Comunidade dribla bloqueio da Uber na Bom Jesus
Considerados áreas de risco, 11 bairros de Porto Alegre foram excluídos do aplicativo de transporte privado Uber a partir das 22h e prejudicaram os moradores. Em um dos bairros considerados mais violentos da capital, quatro serviços alternativos foram criados.
Por Maria Eduarda Machado, Matheus Dias e Nathalia Kerkhoven
“Esses dias até a moça perguntou através da mensagem para onde eu iria, já era dez e pouca, onze horas da noite. Eu coloquei bairro Bom Jesus. E ela simplesmente andou o carro. Quando eu tava chegando perto ela simplesmente saiu com o carro. Desconfiou.”
Esse é o relato de Gisele de Souza, moradora do bairro Bom Jesus, um dos 11 bloqueados pela Uber por conta de áreas de risco. A partir das 22h, todos os dias, cerca de 390 mil habitantes de Porto Alegre passam por uma série de problemas para entrar ou sair de seus bairros.
No último ano, entre furtos e roubos de carros, foram 11.529 ocorrências na capital gaúcha, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio Grande do Sul.
Com o índice da criminalidade, a população fica à mercê da insegurança. Isso afeta, também, a condição de trabalho dos motoristas de aplicativos. Luís Roberto dos Santos, motorista de Uber há 10 meses, é um dos que preferem preservar a sua vida.
- Eu estava trabalhando de motorista Uber, peguei uma passageira, normal assim, como sempre eu faço. Quando nós chegamos em frente do condomínio dela, aqueles cinco segundos que ela levou para pegar o dinheiro pra me pagar apareceram dois caras armados, um entrou do meu lado. Ele não me apontou a arma em nenhum momento, mas ele mostrou que estava armado, aí eu vi que era assalto. Então eu preciso me preservar, preservar minha segurança, o carro, isso aqui foi o investimento de, praticamente, uma vida inteira, pra estar com o carro aqui trabalhando.
Os 11 bairros da capital gaúcha que foram atingidos pelo bloqueio da Uber são: Rubem Berta, Santa Teresa, Sarandi, Mário Quintana, Lomba do Pinheiro, Jardim Carvalho, Bom Jesus, Coronel Aparício Borges, São José, Medianeira e Jardim do Salso. Neles, ao abrir o aplicativo entre 22h e 6h, quem estiver buscando um transporte para entrar ou sair, visualiza na tela do celular a mensagem: “Infelizmente, a Uber não está disponível em sua região no momento”. A Uber não esclarece os critérios específicos que foram utilizados para definir o bloqueio.
Na plataforma Onde Fui Roubado, foram registrados 816 roubos de veículos em Porto Alegre nos últimos 12 meses. Desses números, nenhum dos 11 bairros bloqueados pela Uber foi citado entre os 10 com maior número de ocorrências registradas do site.
Jeitinho brasileiro
A Bom Jesus, um dos bairros marginalizados pelo aplicativo que promete revolucionar a mobilidade urbana, criou alternativas ao bloqueio imposto pelo aplicativo Uber após as 22h. Entre elas, a Uberlândia.
“A gente criou um grupo no WhatsApp. Daí foi colocando pessoas e foi precisando de gente. E um carro virou dois e daqui a pouco tinha 40 carros”, relata Bruno Farias, idealizador e administrador do ponto. Atualmente, são 22 motoristas. A Uberlândia realiza entre 400 e 500 viagens por mês.
O sistema de trabalho funciona assim: todos os carros ficam em frente ao “cordão” (ponto), localizado na rua Ala nº 550, na Bom Jesus. Entretanto, diferentemente do aplicativo Uber, o motorista, ao finalizar uma corrida não pode iniciar outra sem estar no ponto.
Por exemplo: um carro foi solicitado para fazer uma corrida até a rodoviária. Após terminar a corrida, o condutor não pode iniciar uma nova corrida entre o caminho da rodoviária até a Bom Jesus. Apenas se ele receber uma ligação da central com uma nova corrida a fazer.
É cobrada uma taxa mensal de R$ 60,00 de cada motorista. Esse valor, segundo Farias, é para o empregado poder usar o ponto e os meios de comunicação em que as corridas são solicitadas. Todo o resto do lucro é do empregado, independente de quanto ele fizer no dia, semana ou mês.
“Vou resumir pra ti: é bom pra nós e pra comunidade. Bom pra comunidade porque eles têm carro a hora que eles quiserem. E pra nós porque a gente trabalha, não fica por aí nas esquinas”, disse um dos motoristas que preferiu não se identificar.
O bairro Bom Jesus possui 28.738 habitantes, o que representa 2,04% da população da capital, conforme dados do último censo do IBGE. Dados indicam que ocorreram 95 assassinatos no bairro desde 2010. O número representa 11,8 assassinatos por ano.
Uberlândia
Com a restrição à mobilidade na capital, os habitantes afetados precisaram encontrar um jeito de se locomover nesses lugares, Alguns “aplicativos” clandestinos foram criados para ajudar as pessoas: Uberlândia, Madrilândia e Uber Salso são alguns deles.
Bruno Farias foi o idealizador da Uberlândia, o que ajudou os moradores que dependem do serviço. Ele trabalhava para a Uber, mas fazia corridas “por fora” quando o Uber não aceitava dinheiro. “Eu fazia muita coisa por fora aqui na vila, porque aquele tempo era cartão e as pessoas da comunidade não tinham cartão”.
A Uberlândia nasceu depois que o aplicativo de corridas resolveu bloquear certas áreas consideradas de risco. O motorista começou a trabalhar dentro da “Bonja” e chamou alguns amigos para trabalhar com ele. A ideia surgiu de uma conversa com seu irmão, onde eles decidiram “colocar um cantinho” para os carros que trabalhavam lá.
“A ideia inicial foi sem grupo, era só pra ficar ali e o pessoal ir direto pegar. Só se concentrar. Aí depois começaram a pedir número”, disse Bruno.
A Uberlandia funciona como um ponto de táxi. Quando alguém pede, o primeiro carro da fila é que vai atender. Existem preços fixos para certas corridas: se a corrida for dentro da Bom Jesus o preço é de R$ 8,00.
Madrilândia
Paralelo à atitude de Bruno, moradores da rua José Madrid também resolveram iniciar seu projeto, no mesmo molde da Uberlândia, todavia denominado Madrilândia.
José, motorista de Uber e morador da Bom Jesus, contou que a Madrilândia surgiu após uma briga de motoristas da Uberlândia, que ocasionou a separação de alguns companheiros de trabalho. Ele não soube dizer qual a razão da briga, mas afirmou que houve sim uma confusão e uma divisão de grupo de trabalho.
Uberlink e Uber Salso
Os dois projetos instigaram moradores de outros pontos do bairro a também tomar uma atitude com relação ao bloqueio da Uber. Próximo à rua Panamá, foi criada a UberLink, que, diferente da Uberlândia, possui motoristas independentes. No bairro Jardim do Salso, também foi posta em prática outra ideia: a Uber Salso.
“Se tornou importante pra mim porque eu comecei a usar mais ele do que os outros aplicativos e não preciso ficar preocupada também com a hora de ir ou voltar”, disse Maria Eduarda Batista, que utiliza com frequência a Uber Salso. Além disso, ela destacou a segurança e a rapidez do serviço: “Tu chama e eles já respondem. Te enviam o nome do carro, a placa e o nome do motorista.”
UberLink, Uber Salso e Madrilândia não responderam às solicitações de entrevista.
Os taxistas, que antigamente não operavam na área, hoje mudaram sua postura. “Depois que surgiu a função da Uber, eles não reclamam, entram e saem qualquer hora do dia. Mas antes também, quando não tinha a Uber era uma burocracia, eles não entravam por medo”, relata Gisele de Souza, da Bom Jesus.
Na Restinga, Extremo Sul de Porto Alegre, o aplicativo não é bloqueado, mas muitos motoristas acabam cancelando a corrida quando ficam sabendo do destino. O mesmo já acontecia quando chamavam um táxi para levar, ou buscar alguém, nessa região, ainda antes do surgimento da Uber em Porto Alegre. Há cinco anos existe, na Restinga, o “táxi alternativo” que foi inventado para suprir as necessidades de locomoção dos moradores, já que os taxistas não queriam se arriscar.
Moradores prejudicados
O motorista Luís Roberto, ao ser questionado sobre o bloqueio da Uber, contou que a empresa foi criada nos Estados Unidos por um homem que não tinha como pegar táxi no local onde estava e estava sem carro na chuva. A ideia surgiu com a proposta de que as pessoas poderiam chamar um carro, não importa onde, mas a premissa não se manteve em Porto Alegre.
Apesar de concordar que a Uber optou pelo bloqueio nos bairros para preservar o motorista cadastrado em sua plataforma, Luís escancara um problema. “Existem situações de saúde, situações em que a pessoa está mal e não tem grana para o táxi, mas para o Uber tem. O Uber pode estar em vários lugares porque são muitos carros circulando, muito mais fácil que ir até um ponto de táxi, mas ai se criou um limitador por causa da violência.”
“Às vezes a gente escuta da boca de motorista ‘ah, porque mataram um Uber ali’, mas a gente nunca ouviu falar. Nunca ouviu dizer assim: ‘ba, mataram um Uber aqui dentro da Bom Jesus’, ‘pegaram um Uber’ ou ‘ó, esse cara que morreu aqui era Uber’, entendeu?! Então a gente não sabe realmente o que aconteceu pra Uber não entrar mais na Bom Jesus. Simplesmente do nada, a Uber não entrou mais”.
Jackson Rosa, autor do depoimento acima, é um dos moradores que sofrem com o bloqueio da Uber. Gerente-Sócio do Cachorro do Rosário, Jackson utiliza o aplicativo quase todos os dias, principalmente pra ir e voltar do serviço.
“Eu acho desnecessário, porque tem muita gente que precisa da Uber depois das 22h e moram nesses bairros. Por causa de um, a maioria paga. É bom pro motorista pelo fato de não ter aquela insegurança de estar naquele bairro, que realmente, pra quem não mora lá, é inseguro, mas pra quem mora lá e quer sair pra fazer alguma coisa, ir até, às vezes, num médico, numa emergência, o cara quer chamar um Uber e não pode porque tem esse empecilho”, opinou Rodrigo Cruz, auxiliar de almoxarifado e motorista de Uber nas horas vagas.
“Eu acho que é uma bobagem. Hoje em dia, do jeito que está em Porto Alegre, qualquer lugar aí é risco ”, opina Gisele de Souza, que usa o aplicativo cerca de 10 vezes por semana. Apesar de ainda sofrer com o bloqueio, a comunidade da Bom Jesus, onde ela mora, com união e criatividade achou meios de driblar a restrição da Uber.
Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.