SAÚDE

Vida no último ato

Com uma equipe multiprofissional, medicina paliativa ensina que cuidado e humanização não se limitam à busca pela cura

Luana Pazutti
Perspectivas em Movimento

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Rompendo os estigmas da perda, cuidados paliativos proporcionam melhor qualidade de vida aos pacientes com doenças incuráveis | Foto: Freepik com edição de Luana Pazutti

No calendário, consultas e exames que, algum dia, foram sinônimo de esperança. Na estante, comprimidos e xaropes já ineficientes. No olhar, o medo de quem vê a vida como uma série sem renovação. No papel, a sentença de um final sem possibilidades de reescrita. Na alma, a dúvida: o que fazer quando não há mais o que ser feito?

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a medicina paliativa é responsável por melhorar a qualidade de vida de pacientes — crianças, adultos e idosos — acometidos por doenças que ameaçam a continuidade de suas vidas. Contando com equipes multiprofissionais, a área atua na prevenção e controle de sintomas físicos, emocionais, espirituais e sociofamiliares.

Em dezembro de 2023, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) publicou o terceiro Atlas de Cuidados Paliativos no Brasil. A partir de dados coletados em 2022, é notável um crescimento gradativo na quantidade e qualidade desses serviços no país, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo, a popularização e eficiência plena dos cuidados paliativos ainda representam um desafio no Brasil. O estigma acerca da morte, o distanciamento do tema nos ambientes universitários e a falta de políticas públicas parecem silenciar uma área que tem muito a dizer.

O luto pela vida que não terão

A iminência da perda diante de um diagnóstico terminal pode desencadear sentimentos de profunda tristeza e depressão. A psicóloga especialista em cuidados paliativos pelo Hospital Israelita Albert Einstein Natalia Schopf Frizzo destaca que um ponto comum entre os pacientes é a angustiante sensação de perda de controle sobre a sua própria funcionalidade.

É nessas horas, que o papel do profissional paliativista se torna ainda mais valioso. “Ao me deparar com alguém em um momento de tamanho significado na vida, preciso conhecer o sujeito por trás da doença, a pessoa em sua biografia, sonhos, medos, valores e expectativas. Assim, consigo organizar meu papel, singular e personalizado, na história de vida que passo, respeitosamente, a me tornar parte”, afirma Natalia.

“Um dos pilares do cuidado paliativo é a comunicação. Mais do que profissionais que cuidam de doenças, somos uma equipe que cuida de pessoas. Estamos aqui para ajudá-las a alcançar seus objetivos de vida”, Rodrigo Kappel Castilho, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos

Para o presidente da ANCP e plantonista do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Rodrigo Kappel Castilho, nem todos têm essa visão: muitos enxergam a morte como um fracasso da medicina e não como um processo natural. “Um dos pilares do cuidado paliativo é a comunicação. Mais do que profissionais que cuidam de doenças, somos uma equipe que cuida de pessoas. Estamos aqui para ajudá-las a alcançar seus objetivos de vida”, complementa o médico.

Brasil no pódio dos piores países para morrer

Publicada em abril de 2022 no Journal of Pain and Symptom Management, uma pesquisa internacional apontou o Brasil como terceiro pior país quando o assunto é “qualidade de morte”. Superando apenas o Líbano e o Paraguai, o país ocupa a antepenúltima posição em um ranking composto por 81 nações. No polo oposto, lideram Reino Unido, Irlanda e Taiwan pelas boas condições proporcionadas à população no fim de vida.

Entre os critérios analisados para elaboração do estudo, foram avaliados a infraestrutura oferecida nos centros de cuidados paliativos, o desempenho dos profissionais da área e a acessibilidade aos tratamentos necessários.

Ranking internacional de qualidade de morte

Imagem: Eric Finkelstein / Journal of Pain and Symptom Management

Além das dificuldades inerentes ao acesso às medicações para controle dos sintomas, Kappel atribui o resultado à falta de investimentos para a formação de novos profissionais e capacitação daqueles já atuantes. O médico ainda ressalta que o país carece de ações institucionais que reforcem e esclareçam a importância da área para a população.

“A morte é algo que se esconde, que não se fala. São muitos estigmas. A própria palavra ‘paliativo’ remete a uma coisa secundária, de menor importância. Quando na verdade, o termo deriva do latim ‘pallium’, que era o manto que protegia os guerreiros das intempéries”, declara o presidente da ANCP.

Uma vítima do desconhecimento

Para a psicóloga Paula Monmany Jobim, de 26 anos, o primeiro contato com a medicina paliativa não ocorreu na graduação, mas em um estágio realizado no HCPA, em 2018. Formada há três anos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a profissional enxerga como transformador o ano que passou no Núcleo de Oncologia e Cuidados Paliativos do hospital.

Paula entende que a oportunidade foi essencial para o aperfeiçoamento de uma escuta pautada na empatia. “Era preciso se colocar à disposição para ser um ouvido, uma companhia, um profissional que vive aquele momento com o paciente”, analisa.

Contudo, a experiência vivida pela psicóloga ainda é a exceção à regra. Paula percebia que os cuidados paliativos facilmente se tornavam vítimas do desconhecimento no ambiente universitário. “Em uma internação hospitalar, é preciso sustentar uma escuta sobre um lugar muito pessoal do paciente. Outras áreas da saúde devem ter um contato mais próximo nos seus cursos, mas quando eu falava do estágio nos seminários, as pessoas diziam: ‘eu não poderia trabalhar com isso. Não poderia trabalhar com luto, com morte, com perda’”, conclui.

A medicina da alma

Médico geriatra, professor e pesquisador, Emilio Hideyuki Moriguchi defende que um relacionamento médico-paciente pautado na confiança deve ser a base de qualquer tratamento.

“Percebo algo muito interessante no Japão: os ideogramas para o coração e para a alma são iguais. Cuidar da alma das pessoas talvez seja tão importante quanto tratar um órgão”, Emilio Hideyuki Moriguchi, médico geriatra

“Humanização e espiritualidade na medicina são essenciais para compreendermos o que o outro está precisando. Nem sempre vai ser um tratamento clínico, talvez seja uma boa conversa”, afirma o docente. Mesmo lamentando a materialização da sociedade contemporânea, ele não perde a esperança na empatia e busca transmitir isso aos seus estudantes.

Além de lecionar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Moriguchi é professor visitante nas Faculdades de Medicina da Yokohama City University e da Chiba University, ambas japonesas. “Percebo algo muito interessante no Japão: os ideogramas para o coração e para a alma são iguais. Cuidar da alma das pessoas talvez seja tão importante quanto tratar um órgão”, destaca. A medicina paliativa, portanto, parece se aproximar da mais genuína forma de “medicina da alma”.

Nos cuidados paliativos, sensibilidade, humanização e confiança devem guiar a relação médico-paciente | Foto: Freepik com edição de Luana Pazutti

Um herói para além da cura

“A morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida”, afirma a médica geriatria, especialista em cuidados paliativos e suporte ao luto, Ana Cláudia Quintana Arantes, em seu livro A morte é um dia que vale a pena viver. Nesse sentido, os cuidados paliativos são um lembrete de que a vida deve ser vivida até o último dia

Ainda há um sorriso acolhedor, um ombro amigo ou um aperto de mão à espreita. Ainda existe a dedicação de quem busca um familiar distante para o último abraço. A escuta de quem absorve as memórias de um caminho bem traçado. A compaixão de um herói, cuja capa deu lugar a um jaleco. Ainda vive a certeza de quem sabe que sempre — até diante da morte — há o que ser feito.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS.

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Luana Pazutti
Perspectivas em Movimento

jornalista em formação pela ufrgs | em busca de novas formas de contar histórias