia Benetti recebeu seu diagnóstico no final de 2021, aos 57 anos. Influenciada pela sua sobrinha que acabara de ser diagnosticada com o transtorno, ela começou a perceber algumas dificuldades durante a pandemia, principalmente com o ensino remoto. Ela diz que sua vida como professora e atuante na área do jornalismo sempre foi atravessada por problemas de organização de tempo, mas foi só com as implicações de ter que dar aulas online que ela e seu psiquiatra notaram que o tratamento com medicação para TDAH poderia ser adequado.

Ao comparar seu desempenho antes e depois do tratamento, nas aulas presenciais, Benetti vê uma clara melhora no desempenho de suas atividades como professora. Antes do diagnóstico, de acordo com ela, suas aulas, que deveriam começar às 8h30min, se iniciavam às 9h, porque nunca conseguia chegar no horário. Além disso, ela achava o seu desempenho abaixo do que deveria e tinha a fama de trocar as palavras e interromper as pessoas.

Uma das coisas que fez com que Benetti escolhesse o jornalismo foi entender que não conseguiria trabalhar num escritório, ou num consultório. Ela chegou a começar o curso de Odontologia, mas viu que não seria feliz na profissão. “Eu sofria só de pensar que eu ia ficar trancada dentro de um consultório, trabalhando. Eu fico pensando como que aguentam ficar o dia inteiro dentro do consultório”, diz. “Aí, no jornalismo, eu me achei, porque tu vai falar de mil coisas diferentes. Cada pauta é uma pauta. Se tu quiser, tu vai te aprofundar naquela pauta. E aquilo vai acabar, e tu vai fazer outra coisa com outras pessoas. Pensa, isso é incrível, né?”

Nunca é tarde para se encontrar

Diferentemente de mim, muitas pessoas não são diagnosticadas com TDAH até a vida adulta. O psiquiatra Torrez afirma que, embora haja um estigma sobre o transtorno de que “o diagnóstico está na moda”, ou de “que todo mundo tem TDAH”, as pessoas que estão se tratando são poucas perto das que deveriam estar e que teriam benefício com o tratamento.

Há muitos desafios envolvendo o diagnóstico em adultos. Um dos principais é que o transtorno pode ser confundido com outras doenças, como depressão e ansiedade. Segundo Torrez, também é comprovado que não tratar o TDAH pode gerar outras questões, como instabilidade de humor, depressão e problemas alimentares.

A psicóloga Alana Xavier, que atende adultos com TDAH, tem uma página no Instagram onde compartilha conteúdos sobre o seu trabalho e as suas próprias vivências como alguém que foi diagnosticada tardiamente com autismo e TDAH.

Ela afirma que sua experiência traz um nível de entendimento maior do paciente. Nas suas postagens, trata também de seu diagnóstico, de sinais que ela nota que passaram despercebidos e de estigmas que são propagados, como o de que quem tem TDAH não termina a escola e nem faz faculdade. Em um post, ela afirma: “Mas eu trago isso pra dizer que diagnóstico não é carimbo de invalidez. Os meus são parte importante da minha vida, pois com o nome certo, eu tenho o tratamento certo e consigo ser uma adulta o mais feliz e funcional possível”.

Diversos perfis de profissionais com uma perspectiva mais humanizada e acessível têm surgido e ajudado a desmistificar o debate sobre TDAH. Mesmo que o diagnóstico seja feito tarde, ele é importante para que a pessoa melhore a sua qualidade de vida. Além do tratamento, é importante que haja um esclarecimento para a pessoa sobre as suas condições.

Agora, minha mãe está com mais de 10 anos de diagnóstico e tratamento do TDAH. Muito, desde então, melhorou, mas algumas coisas se perderam no caminho. Em várias conversas, ela já relatou como, antes de ir estudar História, seu sonho era ser profissional da saúde. Algo que sempre esteve no caminho foi o estigma de que ela era “burra” demais para ser médica ou enfermeira. Mesmo medicada, ela diz que não conseguiria voltar a estudar: “As coisas mudaram muito desde a última vez que eu era estudante, não sei se eu iria me adaptar à rotina”, Márcia afirma.

Por fim, não é somente a terapia e os remédios que fazem com que a vida da pessoa melhore. Acredito que existe uma importância dos ambientes de educação e trabalho para que pessoas neuro divergentes (não somente com TDAH) sejam acolhidas.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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