ENSINO SUPERIOR

Sonho adiado

Mais de 160 alunos cotistas tiveram matrícula provisória cancelada só em 2023 na UFRGS

Eduardo Capaldo
Perspectivas em Movimento

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A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das melhores do país, e que atualmente ocupa o segundo lugar no ranking geral do Ministério da Educação (MEC), vem sendo alvo de críticas por conta dos desligamentos sistemáticos de alunos cotistas.

Outdoor mostra a posição da UFRGS em 2023 nos principais rankings entre universidades | Foto: Eduardo Capaldo

Segundo a comissão coordenadora de ingresso em cursos de graduação da UFRGS, desde 2016 já se somam mais de 700 alunos cotistas desligados dos cursos de graduação da universidade. Só em 2023, houve cerca de 160 desligamentos. Um desses casos é o do estudante de Jornalismo Ignacio Cordeiro, de 21 anos, que ingressou pela primeira vez no curso com a matrícula provisória, utilizando a cota étnico-racial. Os alunos pretos e pardos, para entrar na UFRGS pelas cotas, fazem primeiro uma autodeclaração racial no Portal do Candidato e, quando chamados, devem comparecer pessoalmente na universidade para que seja feita uma aferição por uma comissão. Ela verificará aspectos do fenótipo e das características físicas predominantes do candidato. O objetivo da aferição é coibir fraudes.

“Eu esperei por meses que marcassem minha aferição, olhando todos os dias no portal, até que, em determinado momento, eu me descuidei e, quando fui ver, eles tinham marcado e o prazo havia passado”, conta Ignacio. Ele ressalta que entrou em contato com o setor de ingresso e foi informado de que o prazo do recurso havia passado. “Portanto, não havia o que eu pudesse fazer.”

Como funcionam as leis de cotas e as matrículas provisórias

A Lei federal 12.711, conhecida como lei das cotas, garante a reserva de 50% das vagas nas universidades e institutos federais para alunos oriundos do ensino médio público. Essas vagas são divididas em três categorias. A cotas sociais destinam-se a estudantes de escolas públicas com renda familiar mensal por pessoa igual ou menor a 1,5 salário mínimo. As cotas raciais são para estudantes negros, pardos e indígenas. Por fim, as cotas para PcDs destinam-se a estudantes com deficiência.

Para concorrer às vagas de cotas, os candidatos devem comprovar que cursaram o ensino médio integralmente em escola pública e atender aos requisitos de renda ou raça. A política de cotas tem o objetivo de promover a inclusão social e a democratização do ensino superior. Ela visa garantir que pessoas de todos os grupos sociais, independentemente de sua renda ou cor, tenham acesso às universidades públicas.

A lei de cotas foi aprovada em 2012 e entrou em vigor em 2013, com atualização entre 2016 e 2017 para a inclusão de Pessoas com Deficiência (PcDs). Desde então, ela tem sido responsável por um aumento significativo da presença desses grupos nas universidades públicas brasileiras.

As matrículas provisórias são aquelas que são concedidas a alunos que ainda não comprovaram todos os requisitos para a matrícula definitiva, geralmente por falta de documentação. Elas são válidas por um período determinado, geralmente de um semestre ou um ano. Durante esse período, o aluno deve regularizar sua situação para obter a matrícula definitiva. Para isso, deve apresentar a documentação que falta e, quando é o caso, participar do processo de aferição, que era a situação de Ignácio.

“Sinto que não foi um processo justo, pois, além de não receber nenhuma notificação da data, o prazo era muito curto”, diz Ignácio. Quando ele ingressou pela segunda vez via Vestibular em 2022, por meio da mesma cota, foi bem mais rigoroso na conferência do prazo. “Olhava o portal no mínimo uma vez por dia, porém, um dia quando eu abri o portal, me deparei com uma mensagem que dizia que eu havia novamente perdido a data, coisa que era impossível, já que eu olhava todos os dias”, lembra.

“Ver outra vez esse sonho ameaçado foi bem angustiante”, Ignácio Cordeiro, Estudante de jornalismo

Dessa vez, o estudante entrou com um recurso na UFRGS alegando não ter sido informado sobre a data da aferição. O recurso foi aceito e uma nova data foi marcada. Atualmente cursando o segundo semestre de Jornalismo, ele confessa que todo o processo foi “bem complicado”. Ele teve que estudar de novo para ser aprovado no Vestibular e repetir todo o processo pelo qual já havia passado. “Ver outra vez esse sonho ameaçado foi bem angustiante”, aponta Ignácio.

Histórias como a do estudante de Jornalismo ocorrem pelos mais variados motivos. De acordo com dados publicados pela própria universidade, todos os anos no mínimo 100 alunos cotistas são desligados dos cursos de graduação. As principais razões para a não homologação da matrícula de alunos cotistas, segundo a Comissão Coordenadora de Ingressos, são a entrega de documentação incompleta, falta de comprovação da condição de cotista por meios oficiais e recursos indeferidos. O site da UFRGS informa que é importante que os candidatos cotistas verifiquem cuidadosamente a documentação exigida pelo edital do processo seletivo e a submetam de forma completa e correta. Os documentos oficiais aceitos são certidões de nascimento, casamento, óbito, escolaridade, renda familiar, situação de moradia, entre outros.

O que diz o DCE

Os candidatos cotistas com matrícula não homologada têm a oportunidade de interpor recurso, mas é importante que eles verifiquem cuidadosamente as orientações do edital e preparem um texto bem fundamentado. Mesmo assim, é pequena a porcentagem dos recursos aceitos, como conta o coordenador da atual gestão do Diretório Central de Estudantes da UFRGS (DCE), Matheus Fonseca, aluno de Políticas Públicas: “A taxa de aprovação dos recursos ainda é muito baixa, principalmente por conta dos prazos que são muito apertados. Quando o aluno vai ver, ele tem uma semana para reunir uma centena de papéis”.

“Nós queremos garantir que as cotas sejam efetivadas, que se tenha assistência e permanência e o cotista possa se formar”, Matheus Fonseca, aluno de Políticas Públicas

Matheus também ressalta que o DCE faz um trabalho de orientação e acompanhamento dos estudantes, instruindo sobre as documentações exigidas. “Nós à frente do DCE temos o auxílio aos estudantes cotistas como uma prioridade. A burocracia que a UFRGS impõe aos cotistas é cruel. Nós queremos garantir que as cotas sejam efetivadas, que se tenha assistência e permanência e o cotista possa se formar.”

Matheus conta que o diretório organizou várias ações para auxiliar os cotistas. Foram realizados plantões e mutirões de matrícula para auxiliar os ingressantes no envio da documentação. Houve também acompanhamento jurídico nos casos pertinentes. “E de forma aprofundada fizemos um amplo estudo sobre a burocracia que envolvia a cota socioeconômica que resultou na apresentação de uma alteração do edital do Vestibular, eliminando solicitações descabidas”, diz.

Um dos maiores problemas do edital era solicitar a documentação do pai do candidato, quando muitos sequer conheciam o pai. “Nossa luta fez com que agora a UFRGS aceite uma declaração caso não exista contato do candidato com o pai”, afirma Matheus. Também foi feita uma alteração no edital para facilitar a matrícula para os alunos que moram em área verde ou sem regularização fundiária. “Estabelecemos na mudança que a universidade teria um prazo de seis meses para analisar a documentação, e, se não analisasse nesse período, o aluno deveria ter sua matrícula efetivada independente da avaliação”, conta o coordenador do DCE.

Em anos anteriores, a UFRGS já havia desligado alunos que estavam no oitavo semestre pela morosidade na análise. “Nessa nova gestão, que assumimos há pouco tempo, estabelecemos junto ao Emancipa uma parceria para um mutirão de atendimento aos candidatos, e ficamos à disposição para auxiliar aos colegas em geral”, explica Matheus. A Rede Emancipa é um movimento social de cursinhos populares que tem como objetivo lutar pela democratização do acesso à universidade.

Os desligamentos sistemáticos de alunos cotistas na UFRGS levantam questionamentos sobre a efetividade da política de cotas da universidade, que ainda precisa aperfeiçoar os critérios para a homologação de matrículas e oferecer mais apoio aos candidatos cotistas que têm dificuldades em regularizar sua situação. A comissão coordenadora de ingressos foi procurada para dar informações para esta reportagem, mas preferiu não se pronunciar.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos de Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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