Raquel

Davi Monticelli
Cidade Fantasma
Published in
5 min readApr 14, 2020

Raquel era turista vinda de São Paulo e havia acabado de parar na praia de Copacabana depois de descer do ônibus city-tour. Encontrou na calçada alguns moradores locais que já esperavam os turistas para guardar suas malas, permitindo que fossem visitar a praia. Tudo por um preço, claro. O negócio era antigo.

A moça astuta deixou sua mala com um senhor sentado na escadaria e foi a praia. Lá aproveitou um bom drink de água de côco gelada e vodka enquanto expunha seu biquíni azul, os cabelos queimados de sol e o corpo bem produzido nas areias douradas de Copacabana.

Ao retornar, mas ainda na areia, percebeu que demorara tempo demais em seu raro momento de deleite pessoal. Os moradores bolseiros haviam ido quase todos e o portador de sua mala desaparecido junto deles.

Raquel recolocou o vestido e foi examinar o local. No calçadão foi quase atropelada por um corredor usando fones, musculoso, que falava consigo mesmo cenas do filme Rocky Balboa, o primeiro.

Quando chegou do outro lado viu dois homens sentados na marquise de um restaurante, vestidos de Polo branca e calça preta, fumando um cigarro sujo em frente ao seus ganha-pão, dois táxis amarelos.

“Por acaso viram um senhor (descrição) segurando uma mala que lembra a de um violão?”

“Ih, senhora, você deveria saber que aqui no Rio só tem interesseiro e ladrão a serviço do turista… Sua mala deve estar na Lapa a essa altura” O companheiro de fumo riu enquanto tragava.

Raquel examinou o local. Não havia mais ninguém, nem mesmo os moradores locais. A sua frente estava a porta de um restaurante chique. Não dava para ver dentro pois as mesas ficavam no segundo andar (assim como as janelas). Sua mão foi até a maçaneta cor de ouro, porém a interromperam no ato.

“Moça, aí você não vai conseguir entrar. Só aceitam gente chique e a senhora está como quem voltou da praia”

O companheiro de crime completou: “Mas a gente pode te ajudar com isso. Somos taxistas desse restaurante, eles no deixariam entrar. R$50 para cada e a gente entra com você” Riram ambos.

Raquel ignorando os dois abriu a porta. Ao entrar, foi logo recebida por um rapaz negro, alto, bem engomado que dizia “Reserva?”

“Não tenho.” mas não freou o passo e começou a investigar o recinto. Avistou um guarda-volumes no canto da recepção e a ponta de uma mala que lembrava a sua.

“Por acaso o senhor não pisou fora do restaurante hoje, foi?”

O rapaz negou. Do lado de fora os taxistas escutavam pela fresta deixada na porta entreaberta.

“Tem certeza disso? Pois perdi minha mala, uma que facilmente seria despercebida entre as que estão no guarda-volumes do restaurante. Por conta de seu formato, alguém pode acreditar se tratar de um violão caro e tentar roubá-la..”

O recepcionista passou a suar frio. Levou a mão até a gola do colarinho para afrouxar o que parecia uma jiboia em seu pescoço.

“Senhora..”

“Dra.”

“Dra.. Posso afirmar que não fui lá fora” Foi dizendo o rapaz entre uma risada nervosa e colocando as palmas das mãos para cima. “Se a Dra. não possui reserva devo pedir para se retirar.”

“E se eu acho que minha mala está aqui devo chamar a polícia.”

Os taxistas do outro lado se entre olhavam contra a audácia da turista. Riam aos cochichos.

Dentro do estabelecimento chegou o gerente. Um senhor de cabelos grisalhos e bigode grosso pintado de piche. A barriga de chopp de bar de quinta categoria ficava escondida entre o cinto apertado da calça e a camisa social, ambas pretas, claro.

“O que está acontecendo aqui?”

“Senhor, eu..” foi arguindo o rapaz.

“Acredito que algum funcionário do seu restaurante roubou minha mala.”

“Impossível! Quem? Lucas?” disse se referindo ao outro que não parava de suar.

“Talvez.” Disse examinando o rapaz. “Poderia inspecionar seu guarda-volumes?”.

Raquel mal concluiu e já foi em direção do mesmo a passos largos. O gerente, a passos mais largos e nervosos que os dela, alcançou primeiro.

“Senhora..”

“Dra.”

“Dra.. Regras do recinto, apenas o gerente pode olhar os pertences do guarda-volumes, para evitar ladrões, entende?” disse com a voz fraca.

“Entendo” retrucou Raquel cruzando os braços a espera.

O gerente então começou a remexer as malas até chegar em uma escondida entre as outras. Começou a retirá-la quando em um movimento não natural a deixou de lado.

“Como disse que era sua mala mesmo…. Eh…. Dra.?” Falou disfarçadamente.

“Não disse.” e fez uma longa pausa em silêncio na qual o gerente apenas lhe dava as costas.

“.. Mas ela se parece muito com essa que pegou por último”

O senhor então solta uma baforada. “Hum” e pega a referida mala. Cruza o salão e entrega a Raquel. Essa abre o zíper principal para verificar o conteúdo. O recepcionista e gerente tentam espiar, mas não conseguem. Raquel os pegou no ato e fechou a mala.

“É essa mesmo. Posso mostrar uma foto com ela, se quiser.” Disse em tom acusativo.

“Não é preciso. Lucas, escolte a Dra. para o lado de fora, por favor. Volte sempre! E desculpe o acaso, não sei como foi parar ali!” Disse isso e desapareceu as pressas.

Raquel não respondeu. Foi com Lucas até a porta e, antes de sair disse ao rapaz: “seu emprego não paga a cadeia, o do seu chefe talvez”.

Do lado de fora os taxistas aguardavam sua nova heroína. Ficavam dizendo que nunca viram turista assim no Rio e que já era hora de ensinar esses caloteiros uma lição.

Raquel sorriu discretamente.

“Moça.. Quer dizer.. Dra.”

“Raquel”

“Raquel, posso te levar ao seu próximo destino? Não pagaria nada! Quero recompensa-lá por seus serviços ao Rio” disse em tom de sinceridade.

“Aceito…” Esperando o outro completar.

“Rodrigo, sem Dr.”

“Aceito, Rodrigo.”

E saíram taxi à dentro pelas ruas do Rio de Janeiro.

“Para onde vai, Raquel?”

“Delegacia”

“Muito bem! É preciso mesmo denunciar esses crimes”

“Não é isso.. Estou a procura da família do dono desta mala” ao dizer isso seus olhos começaram a lacrimejar. Sua expressão mudou e começou a desabar ali mesmo no banco do carona.

Rodrigo encostou e perguntou o motivo oferendo-lhe lenços de papel.

“Preciso de uma vitória. Preciso ouvir de alguém que a vida é mais que carne, veias e ossos…” Rodrigo estava mais que confuso, mas deixou a outra continuar seu desabafo.

“…preciso ouvir aquela música e não chorar.”

Um flashback ecoa na mente de Raquel.

Estava na mesa de cirurgia, operando enquanto ouvia a música do rapaz que, mesmo esfaqueado por um morador de rua depois de tocar no barzinho, conseguiu manter o sorriso no rosto dentro da ambulância à caminho do hospital. Ele havia pedido para tocar sua música durante a operação, e entregou um CD a sua médica.

Raquel agora lutava pelo rapaz ao som da sua doce voz e violão sereno. As enfermeiras e enfermeiros a auxiliavam como podiam.

“Bisturi!” “Sucção!” “Luz!”.

Mas não importaram os comandos quando a linha surgiu na tela, anunciando ao som da nota única, o passar de vida. Raquel havia perdido seu primeiro paciente na mesa de cirurgia.

--

--

Davi Monticelli
Cidade Fantasma

Você vai encontrar muito mais sobre mim aqui do que digo por aí.