Como o design pode fazer a diferença em uma tragédia?

SERIFARIA
Cidades para Pessoas
5 min readNov 16, 2015

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Cresci numa cidade do interior de Minas chamada Ipatinga. Na frente da minha casa, tem uma reserva florestal da Usiminas e a 200 metros dali passa o nosso Rio Doce. Ir até lá era perigoso, pois significava se embrenhar pelo meio do mato. Éramos proibidos pelos pais de tal aventura, e por isso mesmo volta e meia chegávamos até lá com nossas magrelas. A minha relação com o Rio Doce era apenas a de admirá-lo de longe, apesar dele estar sempre muito perto. Não pescava ou navegava por ele, mas sabia que ele estava ali, de frente para a minha casa, vivo, cheio de peixes, fornecendo água para milhares de pessoas. E era louco pensar que, a mesma água que passava por mim, já havia passado na frente da casa de tantas outras pessoas e que chegaria até o mar do Espírito Santo, após ter percorrido exaustivos 853 km! Era um rio grandioso!

Minha casa é alí embaixo, bem na curva. E o Rio Doce à esquerda da foto.

Com frequência íamos a Belo Horizonte de trem. O trem da Vale que corta a estrada de ferro Vitória a Minas. Pelos seus trilhos vão-se embora toneladas de minério de nossas terras. O trem de passageiros é dividido por classes: a executiva é luxuosa e tem ar condicionado. Se optar pela econômica, vai chegar ao seu destino brilhando — de minério. As paisagens pelo caminho são de tirar o fôlego, a natureza é estupidamente exuberante.

Entorpecido por tanta beleza, se toma um tapa na cara passar pelo Buraco do Cauê. O local — em Itabira — já foi um dia o Pico do Cauê. Paisagem constante na vida do poeta Carlos Drummond de Andrade, que doía ao ver a sua destruição. É impossível entender a dimensão do buraco pela foto. Até mesmo vendo pessoalmente só nos damos conta das suas proporções, quando o caminhão dentro do buraco parece ser do tamanho de um caminhãozinho de lego.

Pico do Cauê em 1940 e em 2007

A MONTANHA PULVERIZADA
Carlos Drummond de Andrade

Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.

Era coisa de índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.

De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.

Esta manhã acordo e não a encontro,
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de 5 locomotivas
- trem maior do mundo, tomem nota -
foge minha serra vai,
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.

Tantos anos dos desencantos e poesias de Drummond se passaram e a Vale continua levando sem dó nem piedade as nossas riquezas e deixando buracos infinitos na paisagem e na alma do mineiros. A pobreza de espírito do ser humano, o faz crer que esse é um mal necessário. Que sem as mineradoras a economia do estado não sobrevive. Mas do que adianta a riqueza econômica se o preço disso é destruir o que temos de mais precioso? Como uma criança que raspa com toda a voracidade uma panela de brigadeiro com uma colher, as mineradoras com sua ganância, vão deixando para trás apenas buracos secos, desprovidos de vida e de esperança. E é isso que deixaremos para as próximas gerações: um buraco em nossas consciências e alguns quadros na parede.

Em novembro de 2015, a Samarco/Vale MATOU o Rio Doce. O mesmo rio pelo qual cresci me aventurando em suas margens. O mesmo que alimentou e matou a sede de tanta gente e foi palco de tantas aventuras de crianças. Está morto, assassinado.

Esse foi um golpe duro, que deixaria Drummond sem palavras. Estávamos até acostumados a ver as nossas montanhas e matas serem destruídas, mas não acreditávamos que seriam capazes de matar o nosso rio…

Mesmo que você não tenha crescido vendo esse rio passar em frente a sua casa, ele era parte viva do país em que você vive. Ou seja, ele era vivo em você, mesmo que você não soubesse.

Primeiro levaram os comunistas,
Mas não falei, por não ser comunista.

Depois, perseguiram os judeus,
Nada disse então, por não ser judeu,

Em seguida, castigaram os sindicalistas
Decidi não falar, porque não sou sindicalista.

Mais tarde, foi a vez dos católicos,
Também me calei, por ser protestante.

Então, um dia, vieram buscar-me.
Nessa altura, já não restava nenhuma voz,
Que, em meu nome, se fizesse ouvir.

Martin Niemoller

Mas o que esse assunto tem a ver com um blog de um estúdio de design? Tudo. Me pergunto qual é o papel social do design diante dos problemas da sociedade em que estamos inseridos.

Diante da maior tragédia ambiental do país, e uma das maiores do mundo, de que formas podemos contribuir para tornar esse absurdo visível? Drummond fez com que um país inteiro soubesse que a Vale destruía a sua terra. E o fez através de sua poesia, de sua arte. Designers, fotógrafos, artistas, ilustradores, chargistas, tem o talento de produzir imagens que carregam mil palavras. E essas imagens podem incomodar, trazer atenção, estimular debates, ações e mudar o mundo.

Ao mesmo tempo em que o Rio Doce é assassinado, um atentado terrorista abala Paris. Imediatamente as fotos de perfil dos nossos amigos no Facebook ganharam as cores da bandeira francesa e o acontecimento trágico da cidade luz, ganhou um símbolo forte, (inspirado no velho símbolo da paz) e um slogan: Peace for Paris.

Quão poderosa é essa imagem! E disseminá-la por todo lado é demonstrar solidariedade e repúdio ao atentado. Não precisa de palavras.

Esse texto (longo, desculpe) que escrevo é uma provocação. A todos que nasceram com talento para produzir e criar imagens. Temos as ferramentas nas mãos para começar um movimento, para chamar a atenção para a nossa tragédia local, e para realmente fazer alguma diferença no mundo. Que seja criando imagens “compartilháveis”, ou ajudando alguma ONG a produzir algum material gráfico, etc. E você aí, que diferença você está fazendo?

Arte: Renato Aroeira
Arte: Rangel R. Morais

Texto de Marina Chevrand, 16/11

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