2018/01 “Toda porta de entrada para a capoeira é importante”

Thainah Mazin
Cidades e Esportes
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13 min readJun 23, 2018
Espaço cedido pelo Colégio Estadual Érico Veríssimo em Alvorada, onde Daniel (de amarelo), realiza as aulas de capoeira. Crédito: Thainah Mazin

Daniel Costa vive há 25 anos a expressão cultural herdada do período escravagista

Por Thainah Mazin

A Roda de Capoeira foi reconhecida em 2014, pela Unesco, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Contudo por um período da história ela foi proibida, por lei, no Brasil. Neste momento, surgem os nomes fictícios para que os capoeiristas pudessem evitar problemas com a polícia. Apesar de não ser mais necessário para essa finalidade, o costume dos apelidos foi mantido. Pastel, assim é conhecido na comunidade capoeira, o contramestre, Daniel Costa. Aos 40 anos, o Contramestre Pastel afirma “Eu vivo exclusivamente da capoeira e para capoeira”, e assim ele conta o caminho percorrido desde que se encantou por essa expressão cultural brasileira, hoje, disseminada pelo mundo.

Como foi teu primeiro contato com a capoeira?

Contramestre Pastel em imagem capturada do vídeo da entrevista

Aconteceu aos 15 anos. Trabalhava no centro de Porto Alegre, e saindo do trabalho avistei uma roda de capoeira, em frente à Prefeitura. E aquilo me encantou, e eu perdi tempo ali, me deu uma vontade de entrar na roda, mesmo sem saber nada, mas algo me convidava. Eu já praticava taekwondo, e aí um dia, na academia onde eu praticava, teve uma aula inaugural de capoeira. Fiz essa primeira aula, sem pretensão nenhuma, não imaginei que fosse dar continuidade, fiz mais por curiosidade, em função dessa experiência da roda, nunca mais parei. Hoje a capoeira é minha profissão, hoje eu vivo dela, mas não tive essa pretensão lá no início.

E há quanto tempo praticavas o Taekwondo?

Já fazia em torno de dois, três anos, o taekwondo. Eu era um atleta, vamos dizer, de destaque, tinha um potencial. Tanto é que, quando saí dessa modalidade, e fui para capoeira, o meu mestre lá (no taekwondo), ficou bem chateado, mas a capoeira me encantou desde o primeiro dia, e é uma paixão que todos os dias me encanta.

A capoeira é uma dança, uma luta, ou o que é de fato?

A capoeira na verdade ela é ambígua, é tudo isso. Ela nasce como luta, com o papel de libertação dos escravos. Como eles não podiam ter armas, então se valiam da bagagem cultural de seu país de origem, e aqui, para lutar contra o sistema opressor da época, ele se vale das suas experiências. Para poder praticar essa capoeira, e disfarçar dentro da senzala, o escravo incorpora alguns elementos, como os cânticos, as palmas e os tambores. O nome capoeira, vem também de onde se dava esta pratica. Quando o negro fugia, ele se embrenhava no meio do mato, para poder se esconder, mas quando havia o embate, tinha que ser no mato ralo. E esse mato ralo, se chama capoeira, que vem do tupi-guarani.

E a capoeira, como falastes, é uma forma de resistência. A roda de capoeira, foi reconhecida em 2014 pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Ela também é uma forma de inclusão social?

Total. Mas a questão do título é fundamental também comentar, pois poucas coisas têm esse título, e a capoeira é uma delas. A roda de capoeira foi reconhecida, assim como o ofício de mestre. A verdade é que nós capoeiristas, não sabemos nem fazer uso disso, a gente tem esse título, tem essa importância, e as pessoas, não sabem nem para que serve. E a capoeira sim, é uma forma de inclusão total. E tem vários exemplos dentro da capoeira de pessoas que começaram sem pretensão também. Saíram da periferia, e hoje estão ganhando o mundo, são cidadãos do mundo, viajando para o exterior, tudo isso, através da capoeira. Então ela inclui totalmente socialmente. E na parte educacional também.

E a capoeira como esporte?

Também é importante, o que não podemos é desvincular, e abordar a capoeira somente como esporte. Senão acabamos simplificando tudo o que ela representa, e é justamente a parte da resistência que se perde. Toda porta de entrada para a capoeira é importante. Se a pessoa vai entrar na capoeira para fazer os esportes e competir, pois, existem algumas competições; ou se ela vai entrar na capoeira através da musicalidade, porque ela gosta das músicas ou quer aprender a tocar o berimbau, ótimo. Porém, ali dentro, ela tem que conhecer o todo da capoeira, ser completa. Tem a musicalidade, a parte corporal, a teatral, as manifestações culturais e a luta, então tudo isso tem que estar inserido.

Há alguma preocupação na comunidade capoeira em relação a se tornar um esporte olímpico?

Têm pessoas que defendem, acreditando que dará visibilidade, porque a capoeira fica sempre à margem dos outros esportes. No entanto, existe uma preocupação, que é minha também. Que é em relação a isso, ao trabalho da parte esportiva, principalmente olímpica, de o aluno que me procurar na academia, não querer, talvez, saber a história da capoeira, porque não é isso que vai dar ranking para ele e medalha. Então se tiver somente a parte técnica, a capoeira tende a se perder. Eu acho válido, importante, e não estou dizendo que não deve ter, mas me preocupa, como isso vai ser abordado e trabalhado. Existe, não sei se já foi aprovado, mas estava em tramite uma lei, da bolsa atleta, que seria para os capoeiristas também. Agora, quem iria regulamentar, as federações ou as ligas? Eu acredito na capoeira na sua plenitude. A parte cultural, social, educacional, e também esportiva. Acho que quando a gente começa a desmembrar a capoeira, é onde começamos a enfraquecer o movimento.

E nessa questão social, quais projetos tu já ministraste ou participaste?

Já trabalhei em muitos projetos do governo federal e governo estadual, como Mais Educação, Escola Aberta, Mais Cultura, e outros, e também em alguns particulares. Começa assim que a gente vê a oportunidade, e acha importante trabalhar dentro daquela comunidade. Lá na minha casa, por exemplo, antes de ter o meu espaço de capoeira, quando sai da academia onde lecionava, não quis mais trabalhar com academia, justamente por causa desse enfoque muito esportivo somente, pois prefiro abordar a capoeira de um aspecto mais cultural. Então, precisava de um espaço que contemplasse isso, e não tinha grana na época. O que eu tinha era boa vontade, e um espaço de 3x4 metros, na frente de casa. E ali começou. Chamei as crianças das escolas próximas, foram aparecendo e quando eu vi lotou. Começou aos pouquinhos, e quando fui ver tinha 50 crianças.

E como tu sustentava isso?

De forma gratuita. De início, eu peguei algumas roupas de capoeira que eu tinha, e distribuí. Não foi suficiente. Comecei a fazer chamadas com os alunos, para quem tivesse alguma roupa de capoeira, que não usasse mais, que eu estava aceitando doações. Assim, uniformizei eles no primeiro momento, com roupas de segunda mão. E aconteceu durante um ano. No final do ano, me organizei financeiramente, conversei como uma pessoa que fazia confecção, expliquei como é que se dava, ela achou interessante o projeto, e também me ajudou. Conseguimos uniformizar na época, 30 crianças, com calça e camiseta. Fizemos um evento, no final do ano, com a presença do nosso mestre, onde eles receberam a graduação.

Quanto tempo durou o projeto?

Quatro anos, lá em casa, a partir 2011 mais ou menos. Hoje não acontece mais, mas o interessante é que muitos desses alunos, que eram crianças na época, sem poder aquisitivo para pagar uma capoeira, hoje eles estão na capoeira. Então existe um papel, de cidadania. Hoje eles podem pagar sua capoeira, comprar seu uniforme, arcar com suas despesas de viagem e de eventos. Também na escola particular de capoeira, tinham bolsas, que eram direcionadas para comunidade.

E esse espaço que estamos aqui, como chegou na tua vida?

Aqui foi muito por acaso. Tem um aluno meu, o Castor, ele dá aula aos sábados aqui, também de forma gratuita, com o projeto da escola. E houve uma necessidade darmos aulas durante a semana. Conversamos com a direção, que prontamente nos cedeu o espaço, e temos aulas, nos três turnos. Duas vezes na semana pela manhã e pela tarde, e 3 vezes a noite. E é aberto à comunidade, aos alunos da escola, e quem quiser fazer capoeira, é só vir participar de forma gratuita.

Falaste de graduação anteriormente, como ela é feita?

São seis graduações infantis e onze adultas. O aluno vai trocando de acordo com seu desenvolvimento. As infantis, claro, que a gente não exige tanta técnica, é muito mais a participação, o desenvolvimento cognitivo do aluno, e o quanto ele vai entendendo da capoeira. Desde os rituais da capoeira, a como se comportar na roda e conhecimento musical. Já com o pessoal adulto, se cobra um pouco mais, como conduta, participação, técnica, volume de jogo, conhecimento histórico, musical, e vai ascendendo dentro das graduações.

Sendo seis as graduações infantis, dentro de qual período é possível concluir todas?

As infantis a gente troca numa média de uma vez por ano. Até porque, a criança é ansiosa, e ela não entende a importância de se permanecer na capoeira e o porquê treinar, então a graduação ela acaba cumprindo uma função pedagógica, sendo a recompensa pelo esforço, pela participação e pelo empenho. Com as adultas, nas iniciais, é possível trocar uma vez por ano também, mas depois conforme vai aumentando a graduação, e a exigência, tem um período maior de troca. Pode ser dois ou três anos, chegando a até mais tempo que isso. Trabalhamos, e acreditamos na proposta da capoeira, para vida, ela não é um curso com um prazo pré-determinado.

E tem a questão das cordas ou seriam cordões?

No nosso caso são cordões, cada escola ou associação de capoeira, tem um sistema de graduação. Nós obedecemos ao da Confederação Brasileira de Capoeira, que segue as cores da bandeira do Brasil. A graduação é um reflexo do desempenho e desenvolvimento. Assim, para quando chegarmos a um local, sabermos como tratar determinado aluno, de acordo com seu nível técnico. Não posso exigir de ti o mesmo que exijo do outro, então no teu cordão vou identificar isso, se é cordão verde, tu é iniciante, aquele é cordão azul, já treina há mais tempo, eu posso exigir mais dele. Porém, o aluno precisa saber que a graduação não é o mais importante. Não se treina pra ser mestre, ser mestre é uma consequência dessas escolhas, e dedicação para com a capoeira.

Como falastes a tua profissão hoje é na capoeira, tua graduação é de contramestre. Qual a próxima etapa?

Eu sou uma graduação antes do mestre, acima de mim tem o meu mestre, mestre Maurão. O que precisa agora, nesse momento, não é mais só a parte técnica, não é só a parte de movimento e corporal. Tenho 40 anos, e quem está na capoeira há muito mais tempo, o corpo tende a não responder da mesma forma que na juventude, então é muito mais o reconhecimento sobre a capoeira. Ninguém forma ninguém, na verdade se reconhece. A partir do trabalho que foi realizado com a capoeira, o legado, os alunos que estão vindo, o trabalho na comunidade, os projetos, e o quanto consegue afetar de forma positiva as pessoas com a capoeira. Então quando tu tens esse reconhecimento, quando as pessoas te veem como mestre, aí só acaba oficializando o que de fato e de direto já deveria ter acontecido.

Poderias falar um pouco sobre os tipos de capoeira?

Na década de 30 do século passado, o mestre Bimba, cria a capoeira regional, e dá esse nome, porque não tinha pretensão de que ela fosse ganhar o mundo, acreditando que ficaria pela região da Bahia. Só que essa capoeira foi um fenômeno, e no mundo todo. Como essa era a regional, a outra passa a denominar de Angola. Existem duas teorias uma de que a capoeira veio da África, não pronta, não da forma que a gente entende, mas através de alguns elementos, e a outra, que a capoeira se desenvolve em solo brasileiro, em função desse caldeirão cultural, que tem brancos, negros e índios. Assim, a regional é tida como a mais objetiva, mais voltada para luta. E a capoeira angola se manteve resistente. Existe uma outra vertente de capoeira, que hoje é mais atual, e se chama capoeira contemporânea, juntando essas duas vertentes, tentando fazer uma capoeira mais ampla. Contudo, a nossa proposta de capoeira é não rotular. Nós somos capoeira.

Tem alguma diferença na musicalidade delas, no ritmo?

Primeiro, o toque do berimbau. A regional ela vai ter uns toques mais precisos. E depois, as variações são muito mais na velocidade e na intensidade. Se o berimbau tocar mais lento, mais solene, o jogo vai ser mais cadenciado, se ele tocar mais arrojado, assim deve ser o jogo. Então é o berimbau quem comanda o jogo.

Capoeirista é qualquer pessoa que pratica a capoeira, ou só depois de anos de prática?

Quando a pessoa ganha a primeira graduação, que chamamos de batizado, dizemos que está oficializado, mas não acredito muito nisso. O capoeirista é qualquer pessoa que pratica a capoeira, e o capoeira é quem vive a capoeira. Então eu não me denomino capoeirista, eu sou capoeira, pois ela é 24 horas da minha vida, vejo a vida com o olhar do capoeiro. Essa malemolência de saber lidar com um confronto na roda, é muito comum ‘dar a volta ao mundo’, como se fosse uma interrupção do round, e os lutadores vão novamente. A vida muitas vezes, nos pede a volta ao mundo, numa situação meia adversa, aí tu respiras, baixa o berimbau, e recomeça. São as experiências e valores da capoeira, que começamos a trazer para vida, o capoeira, ele não tem botão de desligar.

Desde que começou a praticar a capoeira, já passou por algum momento que sentiu ela como teu resgate? Ou que te fez parar e ver o mundo de outra forma em determinada situação?

É tão comum, está tão inserida em mim já, que as cosias acontecem e eu nem me dou conta. De onde eu venho, da região de periferia de onde eu vim, e me criei, tive amigos de infância que já não estão mais aqui, e no mesmo momento, eu me descubro na capoeira, e a minha vida tomou outro rumo. Isso foi importante também, comecei a lecionar a capoeira com 18 anos, não tinha nem escolaridade, comecei a fazer capoeira dentro de uma escola, numa instituição de educação, e não tinha educação formal. Através da capoeira começo a ver a importância de como abordar, de como falar, de como entender, e então volto, e retomo os estudos, entrando no curso de pedagogia, que não conclui, mas me trouxe essa inquietude.

Disse que hoje, tu vives da capoeira, então para encerrarmos, o que é a capoeira na tua vida num contexto geral?

A capoeira é minha vida. Sem demagogia e sem visão romântica. São vinte e poucos anos de capoeira, a gente acaba que tem essa paixão, mas começa a ser mais prático. A capoeira de fato é a minha vida, tudo que tenho, devo a capoeira, onde cheguei, e não estou falando de material, estou falando de respeito, de oportunidades, foi tudo a capoeira que me deu. As pessoas que fazem parte da minha vida hoje, foi a capoeira que me oportunizou, então a capoeira é tudo para mim. Ela sustenta a minha família, é a forma como supro as minhas necessidades, é a forma como vejo o outro, como entendo o outro, e como aprendo a respeitar o outro também. Porque na capoeira para jogar, tu cumprimentas, após o jogo da capoeira tu agradece, e a vida é isso é o cumprimentar e é o agradecer sempre.

Página 9, na edição 1518 do impresso “A semana”

Entrevista produzida na disciplina Gestão da Informação: Cidades e Esportes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte. 2018/01.

Posteriormente publicada no impresso “A semana”, da cidade de Alvorada- RS.

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Bastidores

Desde a infância tive interesse pela capoeira, mas nunca tive acesso, de repente por falta de oportunidade ou de informações. Talvez se tivesse conhecido um projeto social, hoje poderia estar praticando e escrevendo com experiência no assunto. No entanto, a vida me fez cruzar com essa expressão cultural há dois anos mais ou menos, quando fazia estágio na assessoria da Prefeitura de Alvorada, cidade onde cresci. Lá em meio a cobertura do evento dedicado a capoeira, conheci o Pastel. Por sorte, tive a oportunidade de fugir um pouco do tradicional release de órgão público, e pude dar mais detalhes da capoeira, depois de ler a publicação, ele elogiou meu trabalho. Esse ano, voltei para a faculdade, após um período afastada do curso, e me deparo com o Belmonte, sempre disposto a nos desafiar e com isso nos fazer crescer como profissionais. Temos então no plano de ensino, uma entrevista ping-pong com alguém do meio esportivo. Aqui, está outra oportunidade de falar com o Contramestre Pastel sobre a capoeira. Por acaso, a caminho da faculdade, encontro no ponto de ônibus, ele que era o nome que havia pensado para entrevistar. Conversamos e o Pastel topou gravar. Entro em contato dias mais tarde, para agendar a data. Combinamos às 10h, vou assistir a aula dele, antes da entrevista. Chego na escola, me dirijo a sala onde acontecem as aulas, encontro o contramestre e seus alunos. Apesar do frio, faz um belo dia de sol lá fora. Ainda fico um pouco nervosa e me perco ao estruturar frases diante do entrevistado, mesmo com o caderninho com as perguntas prévias que uso para me auxiliar. Levo isso como aprendizado, sem esquecer que a pratica, só tende a aperfeiçoar, seja a postura em frente à câmera, seja o texto, e principalmente a ouvir quem está ali na minha frente, prestar atenção aos detalhes, e dar espaço para que ele pense e organize as ideias. Como disse não foi a primeira vez que entrevistei o Pastel, mas foi a primeira vez detalhada, a primeira onde pude mostrar o trabalho dele e a capoeira em si. E como ouvi em algumas aulas nesse semestre, a frase “me conta”, resolvi contar aqui um pouco mais do que os bastidores do dia da gravação. E Pastel, espero ter feito um bom trabalho novamente. À comunidade capoeira, o meu respeito e agradecimento pelos princípios que tens passado de geração em geração. Quem sabe encontro um momento para me dedicar a essa prática, agora que sei onde encontrar ela.

Encerrando a entrevista, com o aperto de mãos em respeito e agradecimento ao tempo disponibilizado pelo Contramestre Pastel
À esquerda: Capoeiristas em formação. Ao centro: Alongamento após a aula. À direita: O contramestre Pastel, no centro da foto, com seus alunos registrando mais um dia de aprendizado ao término da aula. Crédito: Thainah Mazin

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