Do pátio de casa na Ilha dos Marinheiros, Cristiane da Cruz mostra os pilares da nova ponte do lago Guaíba — Crédito: Victória Marisquerena

Atingidos pela ponte

Após quatro anos de incertezas, mais de mil famílias da Ilha Grande dos Marinheiros, localizada no bairro Arquipélago em Porto Alegre, ainda vivenciam na porta de suas casas a chegada da nova ponte do Guaíba sem saber onde irão morar.

Victória Marisquerena
Cidades e Esportes
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9 min readJun 25, 2018

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Por Victória Marisquerena, Andressa Ternes e Gabriel Amaral

“Toda a minha família vai ser atingida pela ponte”, afirma Cristiane da Cruz, moradora da ilha há 37 anos. Esse é o sentimento geral das mais de mil famílias que deverão deixar para trás as suas casas para que a nova ponte do Guaíba passe. Mesmo aqueles que já se acostumaram com a ideia de sair da ilha ainda não conseguem compreender como uma construção atingiu de tal maneira suas vidas.

Banhada pelo lago onde deságuam três dos 10 rios mais poluídos do Brasil, a comunidade que existe há mais de 70 anos está com os seus dias contados. O primeiro pilar já está na ilha, dentro do pátio de um dos moradores da comunidade que será desfeita para que 2,9 quilômetros de asfalto passe e dê espaço para a nova ponte do Guaíba, um empreendimento planejado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), construído pela construtora Queiroz Galvão.

Casas atingidas pela enchente de 2015 seguem sem autorização para reformas Crédito: Andressa Ternes

Parados no tempo desde 2014, reforços de madeira marcam as casas atingidas pela enchente de 2015 e pelo desgaste que o próprio lago causa dia após dia. Segundo os moradores, nada na estrutura das casas pode ser mudado desde o início das obras, nenhuma reforma ou melhoria pode ser feita, pois os representantes do DNIT afirmam que caso aconteça, poderá ser cobrada uma multa.

Além disso, muitos moradores explicam que não veem futuro em investir em uma casa em que não poderão permanecer, e aguardam a decisão do empreendedor.

O DNIT explica, por meio de nota, que o reassentamento definitivo das famílias deve ser realizado através de três modalidades: compra assistida, indenização ou o reassentamento através de uma unidade habitacional. Mas todas as opções vêm acompanhada de muitas incertezas. As informações passadas aos moradores divergem da nota do próprio empreendedor.

Segundo os moradores, a indenização oferecida seria avaliada somente sobre a construção e não sobre o terreno, pois teria aparecido um dono da ilha, um cidadão russo que teria a escritura de todo o território mesmo ele sendo considerado uma Área de Proteção Ambiental. Sobre essa informação o DNIT não se manifestou.

Projeto Unidade Habitacional — Crédito: Site Consorcio Ponte do Guaíba

A unidade habitacional demoraria de três a quatro anos para ficar pronta, porém, na última reunião representantes do DNIT disseram aos moradores que o local onde seria feito o reassentamento teria tido a licença negada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Em nota, o órgão ambiental do estado afirma que existem três processos de licenciamento para os reassentamentos relativos à implantação desta obra, mas não há indeferimentos relacionados a nenhum deles.

A compra assistida já foi oferecida para as 50 primeiras famílias. Segundo os moradores consultados pela reportagem, eles teriam até julho para escolher três moradias, variando no valor de 100 a 150 mil reais dependendo do tamanho da família, e trazer a proposta para o DNIT avaliar. A promessa é que em julho tenha uma audiência para essas primeiras famílias e que depois o próprio empreendedor providencie a mudança, para que cada família possa levar o que quiser de suas moradias.

“Para quem quer mudar, sair da rotina é bom. Uma casa boa, entrar num chuveiro e a água não ser fraca e gelada tá ótimo”, afirma a moradora Magda Machado, que já está empolgada com a opção.

Identificações do DNIT marcam as casas que terão que sair para que passe a ponte — Crédito: Victória Marisquerena

Além da incerteza e do medo, as identificações feitas pelo DNIT marcam uma a uma as moradias da ilha. “É mais fácil de nos identificar”, explica a moradora Jeannifer Jumier.

Para a maioria dos moradores o que assusta longe dali é a falta daqueles que sempre estiveram dispostos a ajudar. Apesar de hoje já serem mais de mil famílias, a comunidade inicial foi formada por apenas cinco pessoas. Difícil é achar alguém que não conheça toda a ilha e seus moradores de ponta a ponta.

“Dificuldade tem em tudo que é lugar, mas aqui a gente se ajuda, e se tu for pra um lugar desconhecido ninguém vai te ajudar, não dá pra bater na casa do vizinho e pedir roupa ou comida para dividir”, diz Magda Machado.

Quadra construída com a indenização do documentário Ilha das Flores — Crédito: Victória Marisquerena

A comunidade composta por moradores humildes, que expõem como monumento de vitória uma quadra ganha por indenização pelo documentário Ilha das flores, onde os moradores foram apresentados como comedores de comida dos porcos, traz a simplicidade e a preocupação com aqueles que não tem conhecimento para lutar por seus direitos, que dependem da coleta dos materiais recicláveis e que não tem estudo e estrutura para correr atrás da compra assistida e se manter fora da ilha.

As famílias ainda lutam para defender a forma como vivem. Magda Machado, moradora da ilha desde que nasceu, tem sete cachorros e já perdeu a conta de quantas galinhas ela cria em seu pátio. Imaculada Galvão, outra moradora, veio do Amazonas há quase 30 anos, tem seu próprio barco para pescar e uma horta em seu jardim de onde retira a maior parte das frutas e verduras que alimenta sua família. A preocupação de muitos moradores é se a forma como vivem será respeitada, se o local para onde irão lhes dará todas as opções que o local onde construíram as suas vidas têm.

Moradora Magda Machado alimentando a criação de animais em seu pátio — Crédito: Victória Marisquerena

“A gente gosta do verde, a gente gosta das flores, dos bichos, então eu vou me sentir um passarinho preso se eu vou pra esse reassentamento”, afirma Imaculada Galvão, moradora da ilha.

Para todos os moradores, desde o início da obra foi passada a informação que onde quer que fossem, não poderiam levar mais de um animal, mas em nota o DNIT afirma que desconhece essa informação e que será analisado caso a caso por uma secretaria específica da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Entre incertezas e controvérsias moradores da Ilha dos Marinheiros sonham com um lugar melhor, e lutam pela sua história e forma de vida. Mas o destino de todos segue nas mãos de uma licença, de uma obra em construção e de diferentes representantes do DNIT.

Por água abaixo

Conhecido como a região deltaica do Lago Guaíba, o local onde fica a Ilha dos Marinheiros e por onde a ponte passará é considerado por muitos especialistas como um berçário da fauna e da flora de Porto Alegre. Consequentemente, por se encontrarem nessa região, as ilhas estão em constante mudança e seu solo é marcado por antigos canais, portanto, são muito frágeis, extremamente passíveis de inundações.

Para o especialista Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituto de Geociências da UFRGS, a construção da nova ponte nada mais é do que a congruência excessiva de águas, rodovias e de infraestrutura urbana que pode causar futuramente uma grande inundação que bloquearia a malha rodoviária, como já aconteceu em outras obras do tipo.

Um dos pilares da nova ponte dentro do Lago Guaíba — Crédito: Victória Marisquerena

Na Licença Prévia aprovada pela Fepam, são descritos alguns cuidados com o solo, a água e com a vegetação. Entre eles estão o monitoramento das águas e do solo desde o início das obras e também a plantação de 22.954 mudas para reposição florestal. O monitoramento das águas segue sendo responsabilidade do empreendedor, o DNIT, e ele não respondeu em relação a isso. Já sobre as mudas, a Fepam afirma que não houve registro pelo empreendedor no setor de Biodiversidade da Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema), e por isso as mudas não tem previsão de quando e nem onde serão plantadas.

O local que foi apresentado para os moradores como espaço para a construção da unidade habitacional é considerado um banhado, e muitas famílias vizinhas têm medo que o aterramento necessário para a construção acarrete em alagamento para a região no entorno. Rualdo Menegat explica: “O sistema deltaico é um sistema muito vulnerável. Ele é todo interligado e é muito raso, não se deve aterrar, qualquer ação ali gera reações imediatas no entorno”.

Local onde seria a unidade habitacional que receberia os moradores reassentados da Ilha dos Marinheiros — Crédito: Victória Marisquerena

Quilômetros de asfalto

Projeto da nova ponte — Crédito: Site Consórcio Ponte de Guaíba)

A construção da Nova Ponte do Guaíba aliviará congestionamentos para quem já utiliza a ponte antiga diariamente. Todo o fluxo de carros que atualmente fica parado esperando a ponte baixar vai ser desviado para nova ponte fazendo com que diminua os períodos de congestionamentos, prometem, pois, a nova estrutura terá altura suficiente para os navios.

Segundo informações publicadas no site oficial da obra, a ponte contará com uma largura de 28 metros nos vãos principais, a pista vai conter duas faixas com acostamento e refúgio central, mas não incluíram ciclovia no projeto. A extensão do empreendimento é de 2,9 quilômetros, mas com um total de 7,3 quilômetros em obras de artes especiais, que seria o alargamento da ponte do Saco da Alemoa, viadutos e elevadas.

Conforme informações da assessoria da empresa Triunfo Concepa, a antiga ponte do Guaíba encerra o contrato no dia 3 de julho de 2018 e não tem previsão de renovação. A nova ponte segue tendo como consórcio a construtora Queiroz Galvão AS e EGT Engenharia Ltda.

A construtora Queiroz Galvão

Fruto de uma campanha política para a reeleição da ex presidenta Dilma Rousseff em 2014, a obra é uma das 14 que ainda não foram concluídas pela construtora Queiroz Galvão no Brasil. A construtora que faz parte de mais de 20 obras no país, foi proibida pelo Tribunal de Contas do Estado a fazer qualquer tipo de contrato com o governo por 5 anos, devido a quantidade de atos irregulares cometidos em atuação. Investigada desde 2016, por fazer parte de um cartel de construtoras, a empresa também é acusada de lavagem de dinheiro e corrupção.

Dados baseados nas informações disponíveis no site da Queiroz Galvão

Outras oito obras seguem sendo construídas com atraso no país, e cinco estão paradas por falta de recursos ou até mesmo por intervenção do governo. Entre elas está a Usina de Belo Monte, conhecida pelo rastro do impacto ambiental que deixou na Amazônia.

Memorial: driblando o tráfico

Conseguimos o contato de uma moradora na Ilha dos Marinheiros através da nossa primeira fonte, Ana Carolina Pinheiro, estudante de jornalismo da UniRitter que já tinha passado por um caminho muito parecido do nosso no início da obra ao fazer uma reportagem sobre a comunidade. Porém, para que a moradora Jeannifer nos recebesse na Ilha foi um trabalho árduo.

A Ilha dos Marinheiros estava sendo tomada pelo tráfico de drogas e consequentemente não poderíamos entrar lá. Fizemos primeiro contato com ela através do Facebook e ela sempre se mostrou disposta a ajudar e nos acompanhar na nossa visita. Após duas semanas que contatei pela primeira vez Jeannifer, chegou a notícia que um dos traficantes da Ilha havia sido preso, assim possibilitando a nossa visita até a Ilha.

Contudo, mesmo que a Ilha estivesse mais em paz em relação ao tráfico no momento, Jeannifer recomendou por segurança que não andássemos a mostra com celulares, máquinas fotográficas ou qualquer outro tipo de aparelho eletrônico que poderia capturar imagens da comunidade, pois alguns moradores da ilha poderiam ficar incomodados e receosos. As recomendações eram para que apenas retirássemos o aparelho fotográfico de dentro do case ou mochila quando chegássemos em alguma casa para fazer a entrevista com os moradores, se eles autorizassem imagens.

A visita acabou sendo tranquila e acolhedora. Os moradores nos receberam de portas abertas e dispostos a responder todas as questões propostas. O clima na comunidade estava harmônico desde nossa chegada até nossa partida. Jeannifer nos mostrou todos os cantos da Ilha importantes para nossa reportagem, inclusive nos levou até o outro lado da ponte, local onde está previsto o reassentamento das famílias.

Já o contato com os órgãos responsáveis foi um pouco mais difícil, apesar de solícitos, muitas dúvidas ficaram perdidas entre o empurra-empurra de obrigações. O Consórcio Ponte do Guaíba passava para o DNIT e ele para a Fepam, criando um ciclo de incertezas. Sentimos um pouco do que os moradores têm sentido desde o início das obras.

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

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