Heróis da periferia

Kizzy Morais
Cidades e Esportes
Published in
12 min readJun 23, 2018
Evento em comemoração à Páscoa de 2018 realizado pela ONG Renascer da Esperança para os jovens do bairro Restinga, extremo sul de Porto Alegre - Foto: Kizzy Morais

O bairro Restinga, localizado na zona sul da capital, não esconde sua árdua batalha por uma comunidade melhor. Com projetos e iniciativas pessoais, os moradores da periferia procuram fazer a diferença diariamente em suas próprias vidas. Até um canal comunitário foi criado, a TV Restinga, para lutar por qualidade de vida e dar voz ao povo, que há tanto tempo sofria calado.

Por Andreza Ferraz, Brunna Oliveira e Kizzy Morais

— A gente bota o pé no barro e esgoto literalmente!

— Como assim, nos explica melhor.

— Esses dias uma senhora nos chamou pois ela mora num beco e o esgoto estava com problema e escorria. Teve que improvisar uma ponte para entrar em casa, com madeiras. Ela ligou pra prefeitura e nada aconteceu. Então eu fui até lá, tirei foto e mostrei o pé na merda. Fiz um vídeo, ela reclamou junto e, por uma feliz “coincidência”, o DEP e o DMAE foram lá e arrumaram.

Moradora do bairro Restinga que há mais de 14 dias estava com o esgoto a céu aberto em frente a sua casa faz denúncia com a ajuda de Márcio Figueira da TV Restinga. / Vídeo: TV Restinga

Esse diálogo é o que inicia nossa entrevista com o fundador da TV Restinga, o designer gráfico Márcio Figueira, 38 anos. Ele nos recebe em seu escritório improvisado em um dos cômodos de sua casa. Dois computadores, alguns artigos de sua empresa de produtos personalizados, um sofá antigo e muitas risadas configuram seu ambiente de trabalho.

Márcio Figueira mostra com orgulho a camiseta desenvolvida por sua empresa com a frase “Cria da Restinga” - Crédito: Brunna Oliveira

A TV Restinga hoje nem de longe lembra como tudo começou. Em 2010, Márcio e dois amigos começaram a produzir vídeos de feiras automobilísticas da capital. O material era divulgado em seu canal no Youtube e transmitido em um programa da TV Urbana aos finais de semana, mas isso não durou muito.

Com o fim do programa, os amigos tiveram a ideia de criar um projeto social dentro de uma das maiores periferias da capital, a Restinga. Segundo Márcio, o intuito era mostrar o lado bom do bairro. Para entender melhor, precisamos voltar no tempo e conhecer sua história.

Nos anos 60, a implantação do programa habitacional “Remover para promover” feita pela Prefeitura de Porto Alegre deu origem ao bairro Restinga. Ele retirou pessoas de suas moradias da região da orla do Guaíba e entorno e os realocou em regiões extremas da capital. “Aqui era um lugar plano e sem infraestrutura nenhuma. Não tinha transporte, não tinha escola para todas as crianças, não tinha creche e nem emprego. O povo foi crescendo com a sua garra”, diz Márcio Figueira, da TV Restinga.

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo IBGE, após meio século a comunidade localizada na zona sul de Porto Alegre já registrava 60.729 habitantes, o que representa 4,31% da população da capital gaúcha, segundo dados do ObservaPOA.

E para Márcio, hoje, quem está do outro lado enxerga a Restinga como o berço da marginalidade. “Os veículos de comunicação sempre mostraram o lado negativo porque é o que vende. É o que dá Ibope. O que dá clic hoje é o sensacionalismo, é a morte”. Na intenção de reverter isso, de forma despretensiosa a TV Restinga nasceu, entre um desfile de carnaval e outro, o projeto passou a ser referência nacional.

Usada também como um abre alas para discussões sobre a segurança, Márcio faz questão de conhecer e compreender o caminho feito pelo jovem que foi assassinado e por aquele que cometeu o crime. “Nós queremos debater o porque chegou a esse ponto. Porque a juventude — em sua grande maioria negra - dos bairros de periferia está morrendo. Por falta de incentivo em políticas públicas na área cultural ou assistencial. A questão da saúde, da falta de professores nas escolas. Tudo isso gera a criminalidade.”

Assim como a história do esgoto a céu aberto consertado após a denúncia pelas redes sociais, existem outras felizes coincidências como essa. O designer nos contou que normalmente os moradores enviam demandas à prefeitura e acabam sendo esquecidas, se tornando apenas mais um protocolo em meio a tantos.

É nessa hora que o canal de comunicação reivindica seus direitos e cobra uma solução. “Nós vamos pra cima, mobilizamos, mandamos twitter pro prefeito e os caras acabam tendo que dar uma resposta. E se não me responder eu vou gritar alto. Então eles sabem que sempre que a gente reivindica a gente consegue”, afirma Márcio.

“Somos moradores, minhas filhas estudam aqui, usamos o posto da Restinga, usamos o serviço daqui. Quando tem algo que prejudica o serviço, também nos prejudica, fazemos por nós e pela comunidade”, nos disse o pai, que vive no bairro há 38 anos. Para Márcio Figueira apenas reclamar e aceitar situações ruins não mudam nada. A bandeira de luta que a TV Restinga levanta hoje é em conjunto com todos os cidadãos que lá vivem com a esperança de um futuro melhor para o bairro.

A luta pela moradia é mais uma das batalhas que o canal carrega em sua trajetória. Em 2016 Márcio fez um documentário sobre a ocupação Novo Horizonte, área verde da Restinga. As filmagens mostraram pessoas vivendo em extrema pobreza. Casas com condições para no máximo três pessoas acolhiam muitas vezes até nove. Mais de mil moradores se abasteciam de água em uma única torneira.

Casas com condições para no máximo três pessoas acolhem em média nove moradores - Ilustração: Kizzy Morais

Além de viver essas situações, os moradores ainda corriam o risco de serem despejados. A prefeitura estava com uma ação de reintegração de posse e o objetivo do documentário era mostrar a realidade e todas as histórias das pessoas que moram lá. Atualmente a ocupação formou uma cooperativa de moradores e estão tentando ter a posse o direito de estar naquele local.

Orgulhoso sobre todas as conquistas do canal, ele não mede limites para ajudar a comunidade. Decidido a diminuir o índice de violência entre os jovens começou a oferecer oficinas de comunicação em escolas e ONGs. Ensinando técnicas de fotografia e gravação, mostra aos jovens o poder que eles tem em suas mãos para melhorar o bairro.

A ONG Renascer da Esperança, localizada no próprio bairro Restinga, também conta com a TV. “Se pudermos usar uma ferramenta a nosso favor e a favor da comunidade que mora aqui, então vamos usar. A gente pode tentar contribuir com a comunidade de alguma forma. As pessoas reconhecem esse trabalho que a gente faz”, diz Márcio.

O renascimento da esperança

Fachada da ONG Renascer da Esperança, localizada no bairro Restinga. / Crédito: Arquivo pessoal

Criado a partir da própria história de vida da gari Rozeli da Silva, o Renascer da Esperança nasceu de mãe solteira, e engatinhou por alguns anos. Em meados de 1995, quando começou a trabalhar no Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), ela se deparou com o preconceito e o rótulo de marginal dos jovens oriundos do bairro. Cansada disso, sabia que um projeto social os ajudaria.

Já com a ideia em mente e após ter um sonho com Lealci Kelper, amiga e assistente social do DMLU, a certeza que o projeto deveria ser gerado veio a tona. Analfabeta, a gari não mediu esforços para correr atrás do tempo perdido. Aprendeu a ler em um estudo bíblico e se viu renovada.“Tirei mandamentos de um provérbio e aprendi a não culpar ninguém pelo que passei, vivo o presente!”.

Três anos depois a Renascer estava de pé, em uma associação abandonada na Restinga, que logo em seguida foi invadida por populares. Depois de muita luta, o reconhecimento veio. Sua biografia “Guerrilheira do Amor” foi escrita por Lealci e os direitos autorais vendidos para ajudar na construção da ONG.

A entidade que completa 22 anos de existência em 2018 acolhe atualmente mais de 400 jovens em suas duas unidades, oferecendo educação, saúde e alimentação de forma digna e responsável. O sistema da ONG é bem simples. O objetivo é que ela seja uma extensão da escola, por isso o jovem precisa estar obrigatoriamente matriculado e ter frequência de 75% nas aulas para poder participar do projeto no seu turno inverso.

O trabalho é realizado em equipe. Já que alguns pais trabalham em período integral, e outros se encontram no mundo das drogas ou em penitenciárias. Muitos jovens acabam tendo o Renascer como primeira casa, mostrando que o lar de verdade é o lugar onde são acolhidos, amados e respeitados.

Aprender para ensinar

‘’Me sinto muito parte disso. Pelo fato de já ter vivido essa dificuldade, visto esses caminhos. Isso gera uma empatia. Quando criança eu não tinha um espaço igual a esse que nem eles. Vi muitos amigos crescendo, indo para outros lados. Então a gente quer passar esse tipo de situações da maneira mais tranquila possível, de um jeito objetivo”, informa o professor Ernesto Santos, de 28 anos, morador e professor do serviço de convivência e fortalecimento de vínculo da Restinga.

“A gente sabe a dificuldade de cada aluno, o histórico de problemas familiares. Aí pensamos num jeito de acolher da melhor maneira possível, para eles se sentirem sempre seguros de qualquer coisa aqui dentro, mesmo sendo muitos alunos por turno.”

Partindo do princípio que dar o que você nunca recebeu é quase impossível, o professor conta uma história que lhe serviu como combustível para continuar atuando na área:

“O Erick, 6 anos, a gente sente que é maltratado em casa, a gente luta pelo conselho tutelar, porque ele não está indo às aulas, tentamos fazer este acompanhamento. Ao mesmo tempo é bem difícil porque a família é vulnerável, existindo casos de agressões. Isso é um trabalho a longo prazo”.

O menino que sofreu um acidente de trânsito e foi apelidado carinhosamente de borboletinha, pediu para Ernesto ir visitá-lo, pois estava com saudades. O professor relata que são momentos como este que fazem valer a pena a sua luta.

Para Ernesto o vínculo é conquistado aos poucos para gerar a mudança da realidade. “Eu não estou aqui para ganhar o meu dinheiro e deu. Isso nunca vai acontecer aqui dentro. Pelo fato de que nenhuma pessoa consegue conquistar a criançada e fazer a diferença na vida deles se não for criado um laço verdadeiro.’’

‘’Pai, eu não aguento mais, eu tô morrendo!’

Pais de Arthur Brito registram cada momento do menino no hospital em Brasília (DF) — Crédito: Arquivo pessoal

Uma doença fez nascer uma onda de esperança no bairro Restinga. “Nunca imaginamos uma Leucemia, nem sabíamos que isso poderia afetar a gente’’, relembra o pai de Arthur Brito. Há quatro anos o filho começou a se sentir cansado. Febre e manchas roxas começaram a surgir pelo corpo. A médica pediatra afirmou que era apenas uma gripe.

Os pais, Aline e Douglas Brito, insistiram dizendo que algo mais grave poderia estar acontecendo com o filho. Com muita insistência eles conseguiram a requisição para realizar o exame. A doutora os indicou o Hospital Santo Antônio, dizendo que lá eles resolveriam qualquer problema que pudesse surgir. Os pais desconfiaram.

No mesmo dia o menino fez uma triagem para verificar o seu estado de saúde. Dentro do carro, já muito cansado de esperar a resposta do exame, a família viu que estava acontecendo uma confusão no Hospital com alguns pacientes e a Brigada Militar. Foi neste momento que a preocupação e amor de pai falaram mais alto.

Arthur olhou para Douglas e disse: “Pai, eu não aguento mais, eu tô morrendo’’. Desesperado, pediu socorro aos policiais, dizendo que o seu filho não estava mais aguentando de dor, e poderia morrer. Os policiais não se comoveram. O pai foi preso por desacato à autoridade. Mas felizmente, com toda aquela confusão, os médicos atenderam rapidamente o menino.

A incerteza do diagnóstico

Nada feliz foi à notícia que a médica trará horas depois: “Olha, o filho de vocês está com Leucemia, mas não sabemos qual tipo é’’. Para Douglas, essa é a pior notícia que um pai e uma mãe podem receber. E por trás dessa vinha mais novidades negativas: Arthur não sairá do Hospital para realizar o tratamento desde aquele instante. Dividindo o quarto com mais três crianças, com diferentes doenças, ele ficou mais de trinta dias fazendo quimioterapias ao lado da mãe, que não o deixou sozinho em nenhum momento.

No dia 10 de junho de 2017 o Arthur teve alta, mas teria que voltar semanalmente, três vezes ao dia, para dar continuidade ao tratamento que é realizado por etapas. Feito isso por um ano, ele ganhou a “cura’’. Felicidade. Vida nova. Voltou a fazer tudo que uma criança de sete anos faz, principalmente a frequentar a escola, que tanto sentia falta.

Meses correndo tudo bem, “o menino da cura’’ teve um problema no testículo, e precisou voltar ao Hospital. E tudo que a família temia que acontecesse, aconteceu. A Leucemia voltou com 60%, muito mais forte do que a primeira vez. E o pesadelo se repete: internação, tratamento, remédios, abandono a escola, distanciamento dos familiares e amiguinhos do bairro.

Campanha para doação de medula

Aline e Douglas entraram para o Banco de Dados de Doadores de Medula Óssea do Hospital de Clínicas com o objetivo de achar a cura, novamente, para o filho. Iniciaram uma campanha em todos os meios de comunicação possível, mas no quarto mês ela já estava desesperançosa. Muitos amigos se prontificaram a doar, e nada dava certo, o telefone não tocava trazendo boas notícias.

Num dia comum de consulta, o médico responsável pelo Banco de Dados informou que o filho do casal ganhou, em duas semanas, três doadores cem por cento compatíveis. “A gente quase morreu ali na hora chorando de alegria, de emoção’’, ele explica sorrindo.

Feito o procedimento preparatório para realizar o transplante, Arthur ficou em décimo oitavo lugar na fila de espera. Com pressa de viver, a família entrou com uma ação judicial contra os dois hospitais, e foi aberta uma exceção ao Arthur, onde cinco crianças estariam indo para Brasília realizar o tratamento com tudo pago. Ele teria a opção de ser o sexto a embarcar ou continuar na fila que parece ser eterna para quem precisa ser curado logo.

Foi para Brasília já de cadeira de rodas com a mãe. Segundo o pai, a assistente social que entrou em contato com a família, dizendo que lá ela os buscaria no aeroporto e teriam moradia durante o tratamento, nunca apareceu. O Estado pagou apenas as passagens aéreas. Ao chegar em Brasília o desespero tomou conta da família, pois a coisa mais valiosa que eles carregavam era a fé da cura… O dinheiro era muito pouco.

Acharam para alugar um kitnet que tivesse cozinha adequada para as refeições do Arthur, que só pode comer o que é preparado na hora, sem repetições. Foram para o hospital conhecer a equipe médica que faria o tratamento. Realizados alguns exames durante quatro dias, a família voltou para Porto Alegre. Uma única e indesejada quimioterapia ainda precisava ser concluída no Hospital Santa Casa, e foi.

A solidariedade do bairro Restinga

Enfim chegou o dia de Brasília virar o lar da família Brito. Mas como sobreviver numa cidade sem condições financeiras? Douglas, morador da Restinga, pediu ajuda para Márcio, criador da TV Restinga, abraçar a incansável batalha de Arthur.

Foi criada uma vaquinha online, onde cada um contribui com o que pode. Até o momento a família arrecadou R$ 24.217,00, quase metade do objetivo que é de R$ 50 mil. Maior que os gatos com a doença é a felicidade dos três — Aline, Douglas e Arthur — ao concluir o transplante com sucesso, no dia 20 de março de 2018 no Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF).

Hoje o menino sabe que está curado, mas precisa tomar cuidado com a fragilidade e silêncio da Leucemia. Sabe também que passou a metade da infância lutando contra uma doença forte e traiçoeira, dos sete aos onze anos. Ainda está morando com a mãe em Brasília, pois o tratamento pós-cirurgia é feito duas vezes por dia durante toda semana.

O pai trabalha em Porto Alegre para mandar dinheiro aos dois para se manterem diariamente, e não cria possibilidade de frustração na chegada do filho: ‘’Ele perdeu uma boa parte da infância, então seria como recuperar algo, dar uma viajada. Ir aos lugares que ele adora em Nova Petrópolis. Mas eu sei que na volta ele terá muitas restrições (…) Eu procuro nem pensar, são tantas coisas. Mas eu sei que o Arthur não vai poder fazer as coisas que a gente tem ideia de fazer, de aproveitar’’.

Entre algumas incertezas que carrega dentro de si, o pai que sofreu tanto quanto o filho nessa maré de tristezas, deseja criar uma ONG para ajudar quem precisa, deseja inverter os papéis nas futuras histórias de solidariedade a serem vividas e contadas na Restinga. Eles, que contaram com tantas pessoas para que o final dessa história fosse feliz — e está sendo — já sonham, com gratidão, em criar uma interminável onda de esperança.

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

--

--