Primavera nos fones e nas ruas

O reflorescer do rock feito no Rio Grande do Sul

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Show da banda Pólipos no bairro Cidade Baixa | Foto: Santiago Martins

Seja nas alamedas da Cidade Baixa ou no Instagram, nas ruas do Bom Fim ou no Spotify, a cena musical underground de Porto Alegre pulsa novamente graças a uma geração que, além de querer se expressar, renova a estética do Rock feito no Rio Grande do Sul. A ideia é se expressar e ser original: “Nós não somos só uma banda de rock, a gente é um coletivo que dá voz à problemas da nossa geração”, diz Anakas. “A gente não quer se prender nessa denominação de Rock Gaúcho, a gente quer ser uma banda do Brasil influenciada por Porto Alegre.”

Aos 21 anos, Anakas é uma das faces rebeldes por trás da Quem é você, Alice?, banda porto-alegrense que conta com mais de três mil ouvintes mensais no Spotify. A “QEVA?”, sigla utilizada pelos fãs da banda, é um dos nomes mais conhecidos no cenário e o puro suco da renovação estética pela qual o rock de Porto Alegre passa, mas nem sempre foi assim. O grupo, atualmente formado pelo baterista Conrad Fleck, o baixista Vitor Pires (O Pipi) e a dupla de guitarras e vocais Milena e Anakas, surgiu em 2016 no melhor estilo rock de garagem anos 80.

Os ensaios eram feitos na casa de Conrad, onde os amigos, no auge dos seus 13 anos, estavam embriagados pela pura vontade de tocar: “Eu nunca tinha tocado em um baixo antes daquele dia”, diz Pipi, lembrando a primeira vez que o grupo se reuniu, desde então, a banda vem conquistando seu espaço e, ao mesmo tempo, abrindo caminho para outras da cena. A QEVA? possui várias referências da velha escola do Rock Gaúcho: “A gente admira muito o Júpiter Maçã, a Cachorro Grande, o Edu K e o Carlinhos Carneiro”, ressalta Anakas, mas reforça que eles bebem de inúmeras outras fontes, desde o Midwest Emo até o Cool Jazz. A vocalista diz que a banda não se enquadra, e muito menos quer se comparar com o movimento que foi o Rock Gaúcho.

Show da QEVA? no estúdio Music Box em Porto Alegre | Foto: Desirée Schlindweinn

O que foi esse tal de Rock Gaúcho?

É comum que a maioria dos gaúchos ache que todo rock produzido no Rio Grande do Sul faça parte do Rock Gaúcho, porém, a professora universitária e jornalista Carol Govari, explica que, muito mais que uma simples delimitação regional, o Rock Gaúcho foi um movimento com características próprias.

O gênero começou na década de 1960, com a banda Liverpool, fortemente influenciada pelos Beatles que, até então, eram pouco conhecidos pelos pampas. A banda nascida no bairro proletário do IAPI dominou as rádios e deu o pontapé inicial para que o gênero crescesse no Rio Grande do sul. Porém, a geração dos anos 1980 é a essência do Rock Gaúcho para Carol, que fez seu doutorado sobre a constituição musical, midiática e identitária do rock gaúcho na década de 1980. Além do vocabulário muito próprio, piadas internas e das referências a locais de Porto Alegre, essa geração tem uma particularidade em relação à sua estética e sonoridade: “Há uma quase antiestética, um erro proposital, um ruído estilístico”, ressalta a professora. É nessa época que surgem bandas como Os Cascavelletes, Defalla, TNT e Graforréia Xilarmônica, fortemente impulsionadas pela coletânea Rock Grande do Sul. Os músicos retratavam o estilo de vida porto-alegrense ao mesmo tempo que davam voz para juventude daquela época.

“Faz muito tempo que o rock não é mais o carro chefe da indústria. Ele Foi trocado pelo axé, sertanejo e funk”, Carol Govari, jornalista e pesquisadora.

No decorrer dos anos 1990 e 2000, o Rock Gaúcho se difundiu, surgindo bandas como Ultramen, Comunidade Nin Jitsu e Bidê ou Balde, que começaram a mesclar outros estilos musicais ao Rock Gaúcho. Dessa forma, conseguiram se espalhar mais ainda pelo Brasil, sem necessariamente aderir ao BRock (rock brasileiro dos anos 80). Mas foi a partir de 2005, com o lançamento do projeto Acústico MTV: Bandas Gaúchas, que o Rock Gaúcho começou a sua despedida. Após essa linda coletânea que contou com as bandas Ultramen, Cachorro Grande, Bidê ou Balde e o irreverente Wander Wildner, o Rock Gaúcho foi perdendo gradativamente sua relevância no cenário.

A derrocada da relevância do gênero vai além da transformação dos espaços urbanos que abrigavam essas bandas e artistas. Para Carol Govari, a indústria musical abandonou seu favoritismo pelo rock: “Faz muito tempo que o rock não é mais o carro chefe da indústria. Ele Foi trocado pelo axé, sertanejo e funk”. Associado a isso, a professora ainda retoma o impacto que a mudança da forma de consumo musical teve na derrocada do gênero. “O consumo de música acontecia através da mídia física, e éramos impactados em especial pela TV e rádio. Com o domínio da internet e plataformas de streaming, tudo mudou”, ressalta Carol.

Dissonâncias

No Sul o rock ‘n roll passou do ponto
Há quem diga que morreu
Mas minha energia adolescente
Não esquece o que aprendeu”
Tim Bernardes, Meus 26

Assim como tudo que é vivo envelhece, o Rock Gaúcho enferrujou sua forma de comunicação com a juventude. Para o jovem Pedro Gonçalves, baixista da estreante banda Pólipos, o gênero perdeu sua capacidade de comunicação com os jovens. “O Rock Gaúcho como a gente conheceu não representa mais os nossos anseios e nossa rebeldia”, diz Pedro, que ressalta que o gênero abriu caminhos para a cena do rock em Porto Alegre e que esse é o principal impacto na atualidade do cenário. “A gente teve grandes nomes com repercussão no Brasil e a gente luta pra chegar aonde os caras chegaram, mas não com um orgulho besta de quem só consome.”

Tem quem diga que o problema é um conflito geracional: “Tem algumas coisas que a gente não curte no Rock Gaúcho, eu sou uma pessoa não-binarie e o Rock Gaúcho tinha algumas coisas muito preconceituosas saca? Das quais a gente não compactua”, diz Anakas. As músicas lançadas nos anos 1980 tinham esse grito entalado na garganta. Vivendo em um período pós-ditadura militar, os jovens ansiavam poder se expressar acerca de sua sexualidade, suas revoltas e o uso de drogas. “Por entender que era sim um momento de ser explícito, de não ter vergonha de dizer algumas coisas, então a gente nunca teve filtro nesse sentido”, diz Mano Changes, vocalista da banda Comunidade Nin-Jitsu. Por passar anos reprimida, essa geração acabou compactuando, até de forma involuntária, com a opressão sistemática de certos grupos sociais já marginalizados, ação que não pode mais ser aceita atualmente.

A cena hoje

Tal como um jardim, onde, após um longo período de estiagem, a primavera chega e as flores começam a voltar, o rock acende novamente sua chama entre os jovens porto-alegrenses. “O Edu K comentou comigo que desde os anos 80 ele não vê uma cena tão efervescente”, conta Anakas que percebe uma união muito forte entre o público e as bandas da cena atual. “A gente tem até uma comunidade de pessoas que não se conheciam e passaram a conversar no Twitter por causa da QEVA?, a gente chama eles de ‘Mutuals’”, ressalta o baterista Conrad Fleck.

O avanço das redes sociais foi um ponto que acelerou a decadência do antigo Rock Gaúcho, mas para o atual rock porto-alegrense foi uma forma de ganhar espaço. “A gente é bem ativo nas redes sociais, usando ela tanto pra divulgar quanto pra interagir. Lembro da Anakas enchendo o saco das pessoas para elas irem aos shows ”, diz Pipi. Mas Anakas brinca que pode ser uma faca de dois gumes jogar a banda na internet: “Sacrifiquei minha saúde mental no Twitter, mas foi pela banda ”.

Outro avanço importante para essa nova geração foi a reforma das plataformas digitais de streaming. “Qualquer um pode criar uma conta e publicar suas músicas no Spotify”, diz Pedro, da Pólipos, que recentemente lançou seu álbum de estreia, Lembranças Árduas, na plataforma, contando com mais cinco mil visualizações. Os integrantes da Pólipos ressaltam que as plataformas são uma ótima forma de conseguir visualização. “Tu não precisa mais de uma gravadora pra lançar tuas músicas”, diz Pedro, e ainda reitera que pode ser uma forma de garantir a originalidade e ganhar dinheiro. “A gente fez a nossa música do jeitinho que a gente queria e ainda tiramos 80 ‘pila’ no primeiro mês.”

A originalidade é a palavra-chave para essa nova geração. “Quanto mais referências melhor”, ressalta Anakas. Desde os anos 1990, o rock feito no Rio Grande do Sul vem se mesclando cada vez mais com outros estilos, seja o Hip-Hop da Comunidade Nin-Jitsu, ou o reggae presente no som do Papas da Língua. Atualmente, o gênero tem se permitido cada vez mais experimentar outras fontes. Esse é o caso da banda Fumaça Urbana, formada pelos gêmeos Juliano e Gustavo (respectivamente guitarra e voz), o baterista Leonardo Casagrande e o baixista Antônio Nader. A banda, que mistura elementos do Ska e da MPB em seus sons, diz não saber definir precisamente seu estilo. “A gente ainda tá criando ele. Desde que o Nader entrou na banda, a gente assumiu uma pegada mais brasileira, podemos dizer que é um samba-rock”, diz Juliano.

Miscelânea nos shows

A vontade de impactar localmente faz parte da essência desse novo rock. “Pra nós, não existe forma melhor de demonstrar amor do que no show, é o momento onde tu te conecta com quem tá te ouvindo, e, muito mais do que dinheiro, inicialmente, a gente quer que a Pólipos seja ouvida”, diz Pedro. Para os membros da Fumaça Urbana, fazer um bom show também é fundamental. “A gente curte ‘afu’ fazer show e, se parar pra pensar, a gente até paga pra fazer. No último show de graça que nós fizemos, nos negaram até um Corote cara, sabe… um Corotinho”, diz Juliano.

Os membros da QEVA? veem o show como uma oportunidade de integração e incentivo entre as bandas. Conrad diz ser muito comum as bandas se juntarem para fazerem shows no mesmo lugar e ressalta que isso faz a cena crescer junta: “A gente tocou no Ocidente e no Opinião ano passado, e os caras viram que tinha público. Agora já tem agenda pra um monte de banda underground nesses espaços”. E, segundo a banda, os shows estão cada vez mais presentes nos lugares de Porto Alegre: “É difícil contar quantos shows rolam por mês, mas toda semana, pelo menos dois dias, vai ter alguma banda independente tocando em Porto Alegre”, diz Conrad.

O futuro

“O Rock feito em Porto Alegre tem voltado à tona, porque agora a cena tá muito linda, tem muita gente muito foda vindo por aí”, diz Pedro, que sentia que o rock tinha desaprendido a se comunicar com os sentimentos das pessoas e que a pandemia marcou uma geração que não pôde ir aos shows. “Nosso sonho é fazer isso acontecer.” Essa é a frase que mais se escuta ao entrevistar essas bandas, que, além de sonhar, lutam não só pela sua música, mas pelo direito de serem livres e pela vontade implacável de reacender a chama que um dia já incendiou o Rio Grande do Sul.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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