A luta pela dignidade da Dique

Larissa Pessi
Cidades e Esportes
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21 min readJun 21, 2018
Buraco aberto por moradores da Vila Dique em muro construído para delimitação da área do Aeroporto Internacional Salgado Filho que isola a comunidade, dificultando o acesso a equipamentos urbanos como creches e escolas — Crédito: Larissa Pessi

Há 13 anos os moradores da Vila Dique, no norte da cidade de Porto Alegre, sofrem com as constantes ameaças de remoções e tentativas de desmantelamento por parte da gestão municipal, através da retirada de equipamentos urbanos como o posto de saúde e a creche. A cada remoção, um novo motivo é apresentado — e refutado.

Por Helena Ribeiro e Larissa Pessi

Luta sempre foi uma palavra presente na vida de Scheila Motta, 47 anos. A atual presidente da Associação de Moradores Vila Dique Resiste chegou ao local ainda criança, depois de passar os primeiros anos de vida morando nas ruas de Porto Alegre com seu pai, sua mãe e uma irmã. “Eu sei o valor que é, pra esses que moram na Dique, o valor que é ter uma casa sobre a cabeça. Por isso que eu brigo”, afirma.

A história de Scheila é semelhante a de tantos outros moradores da comunidade. Localizada entre dois cursos d’água e formada em cima de um dique construído após a enchente de 1941 em Porto Alegre, a área próxima ao Aeroporto Internacional Salgado Filho tornou-se um refúgio para milhares de pessoas vindas de todo o Estado e até de outras regiões do Brasil. Lá essas pessoas formaram famílias e criaram laços. Aos poucos, este pedaço de terra foi ganhando identidade, e o que antes era mato virou lar. Em 1978, um ano depois da chegada da família de Scheila, já eram mais de mil moradores ocupando, resistindo e lutando por uma vida melhor.

Durante os seus mais de 40 anos de história, a comunidade sempre teve que lutar por uma vida digna. Com o apoio da paróquia Santíssima Trindade, foi construído um galpão de reciclagem como alternativa de sustento para os moradores em meio às dificuldades para conseguir um emprego formal. Das mais de 100 pessoas que lá trabalhavam, muitas eram mulheres e mães. Em 1992, foi construída a Unidade de Saúde Santíssima Trindade (administrada pelo Grupo Hospitalar Conceição), obra comemorada pela comunidade, após anos recebendo atendimento médico em uma casa precária de madeira cedida por um morador.

Outra conquista importante foi a da Escola de Ensino Fundamental Migrantes. O Clube de Mães Margarida Alves foi quem correu atrás de sua construção dentro da comunidade, assim como da creche Galpãozinho. Em 2001 a escola foi reconstruída com uma melhor estrutura próxima à Dique, na Avenida Severo Dullius.

Galpão de reciclagem Santíssima Trindade em 2002 (Crédito: Adriano Troleis). Clube de Mães Margarida Alves (Crédito: Projeto Memórias da Vila Dique). Creche Galpãozinho em 2005 (Crédito: Adriano Troleis).

No entanto, ainda há muito a ser melhorado na comunidade. A ocupação irregular é uma das 108 aglomerações subnormais de Porto Alegre, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse tipo de habitação contém no mínimo 51 casas, em sua maioria carentes de serviços públicos essenciais e ocupando terreno de “propriedade alheia”. São mais de 192 mil porto-alegrenses vivendo nessa situação. Só na Vila Dique moram 260 famílias.

Esgoto residencial é despejado no Arroio da Areia. Crédito: Larissa Pessi.

Mesmo morando há mais de quatro décadas naquela área, o fornecimento de energia elétrica continua sendo precário, assim como o de água, que chega apenas à noite em um terço da comunidade, nas residências próximas da Estrada Marechal Deodoro. O esgoto residencial é despejado diretamente no Arroio da Areia, que passa pela vila. Em 2015, apenas duas residências de 179 tinham fossa séptica para adequado escoamento. O descarte de lixo também é afetado: o caminhão que recolhe os restos orgânicos muitas vezes chega cheio na vila e acaba não fazendo a coleta.

Como se não fosse o bastante viver sob estas condições e ter que lutar pelo mínimo de dignidade, em 2008 surgiu uma forte ameaça à sobrevivência da comunidade: a escolha de Porto Alegre como uma das cidades-sede para a Copa do Mundo FIFA 2014 e as obras que a antecederiam.

Obras da copa e o sufocamento da comunidade

As primeiras ações com o objetivo de remover a Vila Dique foram iniciadas ainda em 2005. Em reunião com a comunidade, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) comunicou que as famílias teriam que ser removidas da Vila Dique. Um dos motivos apresentados foi o potencial risco aos moradores devido ao alto ruído dos aviões que trafegavam na região. No entanto, nas mais de sete horas em que a equipe de reportagem esteve na Vila Dique, o fato de existir um aeroporto nas proximidades quase passou despercebido. Além disso, não há planos para remoções em outras regiões vizinhas ao local de pouso e decolagem, como os bairros Jardim Floresta e Humaitá, por exemplo.

O outro motivo da remoção seria a intenção de um dos donos oficiais do espaço em vendê-lo para a empresa alemã Fraport, que de fato administra o Aeroporto Internacional Salgado Filho desde janeiro.

No entanto, o anúncio da Copa deu o impulso que faltava para o departamento começar a acabar com o que um dia foi o refúgio de 1.476 pessoas. Iniciava-se uma longa batalha que segue até hoje na Vila Dique. Isso porque entre as obras previstas para receber a competição estava a ampliação da pista do aeroporto. Na época, a prefeitura disse que seria necessário remover famílias da Vila Nazaré e de toda a Dique. A comunidade deixaria de existir.

Prolongamento da Avenida Severo Dullius deveria ter ficado pronto para a Copa do Mundo FIFA 2014. Na foto, o estado atual da obra que passa pela Vila Dique. Crédito: Larissa Pessi.

Outra obra da Copa ameaçou o futuro da comunidade: o prolongamento da Avenida Severo Dullius. Financiada pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a obra pretende ligar a área do Salgado Filho ao extremo norte da cidade por meio da Avenida Sertório e contou com investimento inicialmente estimado em R$ 83 milhões. Programada para ter suas obras concluídas até os jogos de 2014, teve os trabalhos iniciados apenas em setembro do ano seguinte. Atualmente com o percentual de execução em 49%, não se enxerga uma máquina ou pessoa trabalhando no local, mesmo após o direcionamento de mais de R$115 milhões em novos recursos para sua execução. A prefeitura previa a retomada do empreendimento para maio deste ano e conclusão em outubro de 2019.

Já no ano seguinte ao anúncio das cidades-sede a prefeitura começou a remover os moradores. Junto com as 922 famílias que começaram a ser removidas — e obrigadas a demolirem suas casas na vila — em 2009, vários espaços conquistados depois de muito suor e dedicação e que possibilitavam uma maior qualidade de vida aos moradores também foram sendo retirados da vila. Foi o caso do clube de mães, da creche Galpãozinho, da padaria comunitária Chico Pão e também do galpão de reciclagem Santíssima Trindade, fonte de renda para boa parte dos moradores. Ao lembrar dessa época, Scheila Motta lamenta: “Tiraram tudo que nós tínhamos, nos obrigando a sair daqui”.

Como parte do acordo para receberem suas casas no Conjunto Habitacional Porto Novo, as famílias devem ter suas casas na Vila Dique demolidas. Crédito: Projeto Memórias da Vila Dique.

Outra conquista que acabou sendo retirada da Dique foi o posto de saúde. Em 2013, o Demhab informou os moradores que a partir daquele momento, a unidade responsável pelo atendimentos médico seria a do conjunto habitacional Porto Novo, há quase duas horas de distância utilizando transporte público. No entanto, segundo a presidente da associação, o posto mais próximo frequentado por alguns moradores é o do bairro Floresta, que normalmente atende apenas a emergência e está sempre cheio.

Foi apenas a partir de 2014 que a comunidade começou a se organizar para lutar pelo seu pedaço de chão. Com a ajuda da Defensoria Pública, agora ciente e envolvida na resolução da situação, conseguiram marcar uma reunião com a Infraero, que operava o Aeroporto Salgado Filho na época. O que ouviram contradisse a posição da prefeitura. O diretor da empresa enfatizou que o interesse era somente na área até o trecho de onde as famílias já haviam sido removidas.

Área tracejada em amarelo é a em que a expansão do Aeroporto Internacional Salgado Filho deve ocorrer. Em vermelho, a Vila Dique. Crédito: Raí Nunes dos Santos.
Terreno em que a comunidade pretendia construir o novo posto de saúde. Agora, com o projeto embargado pela superintendente Maria Horácia Ribeiro, do Demhab, os moradores querem construir uma praça no local. Crédito: Larissa Pessi.

Seguindo na luta e contando apenas com a força de vontade e esperança, os moradores limparam um terreno onde antes morava uma família — então reassentada — para que lá fosse construída a nova unidade de saúde. Após protestos, a comunidade conseguiu conversar com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que empenhou R$8 mil reais para a instalação de quatro contêineres 6,5m x 3m que serviriam como estrutura para o posto. Até a planta do projeto estava pronta, quando, ao ser entregue para parecer da Superintendente de Ação Social e Cooperativismo, Maria Horácia Ribeiro, do Demhab, foi embargado. Em recente conversa com a Defensoria Pública, a SMS ofereceu a alternativa dos atendimentos médicos serem realizados na Escola Migrantes, o que depende de uma reunião com os pais dos alunos para que permitam a entrada de terceiros no local. Em recentes conversas com a Defensoria Pública, a secretaria declarou que não há intenção de construir uma unidade de saúde para os moradores da Vila Dique.

Com o avanço das obras no aeroporto em 2016, a avenida Dique foi completamente bloqueada. A prefeitura permitiu que a Infraero construísse um muro (foto da abertura da reportagem) para delimitação da área do Salgado Filho, isolando a comunidade e dificultando o acesso à cidade e à equipamentos urbanos como creches e escolas. Para driblar esta barreira, os moradores fizeram um buraco na construção para permitir o fluxo de pedestres. A moradora Vera Lucia Fernandes, 47 anos, conta que precisa enfrentar esse obstáculo para buscar a neta na creche. “São 30 minutos a pé, é o caminho mais curto. Todos os dias mães e avós se juntam para ir e voltar juntas”, conta.

O alto preço da passagem de ônibus e a falta de condições financeiras forçam muitos dos moradores a se deslocarem basicamente a pé. Os adolescentes da comunidade também precisam passar pelo buraco para frequentarem a ensino médio em bairros vizinhos, já que a Escola Migrantes atende apenas o ensino fundamental.

Novos motivos, novas mentiras

Com o desinteresse da Infraero na área e a paralisação das obras na Avenida Severo Dullius, a prefeitura buscou novos motivos para justificar as remoções das famílias da Vila Dique. Segundo o poder público, a área seria de risco devido a inundações que afetariam as residências e a possibilidade de o dique sobre o qual se estabelece ruir.

A associação Vila Dique Resiste decidiu, então, procurar ajuda jurídica na Defensoria Pública para permanecer na comunidade e regularizar a moradia. Desde 2013, três defensoras públicas já acompanharam o caso, sendo Isabel Wexel a responsável pelo caso atualmente. “A luta da Vila Dique é muito bonita. É uma população que é muito organizada e já sabe buscar os seus direitos”, afirma a dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia.

Neste mesmo período, professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desenvolveram estudos e projetos para auxiliar na permanência da comunidade. A arquiteta e urbanista e ativista pelo direito à cidade Claudia Favaro foi uma delas. Junto com seus alunos no Escritório Modelo Albano Volkmer (EMAV), realizou os levantamentos topográfico e cartográfico da área, além do projeto de urbanização para auxiliar as famílias a planejarem uma comunidade mais agradável para se viver.

Quando questionada sobre a afirmação da Dique ser uma área de risco, Favaro discorda. Para ela o que realmente determina a periculosidade do local são as condições disponíveis para lidar com os riscos. “A forma de amenizar o risco quando tu tens dinheiro é uma e quando não tem é outra. Não é questão de risco ou não risco. O que importa é a forma como tu lida com esse risco e o que tu colocas à disposição das pessoas para lidarem com ele”, argumenta. A arquiteta ainda acrescentou que as possibilidades de ocorrer problemas com o dique são mínimas. “Ali é muito mais tranquilo que um morro, por exemplo”, comparou.

Também, conforme o Atlas Ambiental de Porto Alegre, de 1998, a área da Vila Dique é considerada de baixa vulnerabilidade. Além disso, a Defensoria Pública averiguou que, mesmo após décadas no local, não há registros de que algo grave tenha ocorrido com as residências ou seus ocupantes devido a inundações.

Em pesquisa feita por alunos de Claudia Pires do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2015, foi constatado que, das 166 casas pesquisadas, apenas 16 já haviam sido afetadas por inundações. A maior frequência do fenômeno seria do lado do canal artificial devido a um sistema de drenagem ineficiente. No relatório da pesquisa, são apresentadas como soluções possíveis para lidar com as inundações, além de melhores edificações das residências, o aumento da altura do dique, contendo as águas de forma mais eficaz. Mesmo com todas essas considerações, Wexel conta que o Demhab não trabalha com a hipótese de administração de risco: “O Demhab está fechado (para negociação)”.

Área de Preservação Permanente acompanha o Arroio da Areia. Crédito: Departamento de Geografia/UFRGS.

O que torna parte da Dique uma Área de Preservação Permanente é o Arroio da Areia. No mapa feito pelos alunos de Pires, foi constatado que a APP acompanha 30 metros das margens do curso d’água. De acordo com a professora, a comunidade não tem impacto relevante na área a ser preservada e técnicas para educação ambiental destes moradores seriam o suficiente para esta relação ser possível. “Se a gente pensa que aqui é uma APP, não se plantaria arroz ao redor, por exemplo, nem teria grandes empresas”, constata.

Outra ação viável seria canalizar a parte do arroio que está aberta, como já ocorre desde o bairro Boa Vista. A sugestão é do mestrando Raí Nunes dos Santos, um dos alunos de Pires que fizeram a pesquisa em 2015 e que agora formado continua realizando estudos na Vila Dique. Ele aponta que os projetos de requalificação da cidade, como as obras de ampliação da pista do aeroporto e o prolongamento da avenida Severo Dullius, também têm impacto no meio ambiente. “Esse discurso ambiental vai muito para pegar quem é frágil e vulnerável. Ou seja, para eles os pobres são os que destroem a natureza, mas uma grande obra de requalificação urbana não faz mal algum”, afirma.

Conjunto Habitacional Porto Novo — ou a Nova Dique

O destino das famílias removidas fica no bairro Rubem Berta, um dos mais perigosos da capital gaúcha. Toda a Avenida Bernardino Silveira Amorim deve abrigar as 1.476 famílias cadastradas pela prefeitura de Porto Alegre — além dos moradores da Vila Nazaré -, em casas construídas com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial para o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV).

Teoricamente, todas as famílias da Vila Dique são elegíveis ao MCMV faixa 1, ou seja, para quem tem renda bruta de até R$ 1.800 mensais. Mas há um detalhe importante. O primeiro (e único) cadastro de moradores que, de acordo com o poder público, deveriam sair da área, foi feito em 2005. De lá pra cá, as crianças e adolescentes tornaram-se adultos, casaram-se, tiveram filhos (não necessariamente nessa ordem), formaram novas famílias e saíram das casas dos pais. Como na época do primeiro cadastro cada família tinha direito a apenas um desmembramento — ou seja, um dependente que também teria direito a uma residência, sendo raro um casal ter apenas um filho -, muitos moradores da Vila Dique não têm direito à moradia no Porto Novo.

A alternativa apresentada pelo Demhab foi oferecer às pessoas sem cadastro o aluguel social, no valor de R$ 400 mensais. Com essa quantia, o máximo que alguém pode conseguir alugar em Porto Alegre é um quarto longe dos centros comerciais e de difícil acesso a emprego. E o morador ainda teria que arcar com custos de luz, água, comida e transporte. O departamento ainda não definiu como deve organizar essa questão.

Desde o início do projeto, pelo menos 922 unidades habitacionais foram entregues, no período entre 2009 e 2012. Segundo a prefeitura, 554 unidades estão reservadas para os demais moradores da Dique, sendo que apenas 260 famílias ainda residem no local. Em reunião com a comunidade no mês de maio, a Caixa anunciou a entrega de 275 unidades até o fim deste ano, mas também alertou para possíveis atrasos nas obras.

Casas desocupadas por reintegração de posse em dezembro de 2017 continuam vazias. | Novas casas têm sala, cozinha, banheiro e dois quartos pequenos. | Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Novo teve suas obras concluídas apenas em 2015. Crédito: Larissa Pessi.

Márcia Andréia Natália da Silva, ou Dedeia, 36 anos, foi uma das pessoas realocadas para o Conjunto Habitacional Porto Novo. A remoção aconteceu de forma inesperada em 2010. Sem aviso prévio, a equipe do Demhab chegou em sua casa para realizar a mudança e a moradora só ficou sabendo quando o companheiro lhe ligou. “Eu estava na rua. Meu marido me telefonou e disse que eu precisava ir pra casa. Quando cheguei lá, minhas coisas já estavam todas empacotadas, então foi um choque”, relembra.

Ao chegar na casa nova, Dedeia e a família precisaram realizar diversos reparos. O chão não tinha piso, as paredes precisavam de pintura e - o mais preocupante - a fiação elétrica era precária e até hoje apresenta problemas, botando em risco a segurança do casal e de seus dois filhos, de 9 e 12 anos.

O tamanho das casas é outro aspecto que gera insatisfação entre os moradores. Os 40m² com dois quartos não atenderia às necessidades de cada família, muitas delas com um grande número de dependentes. A proibição de exercer atividades remuneradas dentro das unidades também desagrada.

Outro aspecto em desacordo com a realidade das famílias é a proibição de mais do que cinco animais domésticos em cada casa, sendo que muitos moradores têm muito mais que esse número e criam galinhas e porcos para subsistência ou usam cavalos para guiar as carroças utilizadas no recolhimento dos resíduos sólidos que vendem.

É o caso de Marcelo dos Santos, 23 anos. O carroceiro mora há nove anos na Dique. Para ajudar a alimentar a família formada pela esposa grávida e três filhos, cria galinhas no quintal de sua casa. Ele também esclarece que trabalhando com a reciclagem encontrou uma forma de evitar se envolver com o crime para garantir seu sustento.

Para o geógrafo Raí Nunes dos Santos, mestrando na UFRGS, o Porto Novo não leva em consideração as origens da Vila Dique e dos moradores vindos principalmente do interior do estado. Ele esclarece que as novas habitações não podem ser vistas como somente uma casa: “É muito mais que a casa. É um contexto, é uma forma de se viver nesse espaço urbano. É um acesso a cidade diferenciado”.

Vera Lucia Fernandes, 47 anos, saiu da cidade de Iraí em 1991, onde trabalhava como agricultora, e foi para Porto Alegre procurar uma melhor condição de vida. Conseguiu abrir seu bar em 1998. Crédito: Larissa Pessi.

Para melhor adaptação das famílias, o Demhab também prometeu a construção de 102 unidades comerciais para os moradores que possuem um empreendimento na Vila Dique e tiram o seu sustento dele. Mas para a comerciante Vera, essa medida não é eficaz. Moradora do local há 27 anos, ela diz ser inviável continuar tendo seu comércio na unidade oferecida, por ser muito pequena e impossibilitar que ela cozinhe os almoços e lanches e também venda produtos típicos de um armazém.

Valdenir Macedo dos Santos, o Vavá, de 55 anos, é natural de Alvorada e há cerca de 35 anos mora na vila. Sempre tirou seu sustento do lixo, mesmo quando trabalhava de carteira assinada. “O salário é pouco (nas empresas). E pra manter um monte de filho…”, explica o morador que tem 13 filhos, oito deles menores de idade. Vavá seria uma dessas pessoas que perderiam o emprego devido a mudança. “Eu vou pra lá, quatro paredes bonitas, uma casinha bonita e o que eu vou fazer?”, questiona o morador, que desde 1978 tem a reciclagem como ocupação principal.

Vavá constituiu família e criou os 13 filhos na Vila Dique, sempre trabalhando com a venda de materiais recicláveis. Esta era a fonte de renda de mais de um terço dos moradores em 2015. Crédito: Larissa Pessi.

De acordo com pesquisa feita por alunos do curso de Geografia da UFRGS em 2015, 74% dos entrevistados trabalhavam na própria vila ou próxima a ela. Um dos locais com maior oferta de emprego era o Centro de Abastecimento (Ceasa), de onde não apenas tiravam seu sustento mas também conseguiam alimentos. Mas a principal fonte de renda era a reciclagem. Das 153 pessoas que responderam a pesquisa, 50 trabalhavam no mesmo ramo que Vavá.

Outra medida estabelecida no projeto de remoção é o oferecimento de cursos de capacitação profissional. A ideia era proporcionar uma alternativa para o sustento de quem trabalha com reciclagem, prática que não será possível no Porto Novo por falta de espaço e pela proibição de atividade comercial nas residências. Entre as formações oferecidas estavam padaria, recepção em rede de hotelaria, manicure e cabeleireiro.

As oficinas e cursos de fato ocorreram, mas, de acordo com Scheila Motta, de forma precária. A presidente da associação foi uma das alunas e durante três meses frequentou as aulas de recepção em rede de hotelaria. Quando partiu em busca de um trabalho, foi recusada em todos os lugares em que apresentou seu currículo, com a justificativa de que aquele curso não tinha validade alguma. A moradora também contou que muitas mulheres que fizeram as oficinas voltaram a trabalhar com reciclagem, e as que foram para o Porto Novo estavam enfrentando dificuldades financeiras.

É o que confirma Márcia da Silva, a Dedeia, que também trabalhava com reciclagem antes da mudança para o Porto Novo. “Tive que vender cavalo a preço de banana porque foi tudo muito rápido que meu marido teve que se livrar dos bichinhos”, conta. Ela fez o curso de padaria, mas nunca trabalhou na área. Hoje sobrevive fazendo eventuais faxinas, impossibilitada de trabalhar em turno integral devido ao turno em que os filhos estudam.

Dedeia e a família estão conseguindo se sustentar na nova casa porque, antes da mudança, o marido já havia trabalhado na construção civil. Mas muitos que vieram para o Porto Novo estão passando por dificuldades por não terem as mesmas possibilidades. Este é o caso de Graciela Freies, 36 anos. Após a morte de um de seus cinco filhos devido à demora pela chegada de uma ambulância na Vila Dique, e também pelas frequentes convulsões da filha mais nova, resolveu buscar ajuda no Demhab para conseguir uma casa no conjunto habitacional. Conseguiu um novo lar, mas a realidade que enfrenta não é exatamente a que esperava.

Graciela Freies, 36 anos, e seu marido, Eliseu de Oliveira, 40, lutaram para se mudar para o Porto Novo após um trauma e devido a problemas de saúde da filha mais nova. Crédito: Larissa Pessi.

Apesar da vantagem de ter um posto de saúde perto de casa, a família passa por dificuldades financeiras. Como muitos outros moradores da Vila Dique, Graciela também trabalhava com reciclagem. Ao chegar no Porto Novo, ela precisou procurar outras formas de sustento, mas, tendo estudo apenas até a 2ª série, não encontrou oportunidades. “Não adianta ter casa melhor e não ter como sustentar os filhos”, se queixa. Seu marido também está desempregado, fazendo a família dependente de doações de cestas básicas para sobreviver.

Já a aposentada Ivone da Rosa, 61 anos, gosta de morar no Porto Novo e afirma ter um bom relacionamento com a vizinhança. Para ela, a sujeira originada na reciclagem que ocorria na Vila Dique era um grande incômodo. A moradora se queixa da falta de uma linha de ônibus que passe dentro do conjunto habitacional e da distância até a igreja católica mais próxima. Também demonstra descontentamento pela falta de um posto policial na vizinhança e de rondas frequentes, como havia quando se mudou, em 2012. “A igreja eu entendo porque não é obrigação deles, mas o posto policial foi prometido pelo Demhab”, revela a aposentada.

A aposentada Ivone da Rosa, 61 anos, veio de Iraí para a capital em 2001. Foi reassentada no Conjunto Habitacional Porto Novo em 2012. Crédito: Larissa Pessi.

Para a Arquiteta e Urbanista Claudia Favaro, é impossível que um empreendimento agrade ou desagrade todo mundo que desfruta dele. “Tem sim gente que gosta (do Porto Novo), tem gente que acha que melhorou”, afirma. Um dos aspectos que explicariam essa percepção seriam as diferentes condições de cada morador e os diferentes núcleos familiares. Ela considera que, para resolver esta questão, as casas deveriam ser adaptadas para a realidade de cada família. “Onde tu vai morar ou se tu vai morar, e como tu vai morar é uma coisa que é determinante para o teu caráter, para a tua vida, para as tuas escolhas, para o que tu vai fazer da tua vida”, explica.

(In)Segurança da Nova Dique

Ao ser perguntado sobre a sua vida na Vila Dique, Valdenir dos Santos, o Vavá, pai de 13 filhos, foi só elogios. Mesmo com todas as dificuldades já antigas — como a falta de saneamento básico, por exemplo — e as novas restrições a equipamento públicos, ele demonstra carinho pela comunidade: “Aqui é um lugar bom, aqui é um paraíso perto dos outros lugares”.

Essa descrição faz sentido, principalmente se o quesito segurança for levado em conta. Na vila lindeira ao aeroporto internacional as crianças estão sempre correndo pela avenida, brincando despreocupadas e com os vários cachorros que por lá circulam.

Já na Porto Novo, a Nova Dique, além de ser área de conflito no narcotráfico, é dominada por uma facção rival da localizada na Dique. Por isso, muitos moradores reassentados relatam terem sido vítimas de abordagens violentas e até de ameaças de morte. Todas as mais de dez pessoas com quem a equipe de reportagem conversou durante a apuração contaram histórias do tipo, pessoais ou de terceiros. Para não colocá-las em risco, foi decidido não expor detalhes das ameaças que recebem.

Uma das pessoas que se juntou às estatísticas de jovens assassinados pela violência do Porto Novo foi um dos filhos de Scheila, em 2013. Aos 17 anos, o menino estudava e trabalhava em uma oficina mecânica, buscava um rumo para sua vida assim como tantos outros da mesma idade. “Ele foi visitar a namorada que havia ido pras novas moradias e não voltou mais. Voltou dentro de um caixão pra ser velado aqui dentro”, lembra com tristeza a mãe do jovem.

Antiga sede da Associação Vila Dique Resiste fica no terreno de Scheila Motta. Atualmente os moradores estão reunindo material para construção de uma nova sede na entrada da vila. Crédito: Helena Ribeiro.

Depois da morte do filho, Scheila entrou em depressão. “Foi um momento muito difícil pra mim e pra minha família”, compartilha. Neste episódio obscuro de sua vida, ela reuniu forças e começou a lutar para que outras mães não passassem pela mesma dor. Foi assim que Scheila se tornou presidente da Associação de Moradores Vila Dique Resiste.

Graciela Freies também relata serem frequentes os tiroteios no Porto Novo e diz ter medo da violência. “Vários meninos que eu vi caminhando pelas ruas já não estão mais aqui. Estão mortos”, conta.

Esta insegurança também é uma das preocupações de Márcia da Silva, a Dedeia. Mesmo morando há 8 anos no Porto Novo, ela não se sente segura na nova vizinhança e prefere ficar mais dentro de casa do que na rua. “É tipo cada um no seu quadrado. Na Velha Dique era melhor e a gente podia tá indo e voltando na hora que quisesse”, conta. Lembrando do passado, confessa: “Eu preferia a minha Velha Dique. Se eu pudesse voltar, eu voltava”.

Essa conexão entre os moradores e a Vila Dique é facilmente perceptível no contato com a comunidade e no carinho com que falam de onde moram — ou moravam. “Existe um vínculo afetivo com aquele espaço. Toda a vida deles, econômica e social, está ligada àquele espaço. A estrutura da vila, com casas uma de frente pra outra, também contribui pra esse vínculo entre a comunidade”, explica o pesquisador Raí Nunes.

Futuro Incerto

Intimidados pelo poder público e com medo de terem que se mudar para uma vizinhança perigosa, os moradores da Vila Dique convivem com a incerteza. Um brilho de esperança surgiu após a equipe de Claudia Favaro constatar que a área é privada. São mais de 49 proprietários inscritos em duas matrículas. “Só que assim, quem é dono? É quem dá destinação social”, explica a defensora pública Isabel Wexel.

É essa a justificativa da Defensoria para ter entrado com o processo de usucapião especial coletivo em dezembro do ano passado. Para isso, de acordo com o artigo 10 do Estatuto da Cidade, pessoas de baixa renda devem ter estabelecido moradia própria ou de sua família em uma área de até 250m² de forma contínua por no mínimo cinco anos. Também não podem ser proprietárias de outro imóvel urbano ou rural.

Pelo menos 123 das 260 famílias cadastradas moram na Vila Dique há 15 anos. E, de acordo com a Defensoria Pública, muitos estão há cerca de 28 anos no local, o que tornou possível o pedido de usucapião. “É importante que se diga que a nossa legislação não protege grandes proprietários que não dão destinação social para a propriedade. A nossa legislação nos ajuda nesse sentido. (…) O problema é que ela não se efetiva muitas vezes, ou se efetiva para grandes interesses econômicos”, explica Wexel.

O processo está em fase de listagem dos confrontantes e deve demorar para ter uma decisão. A Defensoria está buscando os herdeiros da área, já que parte das pessoas que constam nas matrículas já faleceram. Antes do pedido de usucapião, a moradora Vera Fernandes decidiu ir atrás de uma solução por conta própria. Ela contratou um advogado especializado em questões de moradia e entrou com processo de usucapião individual. “Eu estava ficando com medo, porque eu não queria sair dali”, revela a comerciante.

A arquiteta e urbanista Claudia Favaro destaca a urgência em demarcar a Dique como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), destinada a assentamentos habitacionais para população de baixa renda. Isso garantiria a permanência dos moradores na comunidade. A ZEIS deveria estar prevista no Plano Diretor de Porto Alegre, que hoje não inclui a Vila Dique.

“Não tem regime urbanístico, não tem nada, é como se fosse um limbo. As coisas acontecem na cidade toda e ali tem uma parte que não tem nada”, informa. Após a demarcação, um projeto de urbanização — já sendo produzido com a participação da equipe de Favaro — poderá ser executado. O trabalho deve considerar as especificidades do território, como o solo mal drenado e sua baixa capacidade de compactação, características que requerem fundações mais profundas nas edificações.

A comunidade compartilha desse desejo. Scheila, Marcelo, Vavá e Vera desejam continuar morando na Vila Dique, mas não nas condições atuais: “Nós queremos uma qualidade de vida melhor. Nós queremos urbanizar, nós queremos uma pracinha, nosso posto de saúde. A gente não quer ficar aqui abandonado. Por isso que eu digo que é uma cidade que não é olhada pra nós. Se tivesse o olho da gestão pública pra dentro daqui, a Dique não estaria como está”, diz Sheila Motta.

A moradora critica a falta de iniciativa do executivo municipal e sugere a parceria com ONGs e empresas, como a própria Fraport, para a urbanização da área. “Só que a prefeitura não faz questão. Ela faz questão de fazer como no Rio de Janeiro: botar vila com vila pra todo mundo se matar. Só que essa matança não está acontecendo só dentro das vilas. Essa matança está acontecendo no asfalto, no centro da cidade”, observa.

Independente do que o futuro reserva aos moradores da Vila Dique, uma coisa é certa: a luta vai continuar. Para que algum dia, quem sabe, as pessoas que buscaram refúgio na área próxima ao aeroporto Salgado Filho possam viver de forma digna e em paz no lugar que escolheram para chamar de lar.

Até o fechamento desta reportagem, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) não havia fornecido os dados pedidos pela equipe nem confirmado entrevista com o diretor Mario Marchesan, mesmo após ter, inclusive, estipulado prazo para fazê-lo.

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo campus Fapa do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) de Porto Alegre. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

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