Suspeitemos da tecnologia branca e sem excluídos

Henrique Parra Parra Filho
Empurrando Juntas
Published in
6 min readOct 10, 2017

María Florencia Polimeni*

Tradução de @parrahenri

Nestas linhas usarei a primeira pessoa do plural de maneira absolutamente caprichosa.

Vou usá-lo não porque procure assumir a representação de qualquer grupo social, mas porque eu entendo que somos sujeitos tomados por várias lealdades e identidades difusas no momento.

É, então, minha aspiração, através deste texto pretensioso, contribuir para este caos e usá-lo em favor da retórica para que possamos sentir empatia com um Outro excluído e nos persuadirmos a agir frente a algumas questões urgentes.

Feito este esclarecimento digo, então:

O projeto político do Partido de la Red esteve atravessado, desde a sua fundação, pela tecnologia, como o nome indica.

Naquela época, entendemos que, no contexto de esgotamento da democracia representativa, tal como a conhecemos no continente, com as classes dirigentes deslegitimadas e um movimento global de multidões indignadas, a tecnologia vinha para nos trazer de bandeja uma ferramenta fundamental para resolver os problemas prementes do sistema político.

Acreditávamos que a Internet iria democratizar tudo que se colocasse em seu caminho, que iria acelerar o acesso à informação, melhorar a participação, que nos permitiria organizar a nós mesmos mais facilmente, deliberar melhor, pensar coletivamente.

Eu não vou fazer disso uma catarse sobre a tecnotopia com que encaramos a nossa experiência do Partido de la Red. Simplesmente vou lhes dizer que tudo o que nós imaginamos não aconteceu. Não só isso não aconteceu para nós: ainda não aconteceu e não sei mesmo se em algum momento isso vai acontecer. Pelo menos as perspectivas não são animadoras.

Quando começamos nossa aventura política há 5 anos no Partido de la Red usávamos a tecnologia para absolutamente tudo.

O nosso Manifesto -o coração do projeto — foi pensado no formato de tweets de 140 caracteres, comunicados pela primeira vez através desta rede social.

Nesse pedaço de narrativa política aparecem inumeráveis vezes a palavra rede, a palavra tecnologia e a palavra software.

E dizíamos software, porque o nosso software -Democracy OS- foi a espinha dorsal da proposta de política. Foi concebido e desenvolvido especialmente para cumprir nossa promessa eleitoral de votar na legislatura aquilo que os cidadãos nos designaram através desta plataforma.

Finalmente, não pudemos implementá-lo de maneira vinculante como nós gostaríamos, mas o fizemos a partir da Fundação Democracia em Rede, em dezenas de projectos da sociedade civil e do Estado. Milhares de pessoas ao redor do globo votam e experimentam essa nova prática democrática hoje, mas isso é outra história.

A tecnologia também atravessou nossa campanha, a estratégia de comunicação, a narrativa, abordagens criativas, formatos. Muitas de nossas metáforas foram inspiradas pela ética hacker, palavras como hackear, contágio, viralização aparecem constantemente durante todo o nosso universo de conceitos.

Fomos um dos primeiros projetos políticos a crowdsourcear sua campanha com um “comunicatón”, uma espécie de maratona hacker de conceber peças de campanha publicitária, onde dezenas de programadores, designers e criativos compartilharam seus conhecimentos numa base voluntária para criar coletivamente. Produzimos memes, videominutos bizarros, animações caseiras e as viralizamos através de redes.

Nosso financiamento também se apoiou na tecnologia. Ali, mais uma vez, fomos vanguarda financiando parte de nossa campanha através de crowdfunding, quando nenhum partido político argentino tinha feito isso antes.

E, finalmente, nossos processos internos. Toda a vida partidária foi atravessada pela tecnologia: desde a edição colaborativa de documentos, a transmissão ao vivo de reuniões e assembléias, a organização interna em nós para os processos de tomada de decisão interna que se desenvolveram na nossa plataforma Democracy OS.

Vivemos uma experiência inesquecível. Todos nós observamos de perto as arestas, os claros-escuros da rede, da tecnologia e da tão adorada inteligência coletiva.

E o que vimos? Notamos que a rede, muitas vezes, não quebra barreiras se não que pode construir muros mais altos ainda. Pode de encarcerar mais ainda dentro de teus próprios muros e te manter isolado, convencido de que o que você e os seus pensam é o que todo mundo pensa.

Notamos que as informações que acessamos cada vez mais, de maneira constante, não nos garante estar mais bem informados, nem ter um pensamento mais crítico e que tende a aprofundar o estado de saturação e a angústia existencial do presente.

Notamos que a enorme quantidade de dados sobre a nossa vida privada que circula na rede pode nos tornar sujeitos facilmente manipulados, inclusive ainda mais manipulável do que antes.

Notamos que nossos vieses cognitivos na hora de tomar decisões políticas permanecem intactos, ainda que tenhamos mais acesso a evidências científicas e dados confiáveis ​​para melhorar as nossas opiniões.

Notamos que as ferramentas tecnológicas ainda não têm nos ajudado a melhorar radicalmente a maneira que nós deliberamos. A intolerância, a falta de escuta e a loucura continuam a ser as estrelas de nossas trocas de pontos de vista. A tecnologia ainda não foi capaz de desenvolver um sistema de deliberação que melhore radicalmente no mundo virtual a maneira que discutimos no mundo real.

Notamos que desenvolver ferramentas online para a participação dos cidadãos que as pessoas possam acessar facilmente a partir de suas casas, não incentiva a participação automaticamente.

Observamos, atônitos, a chegada da era da pós verdade facilitada pelas redes.

Notamos que a inteligência coletiva é um fenômeno complexo que se ativa em situações muito específicas e que não pode ser imediatamente transposto a todo processo de deliberação social.

E então? O que nós fazemos? Seguimos apostando tudo na tecnologia como uma ferramenta-chave de transformação das práticas políticas?

Hoje, quando quase todos os partidos políticos fazem uso de muitas destas ferramentas e que já vimos que o impacto está longe do que esperávamos, eu acho que é hora de dar um tempo e voltar para as velhas questões do fazer político. O Para quem, o Que e o Como.

Por que queremos tecnologia? Queremos dar publicidade? Quereos informar? Ou queremos verdadeiramente redistribuir poder, co-governar?

A tecnologia sozinha não vai resgatar a democracia de seu estado moribundo. Os intermediários deste sistema estão em crise. A questão crucial é como vamos sair desta crise e os papeis desempenhados pelos partidos políticos e pela tecnologia para nos auxiliar neste processo.

Tenho certeza de que a rede como uma metáfora, método e conteúdo desta nova era, não vai abrir as portas do poder para as multidões.
Devemos pensar primeiro no mais amplo. Devemos pensar um novo paradigma.

O poder concentrado se traveste camaleonicamente, é inteligente, é ágil e a tecnologia é também sua aliada para nos hackear mais rápido do que podemos hackear o sistema. As novas ferramentas também tendem a ser funcionais para o sistema de dominação, assim como a democracia o é hoje.

O que não significa que, entretanto, essas ferramentas não possam nos ser úteis para aprofundar, para ver melhor, para ser mais, para treinar a nossa criatividade e ação coletiva.

A práticas políticas inovadoras, as ferramentas tecnológicas, a transparência, a participação, devem ser parte de nossa natural gestualidade política, eles devem ser incorporados em nossas rotinas diárias como padrões indeléveis. Sem isso não podemos avançar.

Mas não podem ser nossos estandartes.

A garantia de transformar a fundo o poder não é inovação tecnológica na política. Precisamos desafiar o sistema, ocupá-lo e isso só podemos fazer metendo realmente os excluídos e suas necessidades na mesa do poder.

São os excluídos a chave da transformação. As mulheres, os pobres, os indígenas, os negros, os LGTB devem entrar no sistema e assumir a liderança, auxiliados por estas novas práticas, apoiados pelo coletivo social. Só eles podem nos ajudar a colocar na agenda os verdadeiros problemas de fundo.

Devemos agir com inteligência e repensar dentro do sistema a lógica do capital, da terra, da educação, das drogas.

Se em nossas agendas brancas abundarem as questões de forma e não as de fundo, suspeitemos.

Se nossas chapas, bancadas e cargos de gestão são preenchidos com homens brancos de classe média, suspeitemos.

Porque, por melhores intenções que tenhamos. a nossa visão é tingida por uma vida de inclusão.

Temos o vírus do sistema em nossas veias.

Nós só podemos encontrar novos paradigmas e visões de mundo para resolver velhos problemas se damos espaço aos paradigmas e visões de mundo que habitam nos excluídos.

Dar lhes poder dentro do sistema é o nosso dever, é nossa esperança e a tecnologia deve ser funcional para este objectivo.

Caso contrário, vamos continuar mais enredados do que conectados e ser cúmplices na digitalização do status quo.

*Discurso feito por Florencia durante o Seminário Internacional sobre “Desafios da Democracia Digital” organizado pelo Instituto Cidade Democrática em parceria com a Fundação Friedrich Ebert e que foi realizado em São Paulo.

--

--

Henrique Parra Parra Filho
Empurrando Juntas

Filho de Jundiaí, da Democracia e da Internet / At @cidademocratica, learning by doing how tec commons can improve (or save) democracy