Afogados pela drenagem urbana de Porto Alegre

Giordana Cunha
Cidades e Esportes
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10 min readJun 18, 2018
Moradores da Vila Elizabeth, localizada na Zona Norte da capital, utilizam canoa para locomoção em dias de inundação como na foto tirada em 2015 — Crédito: Roberto Bitencourt/arquivo pessoal

Com mais de 60 anos em funcionamento, Porto Alegre conta com 65% da capacidade de bombas para drenar águas pluviais. Prefeitura admite que sistema de drenagem é insuficiente para a cidade. Revisar o Plano Diretor de Drenagem é fundamental, alerta Carlos Tucci, professor titular aposentado do IPH/UFRGS.

Por Gabriel Borba, Giordana Cunha, Mariana Dornelles e Maurício Paulini

“Quando chove alaga a frente da minha casa. A gente reclamou inúmeras vezes para a Prefeitura e acho que nunca vieram fazer a limpeza do bueiro. Tiveram que ir os moradores do meu prédio e dos prédios vizinhos abrir e fazer a limpeza da caixa, do bueiro, para poder começar a drenar”, relata a moradora do Parque dos Maias, localizado na Zona Norte de Porto Alegre, Caroline Ritter.

Mais um período de chuvas se aproxima e com ele o drama de quem, assim como Caroline, convive com a falta de ações para um problema crônico em dias de tempo chuvoso. Entra e sai ano e o problema dos alagamentos, em diversos pontos da cidade, persiste. A gestão da drenagem urbana é insuficiente para resolver tal situação.

Segundo Carlos Tucci, professor titular aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS) (confira a íntegra da entrevista ao final da reportagem), atualmente a cidade está mais preocupada em pagar as contas. “Com a arrecadação atual, que mal consegue cumprir os compromissos básicos, investir em saneamento não é uma questão a se considerar no quadro atual”, ressalta.

Tucci afirma ainda que revisar o Plano Diretor de Drenagem Urbana de Porto Alegre e implementar obras de melhorias são fatores essenciais para a capital. “O desenvolvimento urbano de hoje é maior do que lá em 2005, então novos estudos seriam fundamentais. Normalmente os planos devem ser revisados, mas esse trabalho ficou muito prejudicado também pelo próprio fechamento do DEP pelo município, que era uma das instituições mais antigas do mundo em drenagem urbana”, diz.

A Prefeitura de Porto Alegre antigamente contava com o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), setor que amparava o planejamento, a construção e a conservação das redes de drenagem urbana, além de ser responsável pelo sistema de proteção contra as cheias da capital. Em 2017, com a mudança de governo, o departamento fechou e este assunto passou a ficar sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb).

A SMSUrb é responsável por ‘formular, planejar, coordenar, articular e controlar políticas de prestação de serviços como limpeza e coleta de resíduos, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, iluminação pública e manutenção e conservação de redes de águas pluviais’. Com tantas atribuições, fica mais fácil entender o porquê do precário serviço prestado nestas áreas.

O Plano Diretor de Drenagem Urbana (PDDrU) tem a finalidade de reunir normas padronizadas para apontar as possíveis soluções de problemas com a falta de escoamento. Datado de 2005, carece de atualizações que contemplem a realidade atual da cidade que, treze anos após a sua publicação, certamente tem esta necessidade aumentada. Atualizado ou não, o fato é que muitos porto-alegrenses sofrem com os efeitos provocados por um sistema de drenagem urbana afogado em meio a problemas estruturais e falta de orçamento para investimentos.

Na época em que o plano foi criado, os responsáveis diziam ser aceitável haver água acumulada nas vias. “O que não é aceitável é que as águas invadam casas. Quando isso acontece, esse é o problema a ser resolvido, tanto por macrodrenagem quanto por micro drenagem”, diz Tucci.

O que a Prefeitura diz sobre isso

Três vezes questionada sobre as questões da precária drenagem urbana, o secretário da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) preferiu se manifestar através de nota e não aceitou entrevistas.

Em nota a prefeitura apontou como fator primordial para o descaso com a drenagem o déficit de 3 bilhões de reais. Afirma também que as redes pluviais são insuficientes para o município por ter mais de 60 anos de funcionamento.

Casas de bombas

Dados disponibilizados pela prefeitura revelam que a cidade conta com uma rede de mais de três mil quilômetros de tubulações, que serve ao sistema de drenagem. Além de diques e comportas, que defendem a cidade das cheias dos rios Gravataí e Guaíba, canais, galerias, condutos forçados e arroios integram o esquema da drenagem local. Contudo, para que as águas da chuva e esgotos passem pelo sistema de proteção contra inundações e consigam entrar nos rios principalmente quando estes estão acima do seu nível normal, é necessário um sistema de bombeamento.

Atualmente, são 82 bombas distribuídas em 20 Casas. Caso todas estivessem em pleno funcionamento, movimentariam cerca de 170 mil litros de água por segundo. Seu objetivo é drenar para o rio a água da chuva vinda de redes de esgoto e canais de drenagem. Operando com 100% da sua capacidade, este complexo sistema evitaria o retorno das águas para as redes, que causam transbordamento de canais, bocas de lobo e poços de visita espalhados pela cidade. Operando sem baixas já seria difícil dar conta de drenar grandes volumes de chuva. Atuando com pouco mais da metade de sua capacidade, então, torna qualquer chuva um motivo de alerta e preocupação.

Mapa ilustra localização e áreas atendidas sobre
cada uma das 20 Casas de Bombas de Porto Alegre.
Arte sobre foto: Maurício Paulini

A tabela abaixo mostra o número de bombas total e que funcionam, além do valor previsto para manutenção. Se o principal argumento para o descaso da drenagem é a falta de orçamento para investir na área, é justo pensar que este serviço vai ficar novamente para depois.

Um divisor de águas

O Arroio Dilúvio é o principal riacho de Porto Alegre e, atualmente, sofre com uma grande poluição. Além de causar inundações, a falta de limpeza das bocas de lobo é agravante para a qualidade da água do arroio. Muitas vezes moradores deixam de fazer seus compromissos para coletar o lixo.

“Quando chove muito alaga a frente da minha casa, a gente reclamou inúmeras vezes para a prefeitura e acho que nunca vieram fazer a limpeza do bueiro. Teve que ir os moradores do meu prédio e dos prédios vizinhos abrir e fazer a limpeza da caixa, do bueiro, para poder começar a drenar”, relata Caroline Ritter, moradora do bairro Rubem Berta, Zona Norte de Porto Alegre.

A Ecobarreira é composta por ilhas flutuantes que ficam 20 centímetros abaixo da água. Crédito: Giordana Cunha

Toda a água do Arroio Dilúvio desemboca no Lago Guaíba, local de onde a água é retirada para tratamento e, posteriormente, distribuída nas residências do município. Pensando nisso, Luiz Carlos Zancanella Júnior criou o projeto Ecobarreira, que auxilia na limpeza da água do riacho. Sem auxílio da prefeitura, 250 mil reais foram disponibilizados para implantação das barreiras ecológicas pela empresa SafeWeb. O projeto já atua há dois anos e já retirou mais de 400 toneladas de lixo das águas. Ações sustentáveis servem como auxílio para a prefeitura, uma vez que a mesma não cumpre com suas obrigações.

A grande enchente e o muro da Mauá

O ano era 1941. No contexto mundial, acontecia a segunda grande guerra. Em território nacional, Getúlio Vargas estava em seu primeiro mandato de Presidente do Brasil, numa fase denominada historicamente como Estado Novo. Em Porto Alegre, o prefeito José Loureiro da Silva enfrentava a pior ocorrência de cheia do lago Guaíba. Foram 22 dias em que se registou mais de 600mm de chuva, que desabrigou 70 mil pessoas. A população da época na cidade era estimada em 270 mil.

Quem viveu, não esquece a histórica enchente de 1941.
Foto: Acervo Museu Joaquim José Felizardo

Segundo informações publicadas na época, falava-se em um número entre dez e duzentas pessoas atingidas, pouco preciso, portanto. O nível do Guaíba subiu para 4,75 metros acima do seu normal, mesmo após uma semana de tempo seco, porque os rios continuavam a escoar água represada e o forte vento sul impedia o curso natural do lago. Além das Ilhas, onde viviam cerca de cinco mil pessoas, bairros como Navegantes, Passo D´Areia, Navegantes e Menino Deus foram os mais afetados.

Este fato gerou debate sobre como a cidade poderia se proteger sobre eventuais novas ocorrências deste evento. E a solução encontrada e posta em prática trinta anos depois foi a construção do Muro da Mauá. Com três metros de construção abaixo do solo e mais três acima dele, os 2.647 metros de extensão vão do centro à zona norte da cidade. Ele faz parte do Sistema de Proteção Contra Cheias, que é constituído também por 68 quilômetros de diques, 14 comportas e as atuais 20 casas de bombas.

A Praça da Alfândega durante a enchente.
Foto: Acervo Museu Joaquim José Felizardo

ENTREVISTA

Carlos Tucci, professor titular aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS), PhD em Rercusos Hídricos.

Como se davam as pesquisas para o Plano Diretor quando o senhor estava no Instituto de Pesquisa Hidráulica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS)?

A Universidade Federal e o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) sempre tiveram uma parceria que visava o desenvolvimento da cidade. Na década de 1970 iniciamos um projeto de pesquisa com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e no início dos anos 1980 apresentamos este projeto ao município de Porto Alegre. Era o primeiro projeto desse tipo no Brasil, que buscava tratar o saneamento básico com a importância que uma cidade como Porto Alegre precisava já naquela época.

Por que não existe um plano mais atual que este publicado em 2005?

A elaboração do plano se deu em algumas fases de produção. Foram feitos decretos de regulação de drenagem, revisão do sistema de proteção contra inundação de Porto Alegre e planos específicos para três das 28 bacias. Na segunda fase foram mais três bacias. Após, ao longo dos anos foram licitadas as demais bacias. A prefeitura deveria ir atualizando o plano. Existe o Plano de Saneamento de 2015 aonde se faz uma síntese das bacias e suas informações. Normalmente os planos devem ser revisados, mas esse trabalho ficou muito prejudicado também pelo próprio fechamento do DEP pelo município, que era uma das instituições mais antigas do mundo em drenagem urbana.

Qual seria o melhor caminho para a drenagem urbana de Porto Alegre?

Revisar o plano e implementar obras de melhoria é fundamental. O desenvolvimento urbano de hoje é maior do que lá em 2005, então novos estudos seriam fundamentais para novas bacias. Revisar regulação é também uma alternativa e pode ser ampliada. Existem ainda inundações isoladas. O plano trata da macrodrenagem. A prefeitura estando atenta às micro drenagens também ajuda a manter o controle. Modernizações podem ser feitas para isso. Aqui falta uma cobrança de taxa para drenagem, porque todos pagam o mesmo valor independente do quanto impermeabiliza, quando no mundo todo se cobra na proporção da área impermeável.

Um planejamento sustentável de drenagem urbana seria possível?

Seria interessante se fosse definido o escopo: econômico, social ou ambiental. Melhorar a regulação para consequentemente melhorar a qualidade da água é o que se impõe. Nos planos anteriores não foram avaliados os níveis de contaminação, o que deve ser levado em consideração no momento de elaborar novos projetos que tratem resíduos sólidos e esgotos. Durante a elaboração, chegamos a criar várias áreas de amortecimento. A proposta era em cada um desses locais realizar atividades de revitalização, integrando todos os resíduos no processo de desenvolvimento local. Aumentariam as áreas verdes. Mas não fomos ouvidos. Atualmente a cidade está mais preocupada em pagar as contas. Com a arrecadação atual, que mal consegue cumprir os compromissos básicos, investir em saneamento não é uma questão a se considerar no quadro atual.

No ano de 2011, em entrevista à Associação Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental, o senhor disse que a falta de tratamento de esgoto prejudica a drenagem. O problema ainda persiste?

O esgoto no Brasil é um desastre. Com exceção de Brasília, não há no país nenhuma cidade com tratamento de esgoto decente. Isso é um passivo que estamos deixando para as próximas gerações por falta total de competência decisória dos políticos que não investem em sustentabilidade. Se fossem aplicados 0,6% do PIB investido por ano nessa questão de drenagem e saneamento, em 15 anos teríamos o Brasil todo contando com um sistema eficaz de saneamento.

Existem regiões específicas na cidade, pontos das Zonas Norte e Sul, por exemplo, que quando chove uma certa quantidade ficam completamente alagadas. A que se deve essa constante?

A drenagem nunca vai resolver todos os problemas provocados por chuvas intensas. Por isso mesmo que se projetam resultados esperados em 10, 15 anos de retorno. Aceita-se que haverá água acumulada nas vias. O que não é aceitável é que as águas invadam casas. Quando isso acontece, esse é o problema a ser resolvido, tanto por macro drenagem quanto por micro drenagem. O plano foi feito para resolver todos os problemas de macro drenagem, abrindo caminho para posterior atuação de micro drenagens.

As casas de bombas de Porto Alegre estão operando com menos da metade de sua capacidade. O quanto isso é danoso para a cidade?

É danoso para os locais onde as bombas não estão funcionando. O bairro Humaitá, por exemplo, alaga com frequência primeiro por motivo dos condutos e depois pelas casas de bombas que não funcionam direito. A região do aeroporto também está sujeita. Tem uma das laterais da pista que está prevista inundação, porque não há dispositivos de controle para segurar a vazão do rio Gravataí que corre ao lado.

O que podemos esperar de Porto Alegre daqui há dez anos no que diz respeito a drenagem urbana?

Vai depender de como vai funcionar a nova estrutura que a prefeitura está tentando implementar. A perspectiva não é muito boa, mas também não dá para criticar sem ver o resultado da política. Houve um desmantelamento técnico, com o próprio fechamento do DEP, e causa a sensação que não vá se alcançar bons resultados futuros.

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

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