CIDADE

O esforço para o lazer na noite

O entretenimento parece ser visto pelos órgãos de segurança e fiscalização como um problema a ser contido

Ignacio Cordeiro
Perspectivas em Movimento

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Calçada do bar El Aguante no final de semana | Foto: Ignácio Cordeiro

Bairros como a Cidade Baixa — a CB — e o Bom Fim sempre foram conhecidos pelos moradores de Porto Alegre por sua boemia e pela presença de bares e espaços culturais. Desde meados do século 19, quando surgiu, a CB é um ponto da cidade onde a noite acontece. No entanto, o seu desenvolvimento em muitos momentos foi liderado pelos órgãos municipais com um plano de modernização e de repressão, aliado à valorização imobiliária, e não pensando nos frequentadores e moradores do bairro.

A partir de 1959, deu-se início a um projeto de demolição das estruturas antigas da CB para construção de novos empreendimentos. Para que isso fosse possível, foi necessário cercear os locais de cultura e arte, reprimindo a presença do público. Isso culminou, na década de 1970, com a expulsão de famílias negras e pobres que moravam na região

O plano de modernização e “limpeza”, no entanto, não se limitou aos tempos antigos. Nos dias atuais, é possível observar que há uma tendência da prefeitura de Porto Alegre a se aliar às iniciativas de empresas privadas, principalmente construtoras, cujo objetivo é a edificação de grandes estruturas residenciais e comerciais na região. Em reportagem para o jornal Sul21, o repórter Luís Gomes traz a informação de que, em 2020, o prefeito Sebastião Melo (MDB) recebeu, durante sua campanha, doações de pessoas físicas ligadas a grupos como Cyrela Goldsztein, Iguatemi, Melnick, Multiplan e CFL Incorporadora.

Por acaso ou não, desde o início do governo Melo, em 2021, autoridades de segurança como a Guarda Municipal e a Brigada Militar — essa última comandada pelo governo do estado — têm cuidado de maneira violenta para registrar os momentos de lazer das pessoas que aproveitam a CB ao ar livre. Utilizamos tropas de choque, cavalaria, cacetetes, bombas de gás e spray de pimenta para afastar os frequentadores. Parece haver um plano de contenção de aglomerações populares, assim como nas vezes em que a Brigada Militar dispersa os torcedores que ficam ao redor dos estádios de futebol da cidade.

Um exemplo dessa prática ocorreu no dia 16 de julho de 2023, um domingo, quando a Brigada Militar utilizou cavalaria e spray de pimenta contra as pessoas que estavam frequentando a Travessa dos Venezianos, local com vários bares, entre as ruas Lopo Gonçalves e Joaquim Nabuco. Uma justificativa da Brigada Militar para a ação teriam sido as reclamações de barulho por parte da vizinhança. A ação policial ocorreu por volta das 2h da madrugada, horário em que os bares já não oferecem mais música.

O Decreto Municipal 17.902, de 2012, determina que somente estabelecimentos com projeto acústico aprovado e licenciado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) podem ter música eletrônica ou ao vivo depois da meia-noite. Mas o funcionamento dos bares só pode ir até a 1h de domingo à quinta-feira. Nas sextas-feiras, sábados e vésperas de feriados, o funcionamento está liberado até às 2h, com tolerância de 30 minutos.

Outra justificativa da Brigada Militar para a ação do dia 16 de julho foi a necessidade de desobstruir a via, mas no local não é permitido ter tráfego de veículos, já que a saída para a Lopo Gonçalves é obstruída por balizadores de trânsito. É importante considerar que não deve ser fácil para a vizinhança morar perto de locais que lotam à noite. Entretanto, a CB já é conhecida há muito tempo por abrigar estabelecimentos noturnos, e nada justifica ações truculentas por parte da Guarda Municipal e da Brigada Militar para retirar os jovens da rua.

A perspectiva de quem vive a noite

Vinícius Mendes, designer de produto de 28 anos, conta que começou a frequentar a CB por volta de 2014. Ele lembra que o movimento era moderado, mas gradualmente começou a se intensificar. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, as intervenções policiais passavam a ficar mais frequentes. Vinicius acrescenta que foi se tornado comum esse tipo de ação por parte das autoridades, e que, mesmo quando não havia muito movimento, os policiais ficavam rondando o lugar observando como as aglomerações se desenvolveriam.

Entretanto, os jovens nunca sentiram essa presença como uma proteção e sim como uma espécie de ameaça. “Vira e mexe a polícia corria todo mundo e acabava [com o movimento]”, lembra Vinícius. Hoje essa forma de expulsar os frequentadores da CB à noite se normalizou, e a polícia, pela forma como age, passou a ser encarada como um inimigo por quem está na rua.

Para além das ações brutas e visíveis à população, ocorrem também movimentos mais discretos. São feitas, por exemplo, seguidas abordagens da Fiscalização Municipal, geralmente nos bares dos bairros Bom Fim e Rio Branco. As ações ocorrem, de acordo com os fiscais, por conta de ligações da vizinhança que relata sons altos vindos dos bares, além de reclamações de sujeira pelas ruas. No dia 19 de agosto de 2023, por exemplo, os bares El Aguante, Metz Bar e Pito, localizados no bairro Rio Branco, foram interditados pela Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG) com a alegação de que houve poluição sonora, perturbação ao sossego dos moradores e obstrução do passeio público, ocasionados pelos estabelecimentos. O Rio Branco tem também sua história marcada pela boemia e pela música, já que no século 19 era conhecido como Colônia Africana e abrigava muitos artistas negros, até sofrer também com a gentrificação.

Lucas Schmidt, gerente do El Aguante, conta que, antes da interdição, a fiscalização batia no bar todos os dias de movimento grande. Os argumentos dos fiscais eram de que havia reclamação de barulho por parte dos vizinhos, obstrução de via e mesas localizadas inadequadamente. “Eles ficam inventando um monte de desculpa”, diz Lucas. O gerente considera a alegação indevida porque, quando começou a argumentar que o bar não estava provocando poluição sonora de acordo com o que diz a Lei Federal nº 9.605/1998, o discurso das autoridades mudou.

“Eles davam uma autuação, iam embora, a gente recorria a essa autuação e ela era vista como ‘caída’, porque não tinha prova. Nunca tivemos que pagar nenhuma multa”, Lucas Schmidt, gerente do bar El Aguante

Essa lei determina o que é considerado excesso de ruídos que afetam a saúde mental e humana, e Lucas garante que o bar não estava passando dos limites permitidos. Por isso, passou a argumentar a respeito de seus direitos. “Pararam de falar, por exemplo, de barulho depois que a gente mencionou medição de decibéis, pararam de falar das mesas depois que a gente começou a mencionar as leis”, diz ele.

Lucas também comenta que a fiscalização começou a enviar agentes diferentes alegando as mesmas justificativas, mas de maneiras diversas. “Eles davam uma autuação, iam embora, a gente recorria a essa autuação e ela era vista como ‘caída’, porque não tinha prova. Nunca tivemos que pagar nenhuma multa.”

Os bares ficaram uma semana interditados enquanto aconteciam reuniões na Câmara Municipal para definir a situação, e a interdição foi determinada como ilegal após esse processo. O gerente do El Aguante diz que eles foram prejudicados financeiramente por não poderem abrir o bar e que alguns alimentos tiveram que ser jogados fora. Também conta que, desde que voltaram a funcionar, a fiscalização não apareceu mais.

Mesmo não passando por experiências, os bares, para que pudessem voltar a oferecer música, fizeram um acordo com os moradores do bairro de que não tocariam música com som alto a partir das 22h e finalizariam a música até as 23h. Além disso, os bares só poderão ter música ao vivo no máximo três vezes por semana.

O gerente conta também que os funcionários do seu bar gostavam de frequentar a Cidade Baixa à noite, mas que pararam de ir pela repressão policial, que, na sua opinião, é muito forte. Ele mesmo, como frequentador da noite, percebe que as ações policiais estavam aumentando. “Acaba sendo um rolê pesado e chato, e que tu fica o tempo toda corrida da polícia”, justifica Lucas.

No fim, quem consegue aproveitar a noite de Porto Alegre sem preocupação são as pessoas com condições financeiras de acesso a lugares onde os produtos são mais caros, como os estabelecimentos do Quatro Distrito, região localizada entre os bairros Floresta, Navegantes, Humaitá, São Geraldo e Farrapos. Os mais prejudicados acabam sendo os jovens de classe média e média baixa, que se sentem inseguros de frequentar os espaços públicos de Porto Alegre à noite com medo de quem, com justiça, deveria examiná-los.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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