CULTURA

Passado e futuro da tradição alemã no Rio Grande do Sul

Após 200 anos da imigração no estado, os rumos e a importância de preservar os costumes são colocados em pauta

Amanda Luísa Schultz
Perspectivas em Movimento

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Bolão de mesa é um jogo germânico majoritariamente praticado por mulheres. As localidades formam suas Sociedades de Damas e participam de campeonatos | Foto: Rafael Schultz

Em 2024, a imigração alemã no Rio Grande do Sul completa 200 anos e comemora a vinda dos primeiros imigrantes na então chamada colônia São Leopoldo. A chegada dos alemães no sul do país teve relação direta com o objetivo do Império brasileiro de desenvolver e povoar as pequenas colônias do Brasil. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1824 e 1830 mais de cinco mil imigrantes alemães chegaram ao Brasil. A maioria se consolidou na região do Vale do Rio dos Sinos e proximidades. Até o século 20 esse número subiu para 300 mil. Diante do bicentenário da imigração alemã, surge o debate sobre a importância de preservar as tradições dessa cultura no estado, já que as novas gerações estão deixando alguns costumes para traz.

As tradições alemãs mais conhecidas são as gastronômicas — como, além da cuca, salsicha, chucrute e pretzel — e a língua alemã e seus dialetos — como o hunsrückisch e o pomerano. A cuqueira Iria Pranke tem 82 anos, é moradora de Rio Pequeno, interior de Sinimbu, e relata que a cultura alemã desde cedo teve um espaço muito importante em sua vida. Além de fazer cucas — uma espécie de bolo tradicional na culinária alemã — ela integra a sociedade de bolão de mesa, da qual foi presidente por mais de 20 anos. “Aprendi a fazer cucas com a minha mãe e alemão foi a primeira língua que falei”, conta. Entretanto, Iria encerrou a comercialização de cucas durante a pandemia e deixou de participar das feiras da região. Ela não pretende retornar. “Meus filhos e netos não se interessaram em continuar e eu não tenho a mesma disposição que tinha anos atrás.”

Assim como Iria, muitas pessoas de cidades colonizadas por alemães no estado — como São Leopoldo, Santa Cruz do Sul, Sinimbu, Ivoti e Igrejinha — continuam cultivando os hábitos trazidos há 200 anos pelos imigrantes. Porém, com o envelhecimento da geração de Iria, o futuro da preservação das tradições depende do interesse dos mais novos.

Segundo o historiador e estudioso da presença alemã no estado, René Gertz, os imigrantes eram maioria nos territórios e conseguiram consolidar suas tradições e construir cidades do zero. Nesse processo ocorreu a mistura de culturas, em que gaúchos adotaram os hábitos dos alemães e vice-versa. Exemplo disso é o consumo do chimarrão pelos imigrantes.

A chegada dos alemães teve papel fundamental na implementação da indústria calçadista no sul do Brasil e na formação da cultura de muitas cidades. As festividades, como a Oktoberfest e o Kerbfest, também têm grande influência dos imigrantes, assim como a criação de sociedades de bolão de mesa e de tiro ao alvo, que são jogos germânicos. Grupos de canto e de trombones e a difusão de músicas típicas e das bandinhas também são uma marca dos imigrantes. “Naquela época essas festividades mostravam um progresso social, porque para frequentar festas você precisa ter dinheiro, o que significava que a produção estava indo bem”, diz Gertz. Além disso, o processo de imigração teve forte impacto na religião. O luteranismo foi trazido pelos imigrantes, que fundaram as primeiras igrejas luteranas no estado.

Perspectivas da preservação

Em meio a tantas mudanças nos modos de viver e nos interesses sociais, a desesperança na continuidade das tradições alemãs é notável, principalmente pelas pessoas mais velhas. Iria é uma delas. “Olha, acho muito difícil se preservar, vejo isso nos meus netos, que perderam o interesse em falar alemão.”

Porém, alguns jovens ainda reconhecem a importância da cultura e são motivados a conservá-la. As irmãs gêmeas Fabiana e Fernanda Toillier têm 19 anos e são naturais de Sinimbu, mas moram e estudam em Santa Maria, na região central do estado. Desde a infância falam a língua alemã e, quando crianças, foram incentivadas pela família a fazer aulas de alemão na escola e a participar do grupo de danças típicas Freundschaftanz, de Sinimbu.

Assim como Fernanda e Fabiana, muitos jovens saem de suas cidades de origem para estudar e buscar novas oportunidades e, consequentemente, perdem o contato com suas origens. Mas, no caso das irmãs, a distância teve outro efeito. “Acho que depois que me mudei para Santa Maria dei mais valor para a cultura alemã, porque entendi o quão legal e interessante é fazer parte dessa cultura”, conta Fernanda. No entanto, as irmãs percebem que as tradições estão se perdendo aos poucos, e os jovens não têm muito interesse.

É o caso de Milena Graeff, de 19 anos, que não sabe mais se comunicar usando a língua alemã. Milena mora em Porto Alegre e é natural de Ivoti, cidade conhecida pelas casas em estilo enxaimel e com grande incidência da cultura. Sua família é de origem alemã e os avós mantém algumas tradições. “Na rádio dos meus avós só toca bandinha e algumas músicas em alemão”, destaca. Milena mantém contato com as tradições somente quando está com sua família em Ivoti.

Em um país como o Brasil, onde a miscigenação é a base da construção social e cultural, a preservação das tradições é importante para manter as raízes dos antepassados vivas. Elas enriquecem as visões e modos de viver da sociedade como um todo, com consciência de quais valores e tradições estão sendo perpetuados. Nesse processo, é fundamental que a continuidade dos hábitos seja de forma espontânea e que tenha sentido para as pessoas que preservam. De acordo com o historiador Gertz, é necessário diferenciar a continuidade de costumes que naturalmente fazem parte do estilo de vida — Lebensführung na língua alemã — da preservação artificial e forçada.

Nas salas de aula

Outra forma de preservar a cultura é o incentivo ao ensino da língua alemã, que é expressivo no Rio Grande do Sul e um dos legados da colonização no estado. As escolas da rede Sinodal, por exemplo, oferecem o ensino da língua alemã em todas as suas instituições, já que são vinculadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), difundida pelos imigrantes. O Goethe Institut, localizado em Porto Alegre, oferece cursos de alemão, tem vínculos com escolas do estado e com a República Federal da Alemanha. Além do ensino privado, algumas cidades oferecem o ensino da língua na rede pública, como é o caso de Sinimbu, que tem duas escolas com aulas de língua alemã como atividade extracurricular.

Anneliese Strohm é professora de alemão há 22 anos e, ao comparar as suas primeiras turmas com as atuais, percebe que há uma redução do interesse. Segundo a professora, que atualmente leciona em Sinimbu e em Santa Cruz do Sul, os grupos se mostram muito diferentes a cada ano e ela precisa adaptar a didática para incentivar os alunos.

A forma que o assunto é abordado nas salas de aula e o esforço dos docentes para despertar o interesse dos alunos é fundamental para conservar a cultura alemã no Rio Grande do Sul. Para Anneliese, é necessário pensar que as atitudes do presente em relação às tradições impactam nas formas que as próximas gerações irão agir. “Saber a origem da própria família e manter as tradições também ajuda a manter uma identidade”, diz ela.

No que diz respeito às ações de órgãos públicos para preservar a cultura alemã, o governo do estado do Rio Grande do Sul está planejando uma série de comemorações para o bicentenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul e criou uma comissão para desenvolver os eventos do ano de 2024. As cidades têm seus próprios festejos que incentivam a preservação da cultura alemã. A região de Santa Cruz do Sul e Sinimbu, por exemplo, têm festividades no dia 25 de julho, que marca a chegada dos imigrantes ao sul do país, além da tradicional Oktoberfest e festa das cucas em Santa Cruz do Sul.

Não há possibilidade de desenhar um futuro certo sobre a preservação da cultura alemã no estado, mas o trabalho feito nas escolas e o reconhecimento da importância das tradições pelas novas gerações e pelos órgãos públicos podem ter grande impacto na construção e manutenção de perspectivas multiculturais no Rio Grande do Sul.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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