Pistas da travessia para a Democracia em Rede

Instituto Cidade Democrática
Empurrando Juntas
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12 min readOct 17, 2016

O desenvolvimento da internet e das TICs aponta para a emergência de uma democracia em rede que promete, entre outras coisas, protagonismo da sociedade em relação ao Estado e a distribuição de poder. Nos últimos anos, houve uma explosão de iniciativas de tecnologias que, de alguma forma, se articulam em relação a essa promessa que parece ainda não respondida.

Uma das razões, pode ser o fato que, defender um papel protagonista para o cidadão comum e distribuição de poder, é algo que ameaça os interesses de políticos, partidos e empresas que tem se beneficiado do paradigma autocrático e centralizado por centenas e talvez milhares de anos. Então estamos cientes de que a missão que temos diante de nós tomará algum tempo e esforço para ser realizada, assim como está inscrita na grande transição que estamos todos passando.

Acreditar na máxima da cultura digital de que “tecnologia é mato, o importante são as pessoas” nos parece promissor para evitar o fetiche da tecnologia por si e a criação de soluções que não realizam o potencial da arquitetura distribuída da rede, respondendo ao desafio de consolidar processos de ação coletiva autônoma que levem a distribuição de poder.

É esta máxima que alguns anos atrás passou a orientar o desenvolvimento do software livre do Cidade Democrática. Em outras palavras, as decisões de novidades e melhorias começaram a responder às dinâmicas políticas e sociais da ação coletiva autônoma, modelando experiências singulares como por exemplo: o concurso amazônico Webcidadania Xingu, o concurso de Jundiaí com foco no controle social, o “concurso” criado para a etapa digital da Conferência Nacional de Juventude. Nessa mesma lógica está a ação dos “Laboratórios livres de participação social”, em São Paulo, que fomenta a apropriação de aplicações livres por parte de movimentos sociais de cultura, desenhando novos usos em resposta aos contextos políticos autônomos de cada território.

Mesmo assim, vemos que estamos longe de “entregar” iniciativas que avancem significativamente na construção dessa democracia em rede e muitas das lições aprendidas nos últimos anos nos permite compreender, hoje, a complexidade de obter simultâneamente alguns elementos mínimos para essa resposta, como escala sem intermediação, sustentabilidade financeira do Cidade Democrática pela criação de um valor difícil de medir, qualidade no debate sem exclusão, mudanças permanentes nas instituições estatais e construção de comuns. Responder a tudo isso parece ser a medida correta para avaliar a arquitetura de interação, o modelo de negócio, o impacto e a chance do ecosistema de tecnologias de participação social engajar em impacto coletivo. Abaixo estão algumas das nossas últimas reflexões. Esperamos que aprecie e que nossos aprendizados lhe ajudem a trabalhar melhor e fazer a promessa se realizar.

1. O sucesso da audiência é bom pra democracia?

A massificação das plataformas de “social media” trouxe a promessa da comunicação horizontal de muitos para muitos e a possibilidade de fazer mobilização sem deter o controle dos meios, como acontecia com a velha mídia broadcast. Grupos que são capazes de se organizar em torno de recursos comunicacionais e de campanha levam sua mensagem para muito mais gente, se constituindo como fortes atores na disputa de agenda nesses ambientes.

Esse fenômeno também fez surgir um novo tipo de ativismo e de advocacy, facilitado por novos intermediários que aproximam o cidadão comum, pré-digerindo pautas difíceis e facilitando a formação de “massas de incidência” via sistemas automatizados de publicação, envio de emails e telefonemas direcionados aos alvos da mobilização, quase sempre atores que ocupam cargos públicos. Aliado aos algoritmos dos principais ambientes de mídias sociais, esse novo tipo de ativismo acaba por reintroduzir uma lógica de disputa por audiência e maximiza as chances de vitórias de campanhas em função da pauta midiática ou de eventos específicos, reduzindo as possibilidades de que as novas tecnologias fortaleçam um advocacy motivado a reformas institucionais ou agendas mais amplas de políticas públicas.

Os ambientes de “social media” e “novo advocacy” baseados em software proprietário e algoritmos não transparentes são muito bons em catapultar mensagens, segmentar público e proporcionar uma arena de disputa por audiência. E todas essas qualidades, ainda que tragam alguns resultados políticos positivos, são muito eficientes para o retorno do investimento em publicidade. Campanhas em torno de produtos (políticos ou não políticos) têm agora a sua disposição uma ferramenta mais complexa e efetiva para influenciar o público, permitindo novas combinações de recortes e associação de sentimentos e afetos com produtos e mensagens. Por outro lado são péssimos para o debate político. Para isso precisamos de arquiteturas de interação e algoritmos que valorizem a cultura e as dinâmicas democráticas de distribuição de poder, transparência e que sejam eficientes na identificação de ruídos e estabelecimento de consensos mínimos, focando a discussão onde realmente importa: nas decisões que serão tomadas por um método democrático.

É por isso que seguimos nos perguntando, como em parte já fizemos em nossas “lições aprendidas”: Para onde isso nos levará no longo prazo? Devemos nos conformar a uma lógica de advocacy repaginada, que consegue mobilizar o cidadão comum através de mensagens impactantes e bem sincronizadas, como o próximo passo na direção da democracia em rede?

Nossa resposta é não. Talvez possamos oferecer uma teoria de mudança mais adequada para a promessa da democracia em rede, que consiga estimular a ação coletiva autônoma, superar o limite da participação orientada a eventos e construir arranjos comuns que sejam capazes de impactar as instituições no caminho da participação e da melhora da democracia. Falaremos disso mais adiante.

2. Qualificar o debate resultará sempre em elitização?

Esse diagnóstico que resumimos na seção anterior não é novo. Diversas organizações, governos e comunidades open source vem desenvolvendo e utilizando aplicativos baseados em arquiteturas de interação e algoritmos que buscam o debate informado e autônomo entre ideias diferentes, com vistas a aprimorar a formação de consensos, o encaminhamento de decisões coletivas e o aprimoramento de recursos comuns. Exemplos como o Liquid Feedback (Partido Pirata), as consultas públicas colaborativas baseadas em Dialogue e Delibera (Marco Civil da Internet, Pensando o Direito, Participa.br), Cidade Democrática (Concursos de ideias, Webcidadania Xingu), Decide Madrid (Cónsul), Decidim Barcelona (Dedicim), DemocracIT (Grécia) entre outros, mostram que existe uma vontade manifesta por diversos tipos de organizações em oferecer alternativas para diálogos democráticos na rede. Mas essas experiências não escalam nem estão gerando resultados com impacto.

Por que essas experiências não escalam e não geram impacto? Porque elas ainda partem do perfil do ativista clássico que tem recursos cognitivos, tempo, motivação e formação para atuar nessas plataformas. Em outras palavras, o forma com que essas soluções são feitas requer cidadãos empoderados — uma categoria social que tem crescido muito lentamente em tempos em que a política e o mercado ainda operam na velha lógica autocrática da mídia e da centralização política. Elas acabam chegando apenas à “elite da participação”, ou seja, pessoas que já tem pré-disposição e tempo de participar.

Por isso acreditamos que o desenho da deliberação coletiva deve levar em consideração o aspecto pedagógico da interação. Para nós, a aposta correta consiste em criar arquiteturas e algoritmos de participação com interfaces minimalistas e dinâmicas — que vamos chamar aqui de arquiteturas de discussão “crowdsource” — capazes de promover um aumento gradual na energia de engajamento que os participantes podem oferecer em cada momento. O processo é capaz de considerar diversos tamanhos e disponibilidades de participação e todos os elementos são aproveitados para o resultado final. Quase nenhuma informação se perde.

Então essa é uma primeira constatação: O formato de discussão mais tradicional, baseado em árvores de comentários — a exemplo dos antigos fóruns — traz em si um grande limite de engajamento, exigindo que o participante embarque numa discussão com recursos e disposição para travar longas conversas e muitas vezes exigindo uma série de conhecimentos prévios que não estão amplamente distribuídos na sociedade.

Além disso, mesmo para aqueles que se mobilizaram para participar no processo tradicional em árvore, os incentivos em relação aos resultados da conversa são pouco animadores: não há um processo de deliberação claro que aproveite toda aquela informação que foi disponibilizada pelos participantes, gerado uma sensação de impotência em quem participou. As arquiteturas em árvore ou mistas que apresentam processos mais claros de deliberação (Loomio, Cidade Democrática, Decide Madrid, Decidim Barcelona, Aplicativo da Conferência da Juventude, Liquid Feedback ou até mesmo o proprietário ConsiderIT) o fazem ao custo de aumentar sensivelmente a complexidade do processo, estabelecendo fases, regras e obrigações que acabam por diminuir ainda mais o potencial de engajamento, ainda que a sensação de efetividade da discussão aumente para aqueles que ultrapassaram a barreira.

Essa reflexão sobre as arquiteturas que permitem participação em massa, de forma pedagógica e que facilitem a geração de ação coletiva autônoma nos motivou a escolher o software “open source” Polis para os desafios de deliberação coletiva. No estado atual do aplicativo, ele consegue proporcionar uma arquitetura de interação simples e usa algoritmos avançados de “machine learning” para promover a criação de grupos de pessoas afins com base na forma como elas participam nas propostas. Ainda que ele seja muito bom em identificar esses grupos de afinidades, atualmente ele para na exibição dessa informação, não sendo suficiente para que essas pessoas se organizem em torno de ações coletivas autônomas. Em nossa opinião, há melhorias a serem desenvolvidas no aplicativo justamente para efetivar este tipo de ação. Detalhamos essa proposta em um protótipo selecionado pelo Media-Lab Prado de Madrid/Espanha, dentro da convocatória de “Inteligência Coletiva para a Democracia” e, no próximo mês, poderemos desenvolvê-lo em conjunto com os criadores e principais desenvolvedores desta comunidade.

Como já dissemos, o desenvolvimento de um software desconectado da dinâmica social pouco transforma. Tampouco uma aplicação desenhada para fomentar a ação coletiva autônoma prescinde de narrativa e outros elementos para efetivamente alcançar seus resultados. Aqui também há armadilhas que devemos antecipar e detalhar.

3. Ação coletiva autônoma é o suficiente para mudar políticas?

Pudemos apresentar aqui algumas das armadilhas de se optar por algoritmos e arquiteturas interação que apostam na audiência como meio de obter escala e operam por eventos, mantendo os padrões de broadcast, reforçando um tipo de participação passiva atrelada a fortes estruturas de intermediação, mantendo a mesma cultura política e estimulando o consumo de conteúdos e pautas em vez de ações coletivas autônomas.

Para efetivar uma democracia em rede, devemos fomentar ações coletivas autônomas, que respondam aos interesses singulares e a contextos hiperlocais estimulando o papel de produtor de pautas que cada pessoa pode assumir. No atual contexto, no entanto, há poucos incentivos para este tipo de ação encontrar destaque e repercussão, pois acabam sendo marginalizadas pelas atuais estruturas de intermediação.

Mas além de estar limitada pela audiência, a ação autônoma traz consigo um risco adicional de se descolar da realidade dos grandes desafios coletivos já que é fruto da reunião de interesses singulares de pequenos grupos de pessoas, podendo se descolar do que é deliberado, planejado e priorizado pelas instituições políticas (atribuições constitucionais, eleições, orçamentos, conselhos, conferências, etc). Dessa forma parece necessário que haja um tipo de “cola” entre as agendas societais oriundas da ação coletiva autônoma e as agendas estatais para as quais já existe recurso público mobilizado (orçamento público) e que respondem às demandas mais críticas (indicadores sociais). Quando a ação coletiva autônoma inclui esses dois diagnósticos na sua estratégia de atuação, aumenta a probabilidade de impacto no resultado da sua própria ação, levando o Estado a planejar e executar melhor o orçamento público nas áreas que mais precisam da política.

Hoje, tanto os processos de advocacy quanto os processos de participação social implementados pelo Estado e sociedade civil não têm levado em consideração esses diagnósticos de evidência, e têm sofrido pela ausência de impacto e transformação das instituições. Desenhar processos de participação que dêem escala para fomentar ações coletivas autônomas em torno dos pontos de intersecção entre desejos populares, recursos públicos existentes e indicadores sociais deficitários parece ser o caminho para resolver este problema. Além disso fornece uma narrativa forte para motivar o engajamento público em torno de soluções de problemas críticos para os quais há pontos de contato nas instituições públicas.

Para que essa “cola” exista, defendemos a articulação entre as iniciativas de participação social com iniciativas que mapeiem recursos públicos e indicadores sociais (ex: IPS Amazônia) apresentando-as através de visualização e dados abertos. Ainda, a disponibilização pública, aberta e acessível de informações sobre recursos públicos e indicadores sociais vai aumentar a efetividade das ações coletivas autônomas de participação social.

4. Articular Sociedade e Estado em torno do Comum?

Outra barreira para a distribuição de poder e para que o cidadão comum exerça um papel protagonista é a disputa entre a parte estatal e societal para comandar a forma através da qual a participação social deve ocorrer, que pode ser traduzido como: quem decide que processo e aplicação vai ser adotada. E a qualidade e efetividade do processo, como dito antes, depende das características (arquitetura, processo e funções) das aplicações utilizadas. O modelo das instituições públicas reforça uma assimetria informacional e de poder entre os agentes do Estado e a sociedade em rede. Mesmo com os avanços dos últimos anos nos sistemas de participação e transparência, a cultura, linguagem e complexidade do Estado é inacessível tanto para ativistas antigos quanto para os cidadãos comuns. Com isso, o Estado ainda mantém uma exagerada prevalência em relação às decisões tomadas nas políticas, facilitando o processo de desmonte e redirecionamento da agenda durante as crises institucionais.

Acreditamos que uma saída plausível para esse impasse seja a gestão de políticas públicas a partir de arranjos de comuns nos quais o Estado participa por adesão. Isso tem acontecido com uma parte da política de participação social durante os últimos 7 anos. Desde 2009, a sociedade brasileira tem investido algum esforço em construir tecnologias para participação social colaborativa na internet. A mais significativa dessas experiências materializada na consulta pública do marco civil da internet teve sua tecnologia baseada no trabalho de uma comunidade “open source” que atuava na agenda de cultura digital, capitaneada pelo Ministério da Cultura. Como desdobramento dessa experiência, uma série de outras consultas públicas utilizaram a mesma tecnologia ou articularam outras comunidades “open source” que estavam desenvolvendo tecnologias de deliberação coletiva na rede. Este foi o caso das iniciativas do “Participa.br” e do “Pensando o Direito” que aderiram a pelo menos três comunidades “open source” distintas: Noosfero, Delibera (Wordpress), Allourideas (Pairwise). O ponto em comum dessas iniciativas é que elas foram todas baseadas na utilização e adesão a comunidades de desenvolvimento de software “open source” que já vinham atuando na criação de tecnologias inovadoras de deliberação coletiva.

A relação do Estado com as comunidades “open source” além de trazer tecnologia inovadora para dentro dos processos governamentais, trouxe também a prática de trabalhar com a construção de bens comuns do conhecimento compartilhados entre estado e sociedade. Acreditamos que o conhecimento para construir e manter relações com comunidades open source e gerir o desenvolvimento e utilização de software como um bem comum é uma capacidade estatal que precisa estar presente nas instituições públicas.

Extrapolando essa relação, pensar o desenvolvimento de qualquer política pública a partir de arranjos de comuns que garantam a soberania do Estado (muitas vezes dependente de processos isolados e tecnologias proprietárias) ao mesmo tempo que preservem a autonomia da sociedade, parece ser condição necessária para operar transformações institucionais que diminuam a assimetria informacional e produzam políticas duradouras e com desenhos democráticos. Vemos isso como um caminho nítido para construir as pontes que nos levarão para a democracia em rede.

5. Conclusões

Buscamos apresentar aqui uma síntese de nossa mais atual reflexão sobre os limites encontrados pelo ecossistema de tecnologias de participação social, analisando um modelo de advocacy baseado em eventos e outro modelo de deliberação qualificada, porém sem escala. Colocamos ambos os modelos em evidência a partir de uma discussão que tem, como pano de fundo, as promessas de viabilizar uma democracia em rede que permita ações coletivas autônomas e distribua poder, diminuindo a assimetria entre Estado e Sociedade e construindo comuns.

Como dissemos, o desenho das estratégias de engajamento que nos parece mais promissor nestes dias fortemente marcados por algoritmos de segmentação e polarização, é aquele que vai articular, num arranjo “open source” de comuns, uma arquitetura de interação “crowdsource”, recursos estatais e indicadores públicos. Este é o desenho da teoria de mudança que construímos aqui no Instituto Cidade Democrática, a partir de nossos aprendizados e diálogos nos últimos anos. Trata-se do resultado de uma reflexão de fôlego, motivada pelo incômodo de encontrar pouca potência de construção dessa democracia em rede no atual ecossistema em que estamos inseridos. Esta teoria, hoje, tem moldado o desenvolvimento de nossos novos produtos e protótipos e, compartilhar essas reflexões com todos que nos acompanham e demais interessados em endereçar os desafios aqui colocados é a nossa contribuição para a o campo.

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