JUSTIÇA SOCIAL

Política nas calçadas

Os dilemas e desafios no cuidado com a população em situação de rua

breno bauer
Perspectivas em Movimento

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Na metade esquerda da foto, vemos o padre Júlio Lancellotti, com cabelos brancos, óculos, máscara, luvas, avental amarelo e um boné na mão esquerda. Sua mão direita está sobre a cabeça de um homem em situação de rua sentado no chão, de máscara e sem camisa. Os dois estão sob um viaduto. Há vasos de flores na espalhados pelo chão. Na metade direita, vê-se o desenho de um cacto com uma flor amarela e branca de grafite. Ao lado disso, lê-se: Menos pedras, mais flores.
No bairro da Mooca, em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti atende mais de 600 pessoas de rua diariamente | Foto: Victor Ângelo Caldini

O padre Júlio Lancellotti, de 76 anos, ficou conhecido no Brasil por suas ações de cuidado com as pessoas em situação de rua. Como vigário episcopal da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, ele é conhecido por travar lutas contra a retirada de pertences desses cidadãos por parte das forças de segurança e contra a arquitetura hostil, caracterizada por projetos que impossibilitam a permanência em espaços públicos de quem não possui abrigo. Ele também se destaca pela distribuição diária de cafés da manhã para esse público na capital paulista.

Mesmo fazendo esse trabalho há mais de 35 anos, padre Júlio ainda se depara com críticas à sua atuação. Essa oposição chegou ao ponto máximo com a proposição da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs, protocolada na Câmara de Vereadores da cidade no dia 4 de janeiro pelo vereador Rubinho Nunes (União). A justificativa era investigar organizações que realizam ações na Cracolândia, em São Paulo.

“Estes dias têm sido muito difíceis, porque atingindo a uma pessoa eles atingem a todos”, disse padre Júlio na primeira missa dominical após o ocorrido. “Quando não há argumentos, eles querem destruir. Eles não vão desistir, mas nós também não. Vamos resistir.”

Padre Júlio tinha razão, as manifestações de apoio a ele, principalmente nas redes sociais, foram tão grandes que a proposta da CPI perdeu 10 das 25 assinaturas que recebeu. A persistência do padre em ajudar os mais pobres faz suas ações ganharem adeptos e repercutirem pelo Brasil inteiro. Segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2022, havia 281.472 pessoas em situação de rua no país, portanto, quanto mais voluntários se juntarem à causa, mais chance existe desse problema ao menos diminuir.

Dentre as pessoas que se interessaram pelo trabalho da Pastoral do Povo da Rua e se tornaram voluntários, está o fotógrafo Victor Ângelo Caldini, de 25 anos, que atualmente acompanha e documenta ações do padre Júlio. “Para registrar e documentar o dia a dia, é importante ter posicionamento”, afirma Victor. “Não dá para ser imparcial com tudo o que se vê. O próprio padre fala: uma vez que não nos posicionamos, estamos do lado dos opressores. A gente tem que sentir a convivência.”

Nessa rotina, que começou durante a pandemia de coronavírus, Victor faz questão que a pessoa em situação de rua seja a primeira a ver a fotografia em que está retratada. Para ele, esse processo atende à necessidade desses indivíduos terem suas existências reconhecidas e serem lembrados.

Em seu trabalho, Victor busca registrar, para além do descaso, a dignidade das pessoas em situação de rua | Foto: Victor Ângelo Caldini

Em Porto Alegre

Na capital gaúcha, as necessidades são bastante parecidas com as sinalizadas por Victor. Na região central da cidade, Pablo, que não diz seu sobrenome, está em situação de rua há três anos e sente a ausência de atenção na sua rotina. “Eu fico cheio de raiva. As pessoas passam e não nos veem, nem nos dão nada”, diz ele. “Quem mais ajuda são ONGs que aparecem de vez em quando. Da prefeitura, são só promessas.”

De fato, diversas organizações prestam auxílio à população em situação de rua em Porto Alegre, como o movimento A Fome Tem Pressa. O grupo de voluntários arrecada alimentos por meio de campanhas e, todas as terças-feiras, prepara e distribui refeições. Por mês, eles entregam aproximadamente 800 marmitas.

Por parte da prefeitura, o órgão público responsável por planejar políticas para a população de rua do município é a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). Segundo a coordenadora do setor de Proteção Social Especial da entidade, Priscila Vargas dos Santos, sua equipe é encarregada de planejar uma composição de serviços continuados que englobem diferentes áreas de atuação, como saúde e emprego.

Para orientar tais trabalhos, a Fasc produziu o Plano Municipal de Assistência Social de Porto Alegre para o quadriênio de 2022 a 2025. Nele, além das ações planejadas, é possível conferir estimativas quanto ao número de pessoas em situação de rua na cidade. O documento, no entanto, trabalha com informações desatualizadas, apontando, por exemplo, que o total dessa população no município seria de 2.115, resultado de um censo realizado pela Fasc em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2017.

Tal número, porém, não condiz com a realidade. Dados divulgados pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania indicam que, até o fim de 2022, existiam 3.189 pessoas em situação de rua de Porto Alegre registradas no Cadastro Único (CadÚnico) ― instrumento do governo federal que monitora e realiza programas de assistência social para famílias de baixa renda.

Priscila lembra que nem todos possuem os documentos necessários ou procuram locais para realizar esse cadastro, ou seja, o total de pessoas em situação de rua, de acordo com ela, deve ser ainda maior. Um levantamento realizado pelo grupo de pesquisa Passa ou Repassa, criado numa parceria entre UFRGS e Unisinos, informa que existem 5.788 pessoas em situação de rua na capital gaúcha. O grupo tem o objetivo de interpretar e divulgar dados extraídos de documentos oficiais públicos, como, por exemplo o Ministério da Saúde.

Mesmo com a existência de outras quantificações que fazem com que não se possa afirmar com precisão o tamanho dessa população, Priscila não vê problema em trabalhar com os dados que estão no plano municipal elaborado pela Fasc. “Esse número é usado apenas para um planejamento efetivo da oferta de serviços por região da cidade”, ela explica. “E, assim como as ações propostas no plano, não é fixo.” A assistente social também afirma que uma das principais causas da discrepância de números é o fato da população em situação de rua não ter sido entrevistada no Censo de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ela ainda afirma que um novo recenseamento junto à UFRGS já está encaminhado.

As pessoas são mais que a sua sobrevivência, também são experiências, também são vivências”, Victor Ângelo Caldini, fotógrafo

Os problemas da relação entre a prefeitura de Porto Alegre e a população em situação de rua não se limitam aos números. Em 2015, na posição de prefeito em exercício, Sebastião Melo assinou o decreto que instituiu o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua). A decisão propõe que nove representantes da sociedade civil, escolhidos pelo Movimento da População em Situação de Rua de Porto Alegre, se reúnam com representantes das secretarias do município periodicamente. Porém, na atual gestão de Melo, o comitê não está em atividade.

Quem tem feito uma função semelhante à idealizada no decreto de Melo é a Pastoral do Povo da Rua de Porto Alegre, organização da Igreja Católica que segue as mesmas diretrizes do trabalho de padre Júlio Lancellotti em São Paulo. Nos encontros do grupo, que acontecem uma vez por mês, representantes de organizações da população de rua se reúnem com religiosos, pesquisadores, assistentes sociais e assessores de figuras da política local.

Na última reunião de 2023, os integrantes se encontraram na Catedral Metropolitana Madre de Deus para avaliar o ano e planejar as ações para 2024. Dentre os objetivos, constataram a necessidade de acompanhar uma possível retomada do Comitê PopRua pela prefeitura, para que povo da rua participe ativamente e não seja apenas consultado ocasionalmente. A conclusão de todos foi que o trabalho da pastoral é mais do que dar comida, é uma luta política.

O fotógrafo Victor Ângelo concorda com essa perspectiva e oferece um bom exemplo. “Eu lembro uma vez que o padre Júlio fez a distribuição de maquiagens”, recorda ele. “E aí muitos perguntam ‘pô, mas o que isso tem a ver com a sobrevivência deles?’. Talvez com a sobrevivência não tenha nada a ver, mas a felicidade foi tanta, porque mais do que sobrevivendo, eles estavam vivendo. Eles estavam sendo vistos. As pessoas são mais que a sua sobrevivência, também são experiências, também são vivências.”

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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