RESISTÊNCIA

Precisamos falar sobre as religiões de matriz africana no Sul

Cecília Filappi
7 min readFeb 5, 2024

A falta de visibilidade de crenças de origem negra é ainda maior no interior

Celebração da casa de Nação em homenagem aos orixás | Foto: Aline Schirma

O Rio Grande do Sul por muitos anos não teve suas diversidades reconhecidas, sejam elas de cunho religioso ou étnico, embora muito da história do país tenha suas origens aqui. Foi no Rio Grande do Sul que surgiram grandes lideranças do movimento negro no Brasil, como o poeta Oliveira Silveira, natural de Rosário do Sul, que, na década de 1970, junto com o escritor Antônio Carlos Côrtes, foi pioneiro na campanha pelo reconhecimento da data de 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Ou Manoel Padeiro, o Zumbi dos Pampas, que liderou um dos mais significantes levantes de escravizados do estado em um quilombo na região da Serra dos Tapes. Foi também no Sul que surgiram os Lanceiros Negros, formados por negros livres que lutaram na Revolução Farroupilha. Apesar disso, o Rio Grande do Sul segue com o estereótipo europeu dentro da América latina, o que fortalece o preconceito contra o povo negro, e, consequentemente, a invisibilidade de sua cultura e de suas crenças no estado.

O Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com o maior número de indivíduos adeptos a religiões de matriz africana, segundo o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa foi a última pesquisa a divulgar esses dados, já que o Censo de 2022 não disponibiliza os resultados sobre esse tema. O estudo de 2010 indica também a existência de mais de 60 mil terreiros no estado gaúcho.

A intolerância e a intervenção nas religiões de matriz africana ocorrem no país desde sua colonização. No Rio Grande do Sul, no entanto, elas são ainda mais fortes. A religião provinda dos escravos da África sofreu com acusações de cultuar o demônio, fazer bruxaria e provocar uma espécie de loucura em seus adeptos, e esses estereótipos se mantêm vivos em falas enraizadas e pejorativas na cultura gaúcha, como “chuta que é macumba”, ou “deve estar com o Exu no corpo”. E se nas grandes cidades do Brasil, um país majoritariamente negro com raízes africanas, essa luta pelo reconhecimento é constante, no interior do Rio Grande do Sul a invisibilidade é ainda maior.

Em Estrela, cidade do interior do estado, Alexandre Magno, de 32 anos e babalorixá candomblecista, relata a pouca presença da religião na sua cidade. “Conheço poucos terreiros em Estrela e vejo que a comunidade ainda é muito fechada para isso. Talvez por ser uma região de colonização alemã e italiana, estão acostumados a ser [de religiões de matriz afro] no privado”, diz ele. Portanto, não significa que os adeptos dessas crenças não existam, eles estão apenas mais escondidos. “Já em Lajeado, cidade vizinha com mais habitantes, as demonstrações já são mais consideráveis”, destaca Alexandre. As religiões afro, portanto, ainda são objeto de repressão e perseguição, apesar da atual garantia constitucional de liberdade religiosa. E os ataques, por às vezes serem velados, dificultam o reconhecimento dessas crenças legítimas.

A música é parte das celebrações e funciona também como ato de resistência e pertencimento para as religiões| Foto: Aline Schirma

Têm religiões afro no Sul

O cabeleireiro Jacy Bejamin Chagas Dias, de 59 anos, natural de Rosário do Sul, no interior do estado, babalorixá da casa de Nação Cabinda, explica que existem três eixos das religiões predominantes no Rio Grande do Sul: a umbanda, a quimbanda, incluindo o batuque, uma religião afrogaúcha e a nação, sendo predominante no estado a Jeje-Ijexá.

“As pessoas tendem a colocar tudo no mesmo balaio, mas são religiões diferentes e com práticas diferentes”, diz Jacy, que é também delegado da Federação Afroconesul, órgão que auxilia no funcionamento dos centros de religião elaborando certificados, alvarás de funcionamento e carteiras de sacerdotes. Jacy reconhece que no interior a falta de conhecimento sobre as religiões de matriz africana é um dos motivos que impedem seu reconhecimento e uma melhor aceitação da sociedade.

Jacy iniciou na religião por influência da mãe, que já era ativa e ficou com a herança do terreiro, já que, de cinco irmãos, ele foi o único que se manteve na religião de matriz africana. Como a mãe já era religiosa e mantinha contato com a vizinhança — em sua maioria evangélica — os vizinhos já conhecem suas crenças e suas práticas. Por isso, ele recebeu também de herança a boa convivência com seu entorno.

Jacy Chagas Dias, todo de branco, segurando um quadro com foto de sua família na religião.
O babalorixá Jacy Bejamin Chagas Dias tem orgulho ao mostrar sua família de religião | Foto: Cecília Filappi

Apesar disso, Jacy lembra de casos em que sua religião foi posta em xeque, como no Natal de 2020. Líderes de bairros, juntamente com Jacy e outros religiosos, estavam organizando o evento. Quando ele sugeriu a possibilidade da doação de doces e brinquedos — provenientes da festa para Ibeji, ou Cosme e Damião — ser em frente à sua casa, um pastor não aceitou e pediu que os brinquedos fossem encaminhados para a igreja evangélica para serem distribuídos para as crianças lá. Jacy negou e manteve a proposta de montar a barraquinha e doar os brinquedos em frente ao seu terreiro. Porém, teve que garantir que não haveria nenhuma menção aos Orixás, o que demostra que a intolerância religiosa ainda existe.

Orgulho e preconceito

No interior, é comum que as igrejas já estejam inseridas no cotidiano da comunidade. São locais de destaque nas festividades e são citadas pelos veículos de comunicação da cidade. Já as religiões de matriz africana costumam ficar esquecidas, gerando um sentimento de vergonha e até de ilegalidade em torno da prática. Além disso, normalmente as demonstrações religiosas nos espaços públicos da cidade não são bem recebidas, faltando um espaço coletivo que motive os praticantes das religiões afro.

Lane Marize Borges Silveira, de 61 anos, Ialorixá da Candomblé Queto e também delegada da Afroconesul, comenta a falta desse local para reunir as religiões de matriz africana no interior, apesar de haver muitos praticantes. “Todos são bem-vindos nos terreiros abertos, mas por enquanto os ritos são feitos nas nossas próprias casas, apesar de nem todos conseguirem manter um terreiro seu”, diz Lane.

Jacy ressalta a participação da comunidade rosariense na religião, mas percebe que existe o receio por parte dos praticantes de falarem sobre essa participação justamente pela falta de prática pública. Ele diz que muitas pessoas se declaram católicas por medo, “Tu pergunta pra pessoa, ‘ai, porque eu sou católica’, mas chega de noite tá batendo tambor, incorporada e com as guias dela, mas perante o povo ela é católica”, comenta. “Essa falta de informação em torno das religiões de matriz africana no interior gera esse tipo de pensamento, medo em assumir a própria religião.”

“É como se falassem: isso nós apoiamos e é o certo, se tu quer fizer o errado, tu faz na tua casa”, Ryllary da Rosa Goulart, praticante de Umbanda e Quimbanda.

A estudante Ryllary da Rosa Goulart, de 20 anos, também de Rosário do Sul e praticante de umbanda e quimbanda, diz vivenciar esse sentimento de exclusão perante os locais de ritos. Ela destaca que as Igrejas de outras religiões são localizadas nos centros das cidades, em lugares bem visíveis, e os terreiros ficam dentro das casas por dificuldades financeiras para a manutenção de um local de convivência próprio. “É como se falassem: isso nós apoiamos e é o certo, se tu quer fizer o errado, tu faz na tua casa.”

Ryllary lembra da festa de Ano Novo, no final de 2022, em que foi feito um acordo da prefeitura com as igrejas. Ficou definido que seria realizada uma gira — que é onde os orixás e entidades se manifestam através da incorporação — na praia, enquanto as outras igrejas fariam seus ritos separadamente. Ryllary diz que, no entanto, o acordo foi quebrado quando começaram a tocar músicas com pregações evangélicas em volume muito alto perto da cerimônia do terreiro que ela frequenta. “Se fosse ao contrário, nós atrapalhando um rito sagrado para eles, teria até polícia”, diz a estudante.

“A macumba é uma lata de lixo, aceita tudo aquilo que a sociedade joga fora”, Jacy Bejamin Chagas Dias, babalorixá de Nação Cabinda

Ryllary considera que a intolerância a sua religião se manifesta de maneira velada. Ela percebe, por exemplo, que às vezes não são oferecidas oportunidades de emprego para pessoas que são praticantes de religiões afro. “Te negam oportunidade, te fazem não sentir pertencentes àquilo”, diz ela. Para o babalorixá Jacy, é como se aquilo em que acreditam fosse tabu diante a sociedade “A ‘macumba’ é uma lata de lixo, aceita tudo aquilo que a sociedade joga fora”, diz ele. Cabe à sociedade gaúcha aceitar as crenças de todos, ainda mais sendo um estado em que os negros tanto contribuíram para formar. Dessa vez, eles precisam ser protagonistas na história do Rio Grande do Sul, incluindo o interior do estado.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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