A espera de um céu mais azul

Gabriela Schulz
Cidades e Esportes
Published in
6 min readJul 19, 2018

Abandonada pela prefeitura, a Vila Nazaré sofre com a falta de acesso a serviços básicos enquanto briga pelo direito de continuar existindo

Por Gabriela Schulz e Guilherme Telmo

“Todo meu sustento e o da minha família veio a partir do dia em que comecei a morar aqui. Mas já se passaram mais de duas décadas e os problemas seguem os mesmos. Pra te falar a verdade, acho que aumentaram. Não sei de quem é a culpa. Governo estadual, prefeitura, não sei.” O relato tocante do residente da Rua Alfredo Neri, Gilson Mendes, 45 anos, não é fato isolado. A Vila Nazaré, uma pequena comunidade na Zona Norte de Porto Alegre, as margens da Avenida Sertório, parece ter sido abandonada pelo poder público. Surgida como uma ocupação irregular a mais de 50 anos, a Vila hoje enfrenta a ameaça iminente de deixar de existir. O projeto de extensão do Aeroporto Internacional Salgado Filho não deixa opção aos moradores se não uma realocação forçada. É no meio desse impasse que a comunidade sobrevive em condições extremamente precárias. Em dias de chuva, é preciso se virar por conta própria. As calçadas remendadas com restos de asfalto e caliça não impedem a água de invadir casas e estabelecimentos comerciais. Um problema que já virou rotina, segundo Mendes. “Se tiver água na minha casa, quem tira sou eu. Se o esgoto entupir, quem tira sou eu. No dia seguinte a chuva, pra tirar a lama da calçada, quem varre sou eu. É assim que as coisas funcionam por aqui.”

Assim como Gilson, Jussara Azevedo, 43 anos, enfrenta problemas semelhantes. Nascida e criada na Vila Nazaré, sua história na comunidade foi construída com muita dificuldade e uma constante sensação de desamparo. Os esgotos a céu aberto e saneamento básico inexistente a muito viraram cotidiano. “É uma situação muito triste, porque temos apego a esse lugar. Aqui vivi toda minha vida, aqui criei meu filho. Mas a situação é de abandono completo. ” Abrigando cerca de 1600 famílias, a comunidade vive um dos seus momentos mais delicados em suas cinco décadas de existência. Relatos como os de Gilson e Jussara são frequentes, e expõem as graves mazelas enfrentadas diariamente pela população local. Além da situação crítica de saneamento, moradores não possuem mais unidade de saúde e escola na região. Os locais foram fechados ou recolocados para fora da vila, dificultando o acesso a serviços básicos.

Partes desses problemas não são recentes, mas é consenso entre os moradores que a situação se agravou nos últimos 5 anos. Com a iminente extensão da pista do aeroporto, que está em pauta desde 2010, a Vila Nazaré se tornou um assunto de quase ou nenhum interesse público. Afinal, qual seria a finalidade de realizar reformas e melhorias em uma localidade prestes a desaparecer?

Briga comprada

Se por um lado às autoridades responsáveis não parecem se interessar pelas consequências ocasionadas pelos desdobramentos da obra, os moradores não estão completamente sozinhos. Um das entidades que presta apoio e é voz ativa nas reivindicações da comunidade são os Amigos da Terra Brasil. A organização, que tem atuação internacional, está presente ao redor do planeta em causas relacionadas ao meio ambiente e questões humanitárias. Um dos coordenadores dos Amigos da Terra, Fernando Campos, é um dos porta vozes da Nazaré em audiências e encontros com o poder público. “O pessoal da vila nos procurou a cerca de 2 anos, e nós compramos a briga deles. O objetivo é ocupar as áreas inabitadas no entorno da região para permitir que os moradores não saiam de lá. É desejo da comunidade permanecer no local”, diz Fernando. Ele aponta que alguns avanços foram alcançados, e que conversas estão sendo mantidas frequentemente com a Prefeitura, Ministério Público e a Fraport(empresa alemã que administra o aeroporto), além de outros órgãos competentes.

Sede da organização Amigos da Terra Brasil em Porto Alegre — Crédito: Guilherme Telmo

A Fraport alega que o diálogo com a comunidade está sendo realizado, o que é contestado por Fernando e boa parcela dos moradores. “Em nenhum momento a Fraport buscou o Ministério Público com o intuito de tratar de questões da Vila. Quem procurou fomos nós. A comunidade não tinha nenhuma informação, desde a entrada da Fraport no processo de remoção, o que é uma responsabilidade deles. O primeiro acesso a comunidade foi para realizar o cadastro, que foi prontamente interrompido pelos moradores pois não se sabia nada a respeito” O cadastro referido por Fernando teve início no começo de 2018. Através de uma empresa de engenharia terceirizada (Itazi), a Fraport realizou uma tentativa de cadastro junto a população da Nazaré. Houve resistência e em determinado momento, a presença da Brigada Militar teve de se fazer necessária. Naquela ocasião, os moradores reclamaram muito da truculência e despreparo das autoridades para com o trato com as pessoas do local. “Não existe um cuidado com a gente da Vila. O que mais me impressiona é a falta de inteligência dessas pessoas. Se não houver diálogo e principalmente, cuidado, nós não escutaremos nada que venha da boca deles”, afirma Gilson.

A Fraport, por sua vez, afirma que não foi estabelecida no contrato de concessão a ampliação do aeroporto e sim, que a reforma já estava alinhavada desde 2010. “Por motivos que não cabem a nós comentar ou analisar, a extensão da pista já deveria ter sido concluída quando o Salgado Filho ainda era administrado pela Infraero. O que estava sim no contrato que assinamos com a Agencia Nacional da Aviação Civil (ANAC) era uma cláusula que nos obrigava a nos realizar essa obra de extensão que não tinha saído do papel”, explica Paula Juruena, diretora do departamento jurídico da Fraport em Porto Alegre. Paula também afirma considerar um “avanço” aos moradores a saída da localidade, e que desde a entrada da empresa alemã no processo de administração do Salgado Filho, todas as etapas estão sendo cumpridas de maneira correta.

“Todas as etapas estão sendo seguidas sem nenhum tipo de atropelo ou descuido. Em nenhum momento houve um diálogo exclusivo com a comunidade porque eles não demonstraram interesse, preferindo designar interlocutores para as reivindicações ou reclamações. É importante salientar que a área onde hoje está a Vila Nazaré é uma ocupação ilegal, que pertence ao estado. Além disso, a região é insalubre, alagadiça e apresenta condições bastante precárias de habitação. Acreditamos que as pessoas terão uma condição de vida melhor nos lugares onde serão realocadas”, diz Paula, que faz questão de frisar que não é responsabilidade da Fraport os locais escolhidos e que, por lei, isso é uma atribuição dos entes públicos.

Os lugares escolhidos para realocar as famílias são as ruas Senhor do Bonfim (bairro Sarandi) e Irmãos Maristas (bairro Mário Quintana). O último endereço enfrenta forte resistência da comunidade, por se tratar de um local, segundo eles, inseguro e com pouca infra estrutura. Há também receio da perda de trabalho e falta de oportunidades nas novas localidades, uma vez que grande parte da Vila tira seu sustento nas proximidades, seja em usinas de reciclagem ou trabalhando em empresas próximas.

Esperando o futuro chegar, Gilson, Jussara e as outras famílias da vila enfrentam o presente do jeito que podem. Sabem que o começo da obra é uma questão de tempo, mas nutrem esperança de que, de alguma forma, consigam ficar ao menos próximos do local onde criaram raízes e vivem a tanto tempo. Em meio a isso, esperam um olhar mais atento para os graves e urgentes problemas da Nazaré. “Pra onde vamos, se é que vamos, fica pra amanhã. Hoje, nós precisamos de uma melhor qualidade de vida e isso com certeza é responsabilidade das autoridades.”, diz Jussara, que mesmo com a pesada realidade, esbanja um belo sorriso no rosto, característico não só dela, mas de muitos moradores da comunidade. Talvez seja a esperança inconsciente de que dias melhores virão e de que o céu, enfim, se torne mais azul.

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