A poesia do cotidiano

por Josiane Santana

Rede Globo
Cidade dos Homens
5 min readJan 18, 2017

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Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Um dia minha família e eu estávamos assistindo a um programa de televisão bem conhecido e o tema abordado em questão era favela. Já não me recordo exatamente o que a pauta do programa debatia, porém jamais me esquecerei da discussão que se estendeu na minha sala, quando a televisão foi desligada. “Fotografar favela não é bonito, Josiane! Eu sinceramente gostaria de entender você! Vai dizer que favela é coisa bonita de se mostrar?”, disse meu pai. Isso mesmo que você leu: meu próprio pai.

O preconceito veio de dentro da minha casa, de quem eu menos esperava. Confesso que até hoje faço profundas reflexões sobre isso.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Essa indagação de meu pai fez a minha memória voltar em 2013, quando comecei a fotografar. Naquela época projetos importantes estavam fervilhando no Complexo do Alemão, favela onde moro desde que nasci. Sem perspectiva na vida naquele momento, agarrei uma grande oportunidade de estudar fotografia na grande fábrica de talentos: a Nave do Conhecimento da Nova Brasília (comunidade pertencente ao complexo). Como eu poderia pagar um curso dessas em outro lugar? Nunca conseguiria. Fotografia é para rico e não para pobre. A Nave formou centenas de jovens que assim como eu estão trilhando e brilhando por ai. É aquela tal oportunidade que vem como luz no fim do túnel e muda tudo. Como eu gostaria que essa oportunidade que tive batesse constantemente na porta de todos.

Lembro que nas aulas externas do curso, eu poderia fotografar as plantinhas na rua, o céu azulado, ou até mesmo as amigas que serviam de modelo para praticar bem com a câmera. Mas não, tomei gosto mesmo quando comecei fotografar os raios de sol que atravessavam as vielas, aquele emaranhado de fios nos postes.

A cor do tijolo das casas que compõe este mar de vidas e histórias. Enxerguei arte ali. Percebi que fotografar não deveria ser apenas um hobby, mas sim um caminho de transformação, em que eu pudesse contaminar outras pessoas também.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Hoje faço parte do Favelagrafia. Eu e mais oito moradores de outras oito favelas retratam o cotidiano de suas regiões: Complexo do Alemão, Borel, Cantagalo, Babilônia, Mineira, Providência, Morro dos Prazeres, Rocinha e Santa Marta. Desde que começamos o projeto nossa meta principal é contar histórias de grandes personagens e o nosso olhar.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

O olhar de dentro para fora: de quem vive e tem propriedade para falar. A nossa ferramenta é uma câmera de celular nas mãos, onde podemos usar a favor desses lugares, como quebra da barreira do ódio e do preconceito. E conseguimos! Juntos mostramos pra sociedade que instrumentos musicais substituem armas de fogo, que o menino dançando ballet no beco é “baile de favela” e que os grafites pelos muros dão o colorido de vida que precisamos.

Mostramos que existe empreendedorismo, protagonismo feminino e muita criatividade. São famílias e jovens que precisam ser tratadas com respeito e dignidade. Com isso chegamos ao MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro): a favela desceu o asfalto e calou a galera do “mimimi”. Sem mais.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Através da fotografia eu poderia escolher descrever diariamente a rotina difícil desses moradores ou até mesmo falar da violência, da miséria e de todos os outros problemas que as favelas cariocas possuem.

Mas todo mundo já fala disso e fala o tempo todo. Sinceramente estou cansada de ouvir sempre a mesma coisa. Já é normal e cultural ver a favela sendo esculachada de alguma maneira.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Ser chamado de “favelado” não tem que ser mais motivo de vergonha. Infelizmente ainda existe um grande número de moradores que ainda não tem noção da potência que carregam e de como suas vozes ecoam alto. Eu desejo profundamente que todos sejam despertados, assim como eu fui lá atrás. O Complexo do Alemão faz parte da minha formação pessoal e profissional e é aqui que crio com muito orgulho o meu filho de apenas cinco anos. Sinto orgulho e amor porque me permiti olhar o lugar onde eu moro de outra forma. Tento não me perder naquilo que ouço, mas fixo o meu olhar na esperança de dias melhores.

Foto: Josiane Santana / Projeto Favelagrafia

Eu acredito na força da pluralidade cultural como luta e resistência. E a cada foto que faço, ainda que para meu pai continue sendo sem sentido, não pararei. Se depender de mim, a favela cada vez mais ganhará o mundo, porque ela é muito mais do que se ouve e do que se fala.

Josiane Santana é fotógrafa, estudante de jornalismo e representante do Complexo do Alemão no Favelagrafia.

Há 15 anos a minissérie Cidade dos Homens contou histórias da periferia carioca que marcaram época na televisão. Para comemorar a 5ª temporada, convidamos um time especial que compartilhou suas impressões sobre o tema por aqui.

Com estreia prevista para o dia 17 de janeiro, Cidade Dos Homens é uma minissérie de 4 episódios, exibida de terça-feira a sexta-feira. Escrita por George Moura e Daniel Adjafre, tem direção geral de Pedro Morelli. A temporada já está disponível na íntegra para os assinantes do Globo Play.

As fotos que ilustram essa publicação foram gentilmente cedidas peloFavelagrafia, projeto que tem como principal objetivo dar visibilidade para o dia a dia das favelas, suas histórias, paisagens e personagens. Detalhes que só quem mora lá conhece. Recriando, assim, o olhar da cidade sobre as comunidades.

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