Cartas na mesa do transporte público de SP

Entre bombas e black blocs, repressão e vandalismo, existe um grande desafio de política pública a ser resolvido. O que de fato está em jogo aqui?

Minha Sampa
Cidades para Pessoas

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Você sabia que cerca de 6 milhões de pessoas se deslocam de ônibus pela capital todos os dias? É como se toda a população do Uruguai — vezes dois — dependesse do transporte público municipal para se locomover. E isso, meu amigo e minha amiga, é MUITA gente.

Não por acaso, quando o governo decide aumentar o valor da tarifa (o que acontece quase todo ano) milhões de pessoas são impactadas e muitas perguntas surgem, acompanhadas de protestos e descontentamento. Mas com tanto barulho e violência, perdemos a visão do debate mais importante. O que de fato precisamos discutir?

Para entender tudo isso, nós, da Rede Minha Sampa, reunimos uma série de dados e argumentos para colocar as cartas na mesa!

Foto por Lucas Mello (SelvaSP)

O Modelo

Em se tratando dos ônibus, quem oferece o serviço são as empresas privadas de transporte que operam à partir de uma concessão ou permissão dada pelo governo municipal — nosso foco de discussão nesse texto.

Do custo total que as empresas de ônibus têm, uma parte é paga pelos usuários, por meio do Bilhete Único, por exemplo, e a outra parte é paga pelo restante da sociedade através de impostos, para subsidiar a viagem de uma parcela da população. Mas, além dos custos, essas empresas operam com lucro, como previsto nos contratos. E quem paga por esse lucro também é você, seja como contribuinte, seja como usuário, seja os dois!

Hoje, 22% dos passageiros viajam de graça graças a esse mecanismo chamado de subsídio. Em sua maioria, são estudantes, deficientes, idosos, e desempregados - esse último por um período determinado de tempo. Em 2015, os subsídios somaram R$1,9 bilhão. Esse valor iria para R$2,3 bilhões em 2016.

Para se ter uma ideia, em outras cidades do mundo, o governo também arca com parte dos custos do transporte público para tornar o serviço mais barato para os usuários. Segundo dados das European Metropolitan Transport Authorities para 2012, os subsídios na cidade de Praga chegaram a 70% dos custos, 64% em Turim e superam os 50% em Varsóvia, Budapeste, Helsinque e Copenhague.

Mesmo não sendo o foco desse texto, vale a pena ressaltar que no Metrô quem manda é a Companhia do Metropolitano de São Paulo (CMSP), empresa de capital misto que tem o governo do estado como acionista majoritário, subordinada à Secretaria dos Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, e que vem demostrando crescente interesse em conceder a operação de novas linhas para a iniciativa privada.

A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) também funciona da mesma forma e é responsável pelas linhas de trem do estado. Juntos, o Metrô e a CPTM transportam mais de 4 milhões de pessoas todos os dias.

Aumento da Tarifa

O governo municipal justifica o aumento da tarifa de R$3,50 para R$3,80 com base em três pontos principais: a inflação, a queda na arrecadação e o aumento nos subsídios.

Em 2015, ano de crise, a arrecadação de impostos da cidade de São Paulo caiu quase 17% . A prefeitura esperava arrecadar R$53 bilhões, mas entraram para os cofres públicos R$9 bilhões a menos. Em 2016, não será tão diferente assim. Na prática, nosso município, assim como a maioria das cidades do país, está ficando mais pobre.

A inflação, por sua vez, passou dos 10%. Ou seja, sem o aumento no valor da tarifa, a prefeitura teria que desembolsar mais R$500 milhões para bancar seus contratos com as operadoras de ônibus e manter, por exemplo o Passe Livre Estudantil.

Mas, se é complicado para a prefeitura arcar com esses gastos, imagine para a população! Pagar R$3,80 por trajeto significa, em um mês, um gasto de aproximadamente 20% sobre o salário mínimo, já reajustado para R$ 880,00. E esse gasto não onera apenas o trabalhador, mas também os empregadores, que são obrigados a pagar parte do vale-transporte (VT) e, principalmente, trabalhadores que não possuem carteira registrada e que, portanto, não recebem o benefício.

Diante de um impasse econômico tão delicado, o governo decidiu mandar a conta para os usuários do transporte. No entanto, mais uma vez, age como se estivesse correndo atrás do próprio rabo: ignora as verdadeiras ações que deveriam ser tomadas, como a aceleração do processo de nova licitação (com novos critérios), o aumento da transparência nos serviços prestados pelas empresas e a garantia de uma comunicação constante e honesta com a população sobre todo o processo.

Foto por Rua Foto Coletivo

O que está por trás do custo da passagem

Os principais custos, hoje, são: pagamento de motoristas e cobradores (41%); combustível, pneus e lubrificantes que, com a crise, também subiram (18%); manutenção da frota (7%); entre outros.

Quanto as empresas ganham

Nos últimos 10 anos, as empresas que operam os ônibus do sistema municipal de transporte de São Paulo obtiveram um lucro que representa 18% do valor total arrecadado pelo serviço prestado.

Em 2014, esse lucro foi de mais de R$81 milhões, mas caiu para R$ 45 milhões em 2015. Isso porque os repasses da Prefeitura cresceram menos do que os custos do sistema no período.

O que poderia mudar

Grande parte do silêncio do governo sobre esse assunto deve-se a falta de coragem na definição de mudanças importantes, inclusive na relação com as empresas de ônibus.

O ponto crucial, na nossa visão, é a forma de remuneração das empresas. Hoje, a remuneração se dá pela quantidade de passageiros e não por quilômetro rodado pelos ônibus. Dessa forma, os contratos encorajam as operadoras a permitirem a superlotação e não as estimula a criação de novas linhas.

Um segundo ponto a ser discutido seria a qualidade do serviço prestado, mais precisamente, condicionar os repasses às concessionárias ao cumprimento de melhorias no serviço (levando em consideração inclusive a opinião dos usuários). Segundo pesquisa feita pela Confederação Nacional da Industria (CNI), a avaliação do transporte público pelos brasileiros piorou de 2011 para cá. Para os entrevistados, os problemas de capilaridade, frequência, pontualidade, segurança, conforto, tempo de viagem e o valor da tarifa são pontos críticos do serviço.

Fonte: Confederação Nacional da Industria (CNI)

Poderíamos, também, pensar na redução do custo de pessoal, por exemplo, que representa, como já vimos, uma grande fatia desse bolo.

A redução, limitação ou fixação do lucro dos empresários seria outro ponto que deveria estar em pauta.

Podemos, ainda, citar os atrasos nas obras de ampliação e conclusão das linhas de metrô, e de construção do monotrilho, todas de atribuição do governo do estado e não da prefeitura. Se as obras previstas tivessem sido concluídas no prazo, a situação já estaria bem melhor do que está hoje.

E não para por aí: de 2004 a 2012, a quantidade de passageiros disparou 80% em São Paulo, enquanto o número de ônibus em circulação caiu de 14.100 para 13.900.

Foto por Rua Foto Coletivo

O que está sendo feito

Em Agosto de 2015, a Prefeitura Municipal lançou a maior licitação de transportes da América Latina, com custo estimado de R$ 140 bilhões. Mas a sociedade civil teve apenas 30 dias para ler mais de 5 mil páginas do edital e assim ter a oportunidade de participar da criação do novo modelo de transporte de ônibus da nossa cidade para os próximos 20 anos.

Foi então que a Rede Minha Sampa se juntou a outras organizações para pedir mais prazo para essa consulta e a realização de audiências públicas para debater o tema.

Após uma pressão relâmpago, via telefone, por meio da nossa plataforma Panela de Pressão, em cima do Prefeito Haddad, conseguimos aumentar o prazo para análise e participação. O edital, que está parado no Tribunal de Contas Municipal desde novembro do ano passado aguardando um parecer, prevê que a taxa de retorno das empresas caia de 15% para 9,97%, e que a satisfação do usuário e cumprimento de partidas influencie na remuneração.

Questão de Direito e Justiça

Quem deve pagar pelo serviço?

Você pode ter a opinião de que o usuário do transporte público tem a obrigação de pagar por ele: “nada mais justo. Quem usa, paga.”. Nesse caso, o sistema atual, independente de quanto se paga, está de acordo com sua visão. Hoje, 75% do valor necessário à prestação do serviço é arrecadado através da tarifa e 25% através de outras fontes (tributárias).

O problema desse argumento é que, na prática, os mais pobres pagam a conta do transporte público e os mais ricos arcam com seus próprios meios de transporte. E isso não é uma política pública justa e eficiente, já que a disponibilidade do transporte público beneficia a todos, seja pela melhoria no transito, redução das emissões de CO2 ou pela possibilidade dos trabalhadores se deslocarem pela cidade.

Se, por outro lado, o transporte for um direito de todos e entendermos que a sociedade, coletivamente, precisa compartilhar essa responsabilidade, a passagem poderia ser paga inteiramente pelo dinheiro dos impostos, ou, pelo menos, uma parcela do total.

Dessa lógica se inferem 2 caminhos possíveis: a instalação do chamado “passe livre” ou o aumento do percentual da passagem que hoje é pago através dos impostos.

No caso do passe livre, os usuário dos ônibus não pagariam diretamente o valor da passagem, mas dividiriam a conta com o restante da sociedade. Ou seja: todos pagariam pela passagem de todos. Hoje, segundo a prefeitura, o passe livre universal, nas condições atuais do contrato, custaria R$8 bilhões para os cofres municipais, o que representa quase totalidade do valor arrecadado através da cobrança do IPTU.

A tarifa zero já existe em 86 cidades, de 24 países diferentes, inclusive em 12 cidades do Brasil. Maricá (RJ) é uma delas. A cidade possui em torno de 150 mil habitantes e a prefeitura local decidiu realocar recursos do orçamento municipal para prover o passe livre, em algumas linhas de ônibus, para os cidadãos.

E daí, você pode se questionar: mas não é muito dinheiro? Sim, mas bilhões de reais são investidos em transporte todos os anos. O governo do estado, por exemplo, vai desembolsar R$10,5 bilhões através de um processo de licitação de rodovias para a iniciativa privada. Investir no passe livre universal, ou não, é uma decisão política, e não exclusivamente orçamentária.

Entretanto, discutir o passe livre universal sem debater a forma como o governo iria arrecadar os recursos necessários é chover no molhado. Como pagar essa conta? Aumentando os impostos? Gerindo melhor os recursos já arrecadados pelo governo? Como nova fonte de recursos para transportes, a Frente Nacional dos Prefeitos, por exemplo, vem pleiteando a cobrança de um imposto diferenciado sobre o álcool e a gasolina para que esse recurso seja destinado para subsidiar a tarifa de transporte público. Nesse caso, o transporte privado e individual ajudaria a reduzir o custo do transporte público e coletivo.

A grande questão é como queremos priorizar os investimentos que são pagos por nós, cidadãos, através de impostos. São decisões políticas e de políticas públicas que devemos tomar coletivamente.

Foto por Julia Dávila

Para participar desse jogo

Quando questionamentos tão importantes sobre nossas definições de justiça, direitos e qualidade da gestão pública são tratados como caso de polícia ou com silêncio por parte de nossos governantes, nós, como sociedade, precisamos levantar a voz.

Todas as questões propostas aqui devem ser amplamente discutidas entre o governo e a sociedade. Está clara a necessidade de pensarmos a mudança no sistema atual e, independente da direção tomada, os custos que a envolvem. Mas ficarmos parados onde estamos ou debater apenas no momento da correção do valor da tarifa, traz um custo ainda maior: acabamos não discutindo o que realmente importa e sofrendo, ano a ano, com o aumento das tarifas de um transporte público de baixa qualidade

Precisamos falar de mobilidade humana e não apenas transporte público. Ir além de quantas linhas de ônibus ou de metrô precisam ser construídas, ou se uma determinada ciclovia tem ou não utilidade.

Como cidadãos, temos que entender o que está em jogo, formar uma opinião e cobrar nossos representantes de forma contínua. Nós seremos os agentes da mudança.

Já o Governo precisa dialogar e, principalmente, compreender os gritos que vem das ruas, respeitando sempre o direito à livre manifestação e a integridade física daqueles que discordam de suas propostas.

Mas isso já é assunto para um outro post. Por hora, se essa leitura te ajudou a compreender mais e melhor o desafio do transporte público em nossa cidade, clique no ‘coração’ no final do texto. Se quiser que mais gente entre para o debate, compartilhe nas redes sociais. Você também pode deixar seus comentários abaixo e, claro, inscrever-se na Rede Minha Sampa pra colocar a mão na massa e melhorar nossa cidade.

PS: Após a publicação desse post na sexta, 15/01, em nosso facebook, muita gente compartilhou suas opiniões e novos dados sobre o transporte público em nossa cidade, mostrando que, para a nossa felicidade, o debate aprofundado já começou. Então, fizemos algumas atualizações nesse texto, reforçando argumentos e dando mais luz a pontos que não estavam tão claros.

Por Emygdio, Anna, Gut e Leo (Minha Sampa)

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A Rede Minha Sampa é formada por paulistanos, de certidão e de coração, que acreditam na construção de uma SP mais inclusiva, participativa e boa de se viver.