Desinstalar e remover programas

David Diogo Haddad
Cidade Fantasma
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4 min readApr 8, 2020

“Durante meu tempo aqui, eu tive uma revelação. Eu percebi isso quando tentei classificar sua espécie e cheguei a conclusão que vocês não são mamíferos. Todo mamífero nesse planeta instintivamente desenvolve um equilíbrio natural com o seu ambiente, mas os humanos não. Vocês se alocam em uma área e multiplicam, multiplicam, até que o último recurso natural seja consumido e que a única saída para sobreviver seja se mudar para uma nova área. Tem outro organismo nesse planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? O vírus. Seres humanos são uma doença, um câncer desse planeta.”

A constatação acima foi feita pelo icônico personagem Agente Smith no primeiro filme da premiada, e de fato brilhante, trilogia Matrix.

Em apelo reducionista, até porque os diálogos do filme inspiram reflexões variadas, muito mais profundas do que as reflexões que o próprio filme se propõe a explorar, o “vilão” cibernético (afinal, em uma história contada por humanos, os humanos nunca serão os vilões), um programa de computador criado com a função de proteger o sistema no qual ele habita — um antivírus — ultrapassa as fronteiras do quarta parede para passar uma mensagem pro espectador que está do outro lado da tela: a raça humana é hostil. Virótica.

O vírus é um agente suicida. Se hospeda em algo que pretende matar. Suga todos os recursos, se alimenta às custas dos últimos suspiros de seu hospedeiro. É formidavelmente mortal justamente por não considerar sua própria sobrevivência. O importante é se alimentar o mais rápido possível. O amanhã importa, se nada, pouco.

Existem duas formas de analisarmos a nossa espécie partindo desse pressuposto. A primeira, em um cenário micro, rejeita completamente a analogia. Seres humanos são complexos, difusos, individuais. Nossas opiniões diferem, ao redor do mundo, sobre economia, política e religião. Não existe uma “única visão” para nossa espécie. Por outro lado, “gostos” não são uma exclusividade dos seres humanos. Cachorros preferem determinadas rações, leões preferem determinadas presas.

A segunda, em um cenário macro, abraça a analogia. Considerando o tempo que estamos aqui em nosso último estágio evolutivo, a história que a humanidade conta é linear, segue um padrão. É a história da dominação, primeiro do ambiente onde estamos, até alcançar suas margens, ou seja, o planeta Terra, e, em seguida, da dominação sobre nós mesmos. Não há um estágio de satisfação. Não há objetivo final. Inclusive, o modelo econômico capitalista reflete justamente essa natureza: produzir sempre mais, lucrar sempre mais, independente do custo, ainda que o custo seja nossa própria sobrevivência. O amanhã importa, se nada, pouco.

Yuval Noah Harari exemplifica isso muito bem em seu livro Sapiens, quando diz “We do not become satisfied by leading a peaceful and prosperous existence. Rather, we become satisfied when reality matches our expectations. The bad news is that as conditions improve, expectations balloon.”.

É incrível como a frase pode ser aplicada, com poucas alterações, a humanos e vírus. Enquanto as condições melhorarem, ambos estarão sempre em busca de mais.

Surpreendentemente, hoje a espécie humana é ameaçada por um organismo. Invisível a olho nu, teve o poder de chacoalhar os pilares da nossa sociedade moderna. Nos sufoca a ponto de precisarmos de ajuda para exercermos nossa função mais básica: respirar. Torna o nosso habitat natural um tanto quanto inóspito. Sair das nossas naves se tornou perigoso demais. Curiosamente, esse mesmo habitat parece ter gostado do efeito: os rios estão mais claros, o ar está mais limpo, os animais voltaram a frequentar locais antes impossíveis. Até as placas tectônicas estão se movendo menos.

Na história da guerra entre humanos e máquinas criada pelas irmãs Watchowski, anterior inclusive a história retratada na trilogia, os humanos, para impedir que as máquinas tomem o controle do planeta, disparam bombas que cobrem os céus com nuvens permanentes, uma vez que elas eram movidas a luz solar. Eles literalmente “destroem” o planeta e toda forma de vida nele pra tentar sobreviver. Não funciona. As máquinas vencem a guerra e passam a dominar o mundo, que se estabiliza, ainda que envolto em escuridão e — quase — desprovido da vida como conhecemos.

Aqui, no Anno Domini, somos ameaçados por este novo organismo. Essa metáfora em forma de partícula. Vírus? Com certeza é um vírus, em nossa acepção biológica. Mas me pergunto se não estamos diante das “máquinas”. Se não somos nós que estamos dispostos a pintar os céus de preto com nossas usinas termoelétricas, com nosso incontáveis chaminés e com nossas bombas atômicas para sobreviver. Se não somos nós que estamos promovendo a desestabilização da ordem natural das coisas. Se não estamos somente diante de um vírus, mas de um antivírus.

Devaneios a parte, é importante lembrar que como um humano eu prezo pela minha própria sobrevivência e pela nossa vitória heróica. Afinal, em uma história contada por humanos, os humanos nunca serão os vilões. Só que, como em Matrix, nem sempre a história acabe bem pro nosso lado. Cenas dos próximos capítulos.

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David Diogo Haddad
Cidade Fantasma

Após dez anos escrevendo poesias no blog Poesia de Varanda (www.poesiadevaranda.blogspot.com), chegou a hora de contar outras histórias.