O valor da saúde no prato

Giovanna Kopczynski
Cidades e Esportes
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12 min readJun 26, 2018

As reais diferenças entre os modelos de agricultura, os malefícios do consumo de alimentos com agrotóxicos e o mercado agroecológico em Porto Alegre.

Alimentos orgânicos oferecidos na feira agroecológica da rua José Bonifácio, no bairro Bom Fim em Porto Alegre (RS) — Crédito: Giovanna K Folchini

Por Adriana Silveira, Giovanna K. Folchini e Guilherme Escouto

No Brasil, um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, apenas cerca de 15% da população urbana come regularmente produtos sem veneno, segundo pesquisa do Market Analysis realizada em 2017 para o Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável (Organis). Mesmo na capital do estado onde mais se consome orgânicos, Porto Alegre, nem todos tem acesso.

Preocupada com a saúde, a consumidora Lisiane Tamara Peixoto, de 34 anos, aumentou sua vigilância com a alimentação. “Hoje a gente tem mais acesso a esse tipo de informação. E cada vez está pior a questão de doenças, de todo esse desenvolvimento através de uma coisa tão ruim, que é pensado só no lucro, não é pensado no ser humano e nos animais”.

Lisiane relata, enquanto se desloca para um restaurante vegano em Porto Alegre, que sente melhor o sabor nos produtos orgânicos, embora não os consuma assiduamente: “Eu precisaria ir em mais feiras, e esse tipo de evento também não ocorre na região onde moro. E acaba que eu não tenho muito tempo e acabo comprando em supermercado, infelizmente”.

O custo da alimentação orgânica é apontado por Pedro Junior de Souza, de 29 anos. “O ideal seria que os locais que eu frequento dispusessem de alimentos preparados somente com orgânicos. Outra alternativa seria comprar por encomenda minha alimentação pronta, o que seria ainda mais caro pra mim hoje” , diz.

Comparando preços

Os produtos orgânicos vendidos em Porto Alegre custam mais caros do que os produzidos com agrotóxicos? Para descobrir, uma tabela comparativa de preços foi obtida com o assessor técnico Alexandre Hüning, da Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) realizada todos os sábados no rua José Bonifácio, bairro Bom Fim. A lista original de preços do dia 14 de junho (foto) tem 88 itens com preços dos alimentos convencionais da Companhia Zaffari, da Central de Abastecimento (Ceasa) e da própria feira.

Tabela comparativa obtida pela equipe de reportagem

A relação é feita a cada quinze dias para controle de preços de mercado e serve como base para os preços praticados na FAE, baseados também nas demandas de produção. A tabela confere com os números apresentados pelo Ceasa referente ao dia em que os dados foram coletados, assim como os produtos da Feira Ecológica foram ofertados com os respectivos valores, de acordo com a checagem da equipe de reportagem.

Com o levantamento realizado pela Feira de Agricultores Ecologistas, foi possível saber a diferença dos preços atualmente, entre os modelos de agricultura em Porto Alegre. A tabela oferece um comparativo completo entre os produtos vendidos em Porto Alegre.

Dos 88 itens citados na tabela original com preços do dia 14 de junho, os 42 listados acima estavam com as três colunas preenchidas e com unidades comparáveis. Dos 42 comparados pela reportagem, 21 produtos orgânicos vendidos na feira ecológica estavam com preço maior do que os vendidos no principal supermercado da capital gaúcha, 16 tinham preço menor e cinco estavam com mesmo preço, o que desmente a ideia de que orgânicos são sempre mais caros. Isso não é verdade.

No comparativo entre o Zaffari e a FAE, aipo salsão, alface, abóbora itália, acelga, banana catarina, bergamota pokan, caqui mole, couve chinesa, feijão preto, figo maduro, limão taiti, moranguinho, radite e a rúcula são ofertados por um preço mais baixo na feira ecológica do Bom Fim, podendo o figo maduro e o limão serem até R$ 4 mais baratos. O alho destoa, pois é muito mais caro (diferença de R$ 18) na feira. A maioria dos produtos comparados com valor mais alto tem uma diferença entre R$ 0,20 e R$ 3.

Valor nutritivo

Para o atual presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), biólogo Francisco Milanez, alguns produtos orgânicos podem até ser 30% mais caros, porém esse percentual significa muito mais. “As pessoas dizem que é caro, mas não é. O valor é maior, mas o preço pelo alimento é menor considerando que alimenta muito mais’’, explicou o ambientalista que atualmente faz pesquisa de doutorado Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Milanez também diz que não basta só comer um alimento equilibrado e sem veneno. “É preciso se alimentar de algo que tenha essa qualidade. O mais importante é o valor nutritivo que vai compor a nossa saúde”, explica. Ele conta que é importante conhecer e reconhecer o esforço da pessoa que gera o alimento. “Elas perdem a essência de olhar nos olhos de quem produz a própria saúde dela, de quem está se dedicando, que está passando trabalho para produzir algo saudável. E essa relação é sagrada, é algo que não se encontra em supermercado”, avalia.

De acordo com Milanez, a ignorância da população em relação ao assunto não é culpa dela. “As pessoas priorizam o preço e não a qualidade, porque desconhecem a diferença. Acredito que somando a educação com a comunicação as pessoas saberiam”, argumentou. Ele lamenta que nem todos tenham conhecimento de que em época de safra o orgânico é barato.

“Na alta produção sempre é um bom preço, porque vem muito produto. Então toda a safra convencional e orgânica quando está em alta o preço fica baixo. O alimento orgânico é melhor comer e comprar quando é de época. Quando está fora, o preço eleva consideravelmente, porque já não tem mais a produção. O produto virá de outro lugar”, explicou Milanez.

O presidente da Agapan evidencia os problemas que o uso do veneno faz no ser humano: “Os agrotóxicos, na sua maioria, são neurotóxicos. E um dos responsáveis e, infelizmente, mais vendido e consumido no mundo, é o glifosato, um produto que mata ervas daninhas, que produz mais de 25 doenças, tais como autismo e Alzheimer’’.

Milanez disse ainda que as empresas, mesmo sabendo do mal que causam, visam o lucro. “Sendo bem honesto, existe um berço comum que são das indústrias químicas, onde estão as farmacêuticas e as de agrotóxicos, que na verdade são as mesmas. Há empresas que produzem agrotóxicos e remédios, então sendo bem simples, o negócio de uma indústria é ganhar dinheiro e lucrar’’, afirma. Para ele, a única forma de alimentar a população é com a produção orgânica, pois cresce a produtividade e possibilita que o solo fique cada vez melhor, ao contrário da produção química.

Saúde em primeiro lugar

A nutricionista Ana Beatriz Almeida de Oliveira, mestre e doutora em Microbiologia de Ambientes com Ênfase em Alimentos, argumenta que a saúde deve sempre estar em primeiro lugar. “Há várias evidências de que os agrotóxicos podem ser cancerígenos. Podem causar também alguma alergia ou outra coisa. Então é de proteção à saúde. A primeira coisa seria ter alimentos sem essas substâncias”, argumentou. A respeito dos males do uso dos agrotóxicos na atualidade, acrescenta que o ideal seria que os alimentos orgânicos fossem produzidos mais perto do pontos de comercialização. “O resultado seria a manutenção de nutrientes, que podem se perder em longos tempos de deslocamento”, comparou.

Em revisão bibliográfica publicada em outubro do ano passado, Amanda Larissa da Cruz , Patrícia Aguiar dos Santos e Joana Zanotti concluíram que “as pesquisas sugerem que existe correlação positiva entre o uso desenfreado de agrotóxicos nas plantações por meio dos produtos rurais e o desenvolvimento de patologias, principalmente o câncer”.

De acordo com as diretrizes para a vigilância do câncer relacionado ao trabalho Ministério da Saúde, publicadas em 2012, “o grande número de estudos que apontam o potencial cancerígeno dos agrotóxicos e a ocorrência de outros agravos à saúde humana relacionados a esses produtos colocam o uso extensivo desses químicos no centro das preocupações da Saúde Pública. A complexidade das medidas de prevenção que urgem ser discutidas e adotadas no país resultam de sua utilização de forma descontrolada, a associação entre diversos tipos e marcas de agrotóxicos e a naturalização de sua manipulação”.

Segundo o Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, publicado em 2016, a incidência de intoxicações por 100 mil habitantes está diretamente relacionada com o aumento da comercialização de agrotóxicos (veja gráfico).

Crédito: Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (2016)

A agricultura orgânica não utiliza esses venenos da agricultura convencional. Esse sistema visa produzir um alimento sadio para o consumidor, não colocando em risco a saúde humana e o meio ambiente e também proporciona uma produção social e economicamente sustentável. Os agricultores fazem uso de substâncias naturais para eliminar pragas, recorrem ao uso de adubo orgânico, sistemas de rotação de culturas e cobertura com matéria morta.

O mestre e doutor em Ciência do Solo pela UFRGS Valcir Carpenedo, que vende mudas na Feira dos Agricultores Ecologistas (Fae) do Bom Fim, ressaltou que um solo saudável é equilibrado, com a nutrição adequada. Se a planta estiver adaptada àquelas condições ecológicas, será uma planta saudável. “Se usa o veneno é porque as plantas estão desequilibradas de sua energia vital por algum estresse biótico ou abiótico”, enfatizou.

As mudas criadas para venda ficam em exposição no estande de Valcir Carpenedo na Feira Ecológica — Crédito: Giovanna K Folchini

“Quanto mais se usa veneno, mais vamos ter que usar, pois o modelo de produção com que se faz agricultura no país vai na contramão do que deveria ser. O veneno no solo destrói a vida macro e micro, fundamental para reequilibrar o sistema”, explicou Carpenedo, fazendo uma análise a respeito dos malefícios do uso de agrotóxicos para o ecossistema.

O professor que vende mudas ressalta que “planta sadia não fica doente, ela não precisa de veneno”. Apesar de ser benéfico para a saúde, estes alimentos de produção orgânica são pouco utilizados. Fatores como mão de obra, certificação, insumos orgânicos e principalmente revendedores, interferem na decisão de compra e no bolso do consumidor.

Agricultura industrial

“Garantia de alimento sem riscos químicos, físicos ou biológicos. Em que podemos diferenciar os alimentos orgânicos dos não orgânicos? Uma análise
preliminar nos leva diretamente aos riscos químicos, mas ainda estamos
dependentes das próprias reações do próprio alimento. Riscos físicos, por
exemplo, transporte pode depreciar o produto. Riscos biológicos, larvas de
insetos depreciam e muito as frutas para consumo”, diz o consultor da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Ivo Lessa Silveira Filho, em referência à segurança dos alimentos produzidos em solo gaúcho.

Apesar de não deixar claro ao que se referia, mesmo tendo sido questionado duas vezes, optou por responder da seguinte maneira as perguntas sobre sabor e qualidade dos alimentos da agricultura convencional. “A grande verdade é que precisamos de alimentos para a saúde, para o sabor e para o prazer. O que nos atende? Alimento para o aumento da perspectiva de vida da população e condições básicas para podermos adquirir e consumir”, frisou. “A realidade é que cada um faz a sua opção. Que bom que possuímos esta oportunidade de escolher”, acrescentou.

Com os agrotóxicos, a saúde humana é afetada de três maneiras: durante a fabricação (os que preparam esses compostos são os primeiros atingidos), aplicação (agricultores lidam diretamente com os venenos) e consumo final. Os riscos são altos e podem acarretar problemas em curto, médio e longo prazo, dependendo da substância ingerida. Segundo pesquisas desenvolvidas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Ministério da Saúde, a intoxicação pode causar problemas neurológicos, como Alzheimer. Em gestantes, podem levar ao aborto e à má formação congênita.

As intoxicações crônicas, causadas pela exposição contínua ao produto, podem ocasionar problemas graves, como lesões cerebrais, tumores e paralisias. Além das consequências neurológicas, também há a ocorrência de dificuldades respiratórias, cólicas abdominais, tonturas, náuseas, vômitos, tremores, garganta e olhos, irritações na pele, nariz, convulsões, desmaios, coma e até a morte.

A travessia de Juarez, o agricultor que viveu os dois lados da moeda

Em meio à movimentada Feira dos Agricultores Ecologistas da rua José Bonifácio, bairro Bom Fim, em Porto Alegre, está Juarez Pereira, conhecido lá como Seu Juarez. Um homem simples, de 62 anos, que produz arroz orgânico de vários tipos. É difícil falar com ele numa manhã de sábado, isso porque a procura pelo arroz é grande. Porém mesmo com o grande movimento, ele encontra tempo para dividir suas experiências.

Juarez Pereira atende clientes e amigos em sua banca todos os sábados no Bom Fim em Porto Alegre (RS) — Crédito: Giovanna K Folchini

Apesar do pouco estudo (estudou até a 4ª série do Ensino Fundamental), Juarez nunca deixou de aprender. Conhecido por ter vivido os dois lados da moeda do plantio de alimentos: foi agricultor convencional, com uso de agrotóxicos, e hoje agro-ecologista. Natural da Barra do Ribeiro, teve contato com a agricultura desde cedo, por meio dos pais que também eram agricultores. Sua história como agricultor começou quando tinha entre 17 e 18 anos, na década de 70, quando a Revolução Verde começou a ser implantada na sua região.

Trabalhou por 20 anos nesse modelo, até perceber que estava com problemas de saúde e financeiros. Foi nesse momento que percebeu que algo estava errado. Desde o início, sua saúde foi prejudicada, logo no primeiro ano que usou agrotóxico teve uma intoxicação por ter manuseado o produto sem os cuidados necessários. Na época, ele não deu muita atenção. Era jovem e se recuperou sem sequelas. “Chegava a ser glamouroso contar que tinha sido intoxicado com agrotóxico, por conta do conceito que se dava para o uso dessa tecnologia”.

Mas com o passar do anos adquiriu uma gastrite aguda, agravada pelo estresse, porque tinha de produzir. Dependia do clima e isso o fazia se sentir pressionado. Os reflexos vieram na saúde. A partir disso, o desejo por mudança só cresceu dentro dele.

“Queria mudar, queria parar de fazer aquilo, mas não queria parar de plantar. Então a conclusão foi que eu estava trabalhando muito, deteriorando minha saúde e isso não estava dando pra nada, nem pra recuperar os equipamentos que já não eram meus. Então eu pensei, se eu parar de usar agrotóxicos, adubo, veneno e passar a fazer agricultura ecológica, e eu colher só pro meu consumo, está ótimo, porque vou trabalhar menos, estar com menor contato com o veneno e vou ter o tanto que eu pretendo, então passei a fazer isso, uma agricultura sem nada que a indústria me disponibiliza”, relata.

O início dessa nova fase foi bastante difícil. Passou a produzir 20% do que produzia antes. Mas isso não o abateu pois não estava focado mais na comercialização. Naquele momento tudo o que viesse e não fosse dar despesas era bem-vindo. E com essa perspectiva, em aproximadamente quatro anos, o cultivo sem agrotóxicos foi crescendo e se consolidando. Juarez se vê agora em um novo período de crescimento. “Eu estava novamente no processo de reconstrução cultural, de resgate e regeneração do solo da terra onde eu plantava, e percebendo, pelo terceiro, quarto ano, a construção de canais de comercialização”, explicou.

Outro processo de crescimento acontecia com Juarez. Ele, que vivia preocupado se a colheita seria o suficiente, agora estava tendo tempo de resgate e aprendizado sobre a profissão: “Essas constatações são muito fantásticas para uma pessoa que está decidida, que não está com o foco no dinheiro. Então, em cima dessa base de entendimento, tudo que vem é reverenciado, é curtido, é valorizado e, acima de tudo, a minha evolução como ser humano foi perceptível nesse momento, e então essa é a conjuntura daquele momento de decisão de mudar e de início de mudança”.

Hoje, produtor de arroz orgânico há mais de 20 anos, diz ter rendimentos melhores que os do passado. As experiências trouxeram um entendimento mais amplo de como é a vida com e sem agrotóxicos. “A sociedade inteira vive com medo, e o agricultor que produz com o veneno e que está exposto a esse mercado, também vive com medo. Aí o alimento que ele colhe também traz medo. Desenvolve o medo porque é a vibração dos campos de produção. Pra começar é uma relação de guerra: produzir adubo com veneno, a gente está a todo momento dizendo eu mato”, ressaltou.

“Como a gente sabe que não existe atitude que não nos transforme, a pessoa vai se transformando com isso e aí tudo é disputa, tudo é guerra, tudo é coisa bruta e onde fica o ser humano? Não fica! Não vive, não prospera, não progride, não evolui!”, constata.

Quem anda pela feira ecológica percebe que ali há espaço para afeto entre quem produz e quem consome e a preocupação com qualidade de vida é prioridade nos dois lados da banca.

Consumidores escolhem produtos em frente aos agricultores durante a Feira Ecológica — Crédito: Giovanna K Folchini

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Zona Sul. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte

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