Cultura afro e ginástica: uma combinação de sucesso

Helena Ribeiro
Cidades e Esportes
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12 min readJun 24, 2018
José Anchieta é o criador da Ginástica Afro Aeróbica, modalidade que traz elementos da cultura afro-brasileira na ginástica. — Crédito: Helena Ribeiro

Graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o professor José Anchieta sempre teve uma relação próxima com esporte. Já aos 12 anos, Anchieta começou sua trajetória como atleta competindo em diversas modalidades de atletismo. Ao decorrer da sua carreira, o professor juntou o esporte e a dança, na missão de abordar um assunto importante em sua vida: a questão racial. Com isso, ele criou uma modalidade de ginástica, a Ginástica Afro Aeróbica. Nesta modalidade, são abordados diversos aspectos da cultura afro-brasileira como, por exemplo, o candomblé e o samba. Pela importância social de seu trabalho, Anchieta viaja o mundo ministrando workouts e workshop. Além disso, ele também já conquistou vários prêmios regionais, nacionais e, inclusive, um internacional, pela sua atividade como instrutor e professor. Atualmente, aos 63 anos, o professor segue dando aulas e, mesmo em idade de aposentadoria, não se vê parando.

Como foi o teu primeiro contato com o esporte?

Eu era um menino gordinho na época da escola. E eu sempre gostei de esporte, mas eu não tinha facilidade com o futebol, que é o esporte que a gurizada mais prática. Aí na sexta série, eu comecei a me destacar no spiroball porque eu tinha muita habilidade com as mãos. E o meu professor na época percebeu essa facilidade que eu tinha e começou a me apresentar outros esportes, basquete, voleibol…

Uma vez esse professor me apresentou um peso. “Tem uma competição de atletismo eu quero te botar em arremesso de peso”, ele disse. Porque eu era fortinho e, pra minha idade, alto. No dia da competição, na Sogipa, eu cheguei na prova e eu era o menor deles e pensei “bah tô ralado”. Mas, apesar de eu não ser muito grande, eu era muito veloz e por isso eu tirei terceiro lugar e ganhei uma medalhinha, que tenho até hoje. Aquele campeonato me estimulou no esporte. Naquela competição mesmo, o treinador do Sport Club Internacional de atletismo e me pediu pra treinar e, apesar de ser gremista, eu fui treinar atletismo no Internacional. E aí começou a minha vida esportiva.

Por que você se identificou tanto com o atletismo?

Eu era muito tímido. Ainda sou. E o atletismo é um esporte individual, que você tem que trabalhar só com você mesmo. É tu e Deus na hora. Então tem que confiar muito em ti, tem que treinar sozinho, muitas vezes você fica ali pensando e repetindo, repetindo, repetindo, tentando melhorar. Isso vai reforçando a tua auto estima e a tua relação contigo mesmo. E quando você é vitorioso! Aquele terceiro lugar pra mim foi uma vitória. Porque eu cheguei e só tinha cara grande e eu consegui uma medalha. Eu acho que isso me ajudou a me fortalecer e a me identificar com o esporte. Eu vi que era uma porta de entrada pra vida.

E depois disso você continuou competindo no atletismo?

Continuei competindo. Eu fui campeão estadual várias vezes, fui duas vezes vice-campeão brasileiro de arremesso de peso e também comecei a fazer mais modalidades do atletismo. E paralelo a isto, comecei a jogar outros esportes. Surgiu o handebol na minha vida e fui convocado pra seleção gaúcha, joguei três campeonatos pela seleção gaúcha. E nessa época eu já era um atleta, eu já me sentia um atleta.

Você pensou em se profissionalizar em algum desses esportes?

Quando chegou na época de fazer educação física, eu não queria fazer. Porque eu gostava tanto da prática que eu dizia assim “cara, eu não vou gostar de estar do outro lado. Eu quero continuar praticando, não quero ser professor”. Mas eu já dava aula pros meus colegas, faltava eu me posicionar. Na época, eu queria fazer psicologia, eu já lia livros — eu só namorava com psicóloga, casei com uma psicóloga, inclusive. Eu não queria fazer educação física, queria fazer psicologia e continuar sendo atleta.

Então como foi a tua decisão de cursar Educação Física?

Um amigo meu, que fazia educação física, me convidou pra jogar voleibol lá na ESEFID. E eu fui pra UFRGS e comecei a jogar aos sábados de manhã com o pessoal e eu comecei a ver o clima da educação física… até me arrepiei de lembrar! Pô, era um clima diferente, um pessoal alegre, descontraído. Todo mundo lá queria ser professor mas jogava muito e eu pensei “ó tudo que eu quero. Um curso formador, um curso profissional e eu vou continuar ligado ao esporte”. Aí eu tirei aquele estigma de que sendo um professor eu não poderia ser um praticante. Então eu passei na UFRGS, já na primeira vez, pro curso de Educação Física e me realizei. Hoje eu sou um cara realizado profissionalmente, eu to muito feliz no que eu faço.

E quando que você percebeu que ser professor era realmente uma coisa boa pra ti?

Eu era de uma família muito pobre. Não era muito pobre, era pobre, ganhava salário mínimo e tal… E meus pais não podiam pagar os meus gastos, mesmo sendo a UFRGS eu tinha que comprar livros, uma série de coisas. Por isso eu tive que logo começar a trabalhar. Eu botei o pé na faculdade e já procurei emprego. Então eu fui trabalhar nas pracinhas da prefeitura e ali eu comecei a ver como era bom lidar com criança, orientar e ensinar. E a prática pedagógica começou a me cativar imediatamente. Ali eu vi que eu seria um bom professor.

Qual a importância que você atribui a ensinar as outras pessoas?

Cara, eu sou suspeito pra falar. Mas eu acho que é uma das profissões que mais contribui pra formação do indivíduo. Primeiro porque se trabalha com o que a pessoa tem de mais valioso naturalmente, que é o próprio corpo. E com o esporte se trabalha com o arrojo, com a coragem, trabalha com a auto estima, trabalha com desafios, trabalha com afetividade… E você consegue passar pra criança um monte de valores que são importantes para o indivíduo: respeito às normas, às regras do jogo; o respeito ao outro, ao ser humano; o respeito ao próprio corpo. São valores que fortalecem a estrutura do homem como ser social, como ser hum

Com toda essa tua trajetória com o esporte, por que você escolheu dança para te especializar?

Eu sempre gostei de música, sempre gostei de dançar, mas eu dançava em festa. Aí no curso de Educação Física tinha um cadeira sobre Ginástica Rítmica, eu comecei a me destacar e a professora me convenceu a entrar para o grupo de dança da faculdade.

Depois quando eu me formei, eu comecei a trabalhar em uma academia como professor de corrida por causa da minha trajetória com o atletismo. E um certo dia, o dono da academia me perguntou se eu já tinha dado aula de Ginástica Aeróbica, e eu disse que sim — era mentira, mas eu já tava olhando pro futuro, pensando que qualquer dia ele ia me convidar pra dar aula de Ginástica — e nisso ele disse “então pega as tuas coisas que tu vai dar aula de ginástica agora porque o professor faltou”. Claro que pelo menos eu já tinha assistido algumas aulas de ginástica antes. Naquele mesmo dia eu tinha ido em uma aula particular de Jazz e tava com os LP’s ali e pensei em usar eles pra aula e foi um sucesso por isso. E a partir daí eu comecei a dar aulas regularmente. Com isso eu comecei a ter uma ligação com o Jazz mais profissionalmente e comecei a estudar e pesquisar. Nessa pesquisa, eu encontrei a cultura negra como uma das origens do Jazz. Eu sempre quis trabalhar com alguma coisa da cultura negra, pra trabalhar a questão racial, por isso eu passei a colocar elementos afros nas minhas aulas e o pessoal amou. Daí surgiu a ideia de criar a Ginástica Afro Aeróbica. Mas eu sabia que, por não ter pós graduação, eu iria sofrer muito preconceito na área e por isso comecei a ir atrás e fiz a minha pós-graduação em Dança — já que é um elemento importante da Ginástica Aeróbica.

Quais foram as fontes culturais que você usou para a criação da Ginástica Afro Aeróbica?

Eu fiz um trabalho de pesquisa profundo. Comecei a frequentar candomblés, comecei a fazer aulas de jazz afro com professores do Rio — eu juntava dinheiro e ia pro Rio de Janeiro, porque aqui não tinha. E descobri um grupo que fazia afro aqui e entramos um um grupo chamado “Afro Sul”, que existe até hoje. Depois, quando eu já tinha mais dinheiro, eu fui pra Salvador… Então a base do meu trabalho é a cultura negra mesmo: é o candomblé, é o samba, os professores de jazz afro. Tanto que eu tenho um livro “Ginástica Afro Aeróbica” baseado em toda essa proposta.

Qual a importância que você atribui a criação dessa modalidade?

Bah, eu sou muito orgulhoso disso. Porque eu fui o primeiro professor no brasil, e posso dizer do mundo, que abriu as portas pra cultura negra pra dentro do fitness, esse universo de academias e congressos. Eu fui o primeiro professor no mundo que levou um grupo de pagode e deu aula ao vivo com um grupo de pagode. Eu fui o primeiro professor que trabalhou com música de candomblé e samba, em uma convenção. Depois disso que outros professores foram tomando coragem.

Viajando pelo mundo eu encontrei outros professores que também estavam germinando trabalhos parecidos com o meu. E os livros dizem que uma ideia nova nunca surge no mundo só com uma pessoa, porque isso é resultado de um contexto social, cultural, maior.

Quando você vê as pessoas procurando a Ginástica Afro Aeróbica, você percebe as pessoas procurando essa cultura, esse fragmento da história do brasil?

É, eu acho que sim. Muitas pessoas que vem fazer aula comigo têm essa identificação com a cultura negra. E vem gente de todas as cores, não vem só negro. Tem alguns que vem por ser uma modalidade diferente, por ser uma coisa nova, mas muitos vem por causa disso. Eu criei outra modalidade também, o Batucalê, e muita gente vem pelo nome diferente, mas durante as aulas vê que é relacionado à cultura negra e fica mais entusiasmado.

Você acredita que as pessoas conseguem absorver essa cultura apresentada nas modalidades?

Alguns sim. Alguns vem só pela novidade, mas tem outros que se identificam tanto que se agregam justamente por isso — que é um dos objetivos da minha vida, divulgar a cultura negra, fortalecer a cultura negra. Porque eu acho que é uma das maneiras de quebrar o preconceito, pras pessoas verem que é uma cultura rica, tanto quanto as outras.

Você já enfrentou algum tipo de preconceito nesse meio por ser negro?

Nossa, muito. Muito preconceito. Dentro da Educação Física, inclusive. Colégios que não queriam me aceitar por eu ser negro, pessoas que não queriam fazer aula comigo por eu ser negro. E eu sou negro, mas eu não sou tão preto, então eu fico imaginando como que é pra um preto bem preto e mais pobre, o que ele não passa no dia a dia. Várias vezes eu entrei em lojas e o vendedor atendeu um branco antes de me atender. O preconceito é uma coisa muito forte e dentro da Educação Física isso não é diferente.

Quais foram as formas que você encontrou para enfrentar esse preconceito?

Lutar. Eu sempre bato de frente. Eu sempre questiono se alguém vem com alguma piadinha. Tanto que meus amigos já sabem, quando eu to perto eles falam “ah essa eu não vou contar porque o Anchieta tá aí e ele não vai gostar”. E isso já cria uma conscientização, mesmo que na marra. Essa é uma forma. A outra forma é valorizar a cultura negra. Sempre que eu posso, inclusive no meu trabalho, eu valorizo. Sempre que dá eu coloco música negra, mesmo que seja em aulas de outras modalidades de Ginástica ou Ritmos, sempre acaba com samba.

Você também tenta levantar essa questão racial nos workshops que faz pelo mundo?

Sim sempre. Tanto na teoria, quanto na prática. Na teoria, apresentando o programa, eu conto, rapidamente, a história da discriminação racial no Brasil. Como foi a história da escravidão no Brasil, conto que o Brasil foi o último país a abolir a escravatura e também conto algumas das minhas histórias como homem negro.

Qual a reação que você percebe das pessoas de outros países ao contar essas histórias?

Alguns ficam espantados. Porque na Europa, o Brasil é valorizado pela cultura afro-brasileira: é o samba, é o carnaval, é o futebol também. Lá fora as pessoas falam que o Brasil é carnaval e Pelé! Pô, o carnaval é a apoteose do samba. E eles não conseguem acreditar que exista tanta discriminação.

Então você vê, de certa forma, as pessoas apreciando mais a cultura afro-brasileira fora do Brasil?

Não. Acontece de tudo, não é uma norma. Mas no Brasil, por muito tempo a cultura negra foi ligada ao escravo, ao pobre, ao vagabundo. Era a imagem que o negro tinha, e ainda tem. Então essa discriminação está muito enraizada na nossa cultura. O brasileiro é racista por imposição cultural.

Sobre os prêmios que você ganhou. Como foram esses momentos pra ti?

Cara, assim, eu costumo dizer pros meus amigos: prêmio não vale nada, só pra ti te exibir. Mas é importante. A maioria dos prêmios que eu ganhei são de grandes eventos que premiam os professores que mais se destacam. Então, o prêmio, pra mim, é uma premiação ao esforço, é a forma que a gente se entrega ao trabalho. Eu tenho alguns prêmios do Brasil e o prêmio da Espanha foi muito especial porque é um prêmio internacional — eu fui escolhido o melhor professor do ano. Pô, lá ia americano, ia alemão… e escolheram um brasileiro, que é resultado do meu trabalho também, a questão do meu trabalho ter cultura junto.

O que você considera ser a coisa mais gratificante que o teu trabalho te trouxe?

O relacionamento com as pessoas. É fazer o bem para as pessoas. A minha profissão é uma que ajuda o ser humano. Então a gente vê que as pessoas melhoram, que aquilo dá alegria pra elas. Pô, o meu trabalho é sempre com alegria! Eu costumo dizer para os meus alunos “atividade física ligada ao prazer, não tem coisa melhor”. Passou aquela coisa de que atividade física é castigo, isso te faz bem, você fica melhor pra tudo. Então fazer bem para as pessoas, pra mim, é o melhor presente que a profissão pode me dar.

E conhecer bastante gente. Como eu era muito tímido, eu tinha muita dificuldade em fazer amigos. E a profissão me ajudou muito com isso. A educação física, o esporte, me ajudaram muito. Comecei a viajar, conhecer gente, comecei a fazer amigos nos jogos. Enfim, o que eu acho que é o melhor da profissão é trabalhar com gente e fazer bem pras pessoas.

Você consegue imaginar como teria sido tua vida se teu professor não tivesse te incentivado a procurar outros esportes?

Ah, ia ser uma merda. (risos) Talvez eu tivesse achado a educação física por outro caminho, mas ele me ajudou muito. Hoje se eu não fosse professor de educação física eu ia ser um frustrado, eu não sei se eu ia ser feliz como eu me sinto.

Hoje tu tem 63 anos, tu te imagina dando uma pausa logo ou tu quer continuar fazendo isso por bastante tempo?

Eu já to em idade de aposentadoria e eu não me vejo parando. Eu acho que vou continuar na educação física até morrer. Eu só vou ir adaptando. Já estou fazendo isso, eu já não dou tantas aulas práticas. Também estou buscando fazer trabalhos que me preservem mais fisicamente, como atendendo as pessoas individualmente como personal. Eu não me vejo parando e não quero parar.

MEMORIAL DESCRITIVO

Entrevista durou cerca de 40 minutos e ocorreu no bar da acadêmia onde Anchieta trabalha. — Crédito: Reprodução

Logo que o professor propôs para a turma a realização de uma entrevista pingue pongue com uma figura do esporte eu soube que seria um desafio para mim. Isso porque eu não tenho, e nem nunca tive, contato com esportes. Nunca pratiquei nenhuma atividade física — tirando as raras ocasiões em que era obrigada pelas aulas de educação física — e tão pouco fui torcedora fanática de algum time ou esporte.

Com tão pouco contato com a temática da atividade, foi difícil para mim encontrar uma fonte. Nesta busca, pedi ajuda aos meus amigos e inclusive à minha psicóloga. E foi esse último recurso que me indicou o professor Anchieta. Ao ouvir sobre a história e trajetória dele, percebi que poderia render uma boa entrevista. Além disso, achei muito interessante a forma como ele conseguiu unir a luta racial com a atividade física. Isto me tocou porque eu pude perceber que o trabalho dele trazia uma questão humana muito forte.

Anchieta se mostrou muito solícito e disposto a colaborar desde o nosso primeiro contato. Gravamos a entrevista no dia seguinte, no bar da academia onde ele trabalha. Durante os 40 minutos de entrevista, procurei manter um clima de uma conversa simples, que pudesse colaborar para que ele se sentisse confortável comigo e ele foi bastante amigável também.

Para mim, a experiência foi bastante agregadora. A necessidade da entrevista ser gravada também foi uma coisa importante, pois me proporcionou identificar alguns erros bobos que cometo durante a entrevista e como eles afetam o entrevistado. Por exemplo, em alguns momentos eu fiz perguntas com um tom de voz muito baixo, em outra situação eu prestei muita atenção no gravador. Mas, de forma geral, acredito que consegui me sair bem e atingir tanto o objetivo proposto, como o objetivo que eu indiquei para mim mesma: conversar de forma simples e descontraída, sem perder o foco no tema.

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