EDUCAÇÃO

Risco do saber

Entre liberdade acadêmica e silenciamento, professores enfrentam perseguição política no dia a dia da profissão

Ana Volkmann
Perspectivas em Movimento

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Docentes são vítimas de ataques de cunho ideológico | Foto: Freepik

“A educação é um ato político que liberta os indivíduos por meio da consciência crítica, transformadora e diferencial”, Paulo Freire

Ser educador no Brasil é estar sujeito a má interpretação, é estar refém de um cenário político transformado em guerra de narrativas. O educador, preso a esse sistema, se encontra de frente a um cruel obstáculo: a perseguição ideológica. Casos envolvendo perseguição de docentes têm sido mais comuns, como o afastamento, em outubro de 2023, do professor de História do tradicional Colégio Anchieta de Porto Alegre. Após uma aluna gravar parte de sua aula sobre o conflito entre Israel e o Hamas, pais e alunos direcionaram ataques ao docente nas redes sociais. Eventos desse gênero fomentam debates sobre até onde o professor tem liberdade de lecionar e o que deve ser ensinado em sala de aula, em especial quando se trata de matérias da área das ciências humanas.

A História é uma ciência do presente que se apropria do passado para entender novos eventos. É o que defende o professor de história Alexandre Andrades: “Para entender que o Brasil é um país racista, por exemplo, temos que entender que nós temos 300 anos de escravidão”. São as relações sociopolíticas que se estabeleceram há décadas e até séculos que vão refletir na atualidade. “Para entender o presente, nós temos que resgatar o passado”, completa o docente, que leciona em escolas da rede pública e privada de Porto Alegre.

Outro ponto importante para o ensino de História é refletir sobre a “narrativa dos vencedores”. Professora de Geografia por 13 anos, Paola Costa diz que normalmente é a visão do lado vitorioso dos acontecimentos históricos que fica conhecida, e que não se pode olhar para a história sem considerar que ela é contada sob esse ponto de vista. Ela diz que todo fato tem diferentes visões dependendo de quem o conta. Paola ressalta que a base é contextualizar os eventos para o aluno, evitando cair em um anacronismo histórico ou em uma desinformação. Assim, os professores propõem uma visão mais plural dos acontecimentos, mas é justamente a pluralidade que gera problema para eles. Após anos nas salas de aula, Paola optou por sair da docência e agora trabalha como colunista no Blog Farofeiros e podcaster no Farofeiros Cast (um veículo opinativo, que fala sobre diversos assuntos de forma descontraída), além de administrar o Camarote da República (sobre política brasileira).

Presidente do Sindicato dos Professores de Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), Cecília Farias identifica que parte dos pais não aceita uma visão mais plural no currículo escolar. Essa é uma situação que tem se tornado cada vez mais presente. Um estudo feito pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e financiado pela Protect Defenders, em 2021, apontou, a partir de um questionário preenchido por 837 profissionais de todo Brasil, que 64,4% afirmam já ter sofrido assédio, perseguição ou censura no trabalho. Já o medo de sofrer alguma represália se aplica para 63,7%, enquanto 61,9% já precisaram reprogramar uma aula por receio de repercussão negativa.

Na sala de aula e fora dela

Cecília conta que, no ano passado, em uma escola de Uruguaiana, no interior do Rio Grande do Sul, os pais consideraram inadequada uma aula de geografia em que o professor falava sobre agricultura e o quanto de água era necessária para sustentar uma plantação de arroz. Os arrozeiros interpretaram essa fala de uma forma muito negativa. “Acabaram envolvendo outros setores da cidade, foi muito ruim pro professor”, explica Cecília.

Essa série de eventos envolvendo constrangimentos, agressões, afastamento e até risco de demissão gera preocupação nos professores ao lecionarem certos conteúdos, o que resulta em uma abordagem mais superficial. É o caso do professor de Geografia e Atualidades do também tradicional Colégio Farroupilha, na capital gaúcha, Rodrigo Bennett. Ele entende que mesmo assuntos fora da matriz curricular merecem atenção por serem muito atuais, mas sente-se incerto quanto à abordagem. “Confesso que eu gostaria de abordar um pouco mais detalhadamente algumas coisas, mas tem briga que a gente não pode comprar”, desabafa o professor. Bennett relata como se sentiu ao lecionar o conteúdo sobre Israel e Palestina: “Eu dou essa aula há 15 anos e não tem problema nenhum. Este ano, eu dei essa aula com medo por causa do [caso do] Anchieta”. Diz também que muitas frases podem ser tiradas de contexto. “É uma aula que a gente fica mais se explicando do que qualquer coisa. Tá acontecendo tal coisa, não quer dizer que eu concorde ou não concorde”, finaliza.

O professor Alexandre já passou por situações difíceis tanto em escolas da rede pública quanto da rede privada. Ele lembra de uma aula em 2016, na época do impeachment da presidente Dilma Roussef, em que disse, em uma escola particular, estarem assistindo a um golpe. Explicou o que era e a circunstância do evento e teve sua aula gravada sem autorização. O caso chegou à direção da escola, mas se resolveu sem repercussões externas. Alexandre diz que, nesses momentos, há uma tentativa de silenciamento do professor. Já na rede pública, a ocorrência foi um pouco diferente. Durante uma aula de Ensino Religioso, o professor falou sobre o surgimento do neopentecostalismo no Brasil e usou um texto da revista Superinteressante, que trazia uma abordagem histórica e didática sobre o aparecimento do pentecostalismo nos Estados Unidos até chegar às ramificações que originaram o neopentecostalismo com o uso de exorcismo. Alguns pais, ofendidos, acionaram o Ministério Público. A escola comunicou o professor e tomou as devidas providências burocráticas, de forma que Alexandre não precisou se manifestar e o caso não teve mais repercussões.

Uma ocorrência grave foi vivida por Paola na rede pública, na qual lecionou por 10 anos. Durante as eleições de 2018, Paola foi ameaçada com uma arma na frente da escola por um pai de aluno devido a seu posicionamento político nas redes sociais durante as eleições. Esse pai — cujo filho não era aluno dela e sim dos anos iniciais — mostrou o cano da arma, a chamou de comunista e disse que estava fazendo doutrinação com os alunos. Paola ficou tão assustada que só saía da escola quando o carro de aplicativo já havia chegado, ou ia até o ponto de ônibus acompanhada. “Contei para alguns alunos mais próximos, eles não deixavam nunca que eu ficasse sozinha na escola por esse temor que tiveram”, conta Paola.

Desconstruindo o senso comum

Apesar da dificuldade, Alexandre acredita ser papel do professor abordar temas mais atuais em sala de aula. “É a nossa função: tentar esclarecer”, defende. Ele identifica como principais obstáculos o silenciamento de muitos professores e a forte polarização. “Explicar questões históricas é muitas vezes confundido com opinião, e a polarização impede as pessoas de entenderem o mundo.” Alexandre complementa dizendo que essa radicalização é algo mais recente: “Há 15 anos não havia esse ‘nós e eles’”. O professor considera que fica cada vez mais necessária a desconstrução do senso comum, mostrando que é uma explicação rasteira, simplória e que não existe ciência ali.

A interdisciplinaridade é uma forma de incentivar a aprendizagem | Foto: Marcelo Pires

O negacionismo científico e histórico é uma barreira para a compreensão do mundo. Alexandre afirma que abordar temas atuais em aula é uma forma de evitar que o aluno caia nesse senso comum. Paola diz que conflitos bélicos precisam ser contextualizados historicamente e que é necessário apresentar a visão dos dois lados, mostrar quais são as questões envolvidas e o motivo do que está acontecendo. Já o contexto eleitoral é também um tema fundamental para ser estudado em aula, uma vez que envolve questões como democracia, importância do processo eleitoral, do voto e a separação dos três Poderes, além de tratar do processo histórico até chegar no voto universal e nas lutas para esse fim. Paola acredita que o ideal seja trabalhar os conteúdos através de aulas explicativas e projetos interdisciplinares, que irão dialogar com outras disciplinas, instigar o aluno a estabelecer relações e facilitar o entendimento do acontecimento como algo mais amplo.

“A educação salva, a educação muda e a educação pode trazer uma nova perspectiva de vida”, Paola Costa, ex-professora

Formada em 2023 no Colégio Farroupilha, Maria Laura Rosolen, de 17 anos, teve a disciplina de Atualidades no currículo escolar do Ensino Médio. Ela via como uma matéria muito importante para sua formação por trazer os principais acontecimentos globais apresentados em reportagens e explicados de maneira didática, relacionando eventos e facilitando a compreensão do mundo. A aluna considera ser papel da instituição discutir a contemporaneidade. “Forma nos alunos senso crítico e evita alienação”, argumenta Maria Laura.

Apesar das dificuldades, Paola pede que as pessoas não tenham medo e não desanimem de serem educadores, pois, para ela, é “muito, muito importante” ver diferentes visões de mundo dentro das salas de aula. “A gente tá com pessoas com pensamento muito retrógrado liderando questões de educação e a gente tá falando sobre vidas políticas”, justifica Paola. Ela também destaca que ser educador é um papel fundamental por influenciar alunos para que eles entendam que existem perspectivas, e essa influência gera frutos. Paola foi professora de uma aluna da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que, quando jovem, precisou trocar o estudo pelo trabalho para ajudar em casa. Anos depois e com um filho adolescente, essa mãe foi incentivada pelo filho a terminar o Ensino Médio e, nesse caminho, acabou sendo aluna da Paola. Nas aulas, Paola mostrou para os estudantes que havia outras maneiras além da UFRGS de cursar o Ensino Superior de forma gratuita. Foi assim que essa aluna se formou em Letras no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e hoje é professora de Língua Portuguesa no município de Porto Alegre. Ela seguiu o sonho que tinha de ser professora e incentivar alunos a ler e a não abandonar a escola. “A educação salva, a educação muda e a educação pode trazer uma nova perspectiva de vida”, finaliza Paola.

Reportagem produzida pela disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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