Sinop — o lugar que pode mudar a lógica de fazer cidades no Brasil

Natália Fontes Garcia
Cidades para Pessoas
8 min readOct 9, 2017
Sinop — uma cidade cercada de monocultura de Soja que pode revolucionar o Brasil urbano. Fonte: Google Earh

Se o Brasil fosse uma pessoa com vários focos de doenças graves que chega em uma sessão de acupuntura para pedir ajuda e eu fosse uma médica com apenas uma agulha, o ponto que eu escolheria estimular é Sinop, no Norte do Mato Grosso. Passei o último mês estudando essa cidade e estive lá na semana passada fazendo uma investigação para o trabalho Abrindo Caminhos para uma Cidade mais Humana, em parceria com a terapeuta criadora do Canto Curador, Carla Balieiro Sinisgalli. Por tudo o que vi e estudei lá e após ter percorrido mais de 100 cidades em quase todos os Estados do país, digo com convicção — mexer em Sinop é mexer no Brasil inteiro.

Sinop é uma sigla que significa Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná. É o nome da entidade de empresários que se deparou, nos anos 70, com a oportunidade de construir uma cidade planejada, em consonância com a estratégia política da ditadura militar de garantir poder sobre a Amazônia. Muita terra foi distribuída de graça aos chamados pioneiros, que toparam desmatar áreas enormes de floresta amazônica para fazer cidade — empurrando diversas etnias indígenas à força para o Parque Nacional do Xingu, que fica ali ao lado.

Vista aérea de Sinop no começo da década de 70, quando a cidade foi fundada à beira da BR 163, no meio da floresta amazônica — acervo do Museu de Sinop

A atividade econômica que sustentou essa operação foi a extração de madeira, que acontecia praticamente sem regulação. Um morador de lá me contou que no começo da cidade havia uma madeireira em cada esquina, e a cena de caminhões carregando troncos centenários era cotidiana, banal. Após duas décadas de devastação, com o aumento na regulação do setor, muitas madeireiras faliram e a economia da cidade quebrou. Mas a resposta para aquela crise já despontava no horizonte: ocupar toda aquela terra desmatada com lavouras de soja. Hoje, Sinop e Sorriso, município da mesma região, compõem o maior polo de produção de soja do mundo. Ambos são ilhas de concreto cercadas de monocultura por todos os lados.

Sinop e Sorriso — maior polo de produção de soja do mundo (todas as áreas quadriculadas de terra bege são lavouras de monocultura e as manchas verde-escuras são os pedaços de mata preservada). Google Earth

É claro que a floresta tentou se regenerar. Microorganismos, insetos e plantas agressivas tentaram conter as lavouras de monocultura que exauriam a terra e aumentavam a temperatura do ar. Mas essas tentativas de balanço da natureza foram tratadas pelos agricultores como pragas e combatidas com diversos tipos de venenos — um dos motivos que levou o Brasil a ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Hoje, a consequência disse modelo de urbanização e crescimento econômico pode ser sentida na pele de qualquer um que pise lá.

Quando nos aproximávamos do aeroporto de Sinop, o piloto avisou que o tempo era bom e os termômetros marcavam 35 graus — eram onze e meia de uma manhã de primavera e aquele era o parâmetro de tempo bom. Assim que saí do avião, senti um calor opressor. Não era só a temperatura alta, mas também a secura do ar que chocava meu corpo. Fazia meses que não chovia na cidade. Some-se se a isso a quantidade de queimadas ilegais que acontecem na região e o resultado era uma umidade relativa do ar que oscilava em torno dos 15% — a Organização Mundial da Saúde diz que índices abaixo dos 60% são prejudiciais à saúde.

Fui de carro do aeroporto até o centro da cidade. Tínhamos a janela aberta, sem ar condicionado, e eu já sentia a minha pele arder como se eu tivesse passado um dia inteiro exposta ao sol forte. A garganta estava seca, mas os olhos se encheram d’água com aquela paisagem. Uma mancha de terra bege clara, visivelmente exaurida na entressafra de milho e soja, criava uma linha de horizonte a perder de vista. Em apenas 40 anos, a cidade tinha feito da floresta um deserto.

Um dos primeiros pontos de parada da minha investigação foi a Refeccs Rede Feminina de Combate ao Câncer de Sinop, uma das entidades mais importantes da cidade. No balcão de entrada, uma funcionária organizava as centenas de cestas básicas que seriam distribuídas a mulheres que sofriam com tumores malignos em seus corpos. Enquanto conversávamos, três pessoas chegaram com um saco plástico. “Oi, vim trazer mais cabelo”, diziam elas. Um grupo de voluntárias recebia essas mechas e levava para uma sala onde seriam costuradas perucas, para melhorar a auto-estima das mulheres carecas por causa da quimioterapia. “Todos os dias recebemos cabelos aqui, muitas crianças vêm trazer, tem meninos que sofrem bullying na escola por causa do cabelo comprido, mas deixam crescer mesmo assim para ajudar”, me contou uma das funcionárias. Impressionava aquela força comunitária tão rara no Brasil. Mas impressionava ainda mais a normalização do câncer na cidade.

Normalizada também era a lógica de a cidade lidar com seus resíduos. Como boa parte das cidades do país, Sinop ficou rica deixando um rastro de poluição — gera 110 toneladas de lixo por dia e não tem coleta seletiva, mandava tudo para ser incinerado em um lixão até o ano passado, agora enterra tudo em um aterro sanitário; e coleta apenas 30% do seu esgoto, o resto vai direto para o solo em fossas negras. Hoje, Sinop é a quarta economia do Estado do Mato Grosso, mas corre um risco sério — as pessoas estão cada vez mais doentes e o clima vai ficando cada vez mais quente e seco, o que pode inviabilizar uma economia que depende da estação chuvosa. Como explica o climatologista Antonio Nobre, as árvores da Amazônia colocam tanta umidade no ar em sua transpiração que criam um “rio voador” com mais volume de água que o Amazonas. É essa água, trazida dos oceanos pelas árvores, que faz chover lá em Sinop, aqui em São Paulo e em boa parte do território do Brasil. E mesmo dependendo economicamente da floresta a cidade continua a desmatá-la.Mas em meio a problemas tão profundos, há um potencial raro em Sinop. Uma força comunitária de pessoas que transbordam excelência nos serviços que prestam, gente realmente competente e apaixonada pelo que faz. Sinop tem os dois recursos mais raros do Brasil urbano: um rio limpo (o Teles Pires, onde nadei entre uma entrevista e outra) e reservas florestais preservadas, cheias de araras, papagaios, tatus, sapos, onças e vários outros animais.

Parque Florestal (à esquerda) e rio Teles Pires.

É uma cidade plana e compacta, perfeita para o uso de bicicletas se o clima for amenizado por corredores verdes de árvores que conectem essas reservas. Isso seria bom não apenas para as pessoas, mas para os bichos circularem entre as manchas verdes da cidade. É uma cidade próspera, com recursos para investir em experimentos. Tem um traçado pensado de forma lógica, organizada. Tem a advogada Adriana Pommer pensando em atribuir valor às práticas sustentáveis como a prestação de serviços ambientais. Tem o médico Milton Malheiros, engajado em melhorar a saúde pública a partir do meio ambiente urbano. Produtores de alimentos orgânicos e locais engajados em mudar a lógica rural da cidade, como o Cantasol. E arquitetos comprometidos com as ideias de escala humana e cidades para pessoas, como Gui Zerwes, Max Ribeiro, Bianca Karlinski e Ivana Bastos.

Mexer em Sinop é mexer em um setor que movimenta um terço da economia do Brasil, o agronegócio. É mexer, portanto, no poder da bancada ruralista. É mexer na questão indígena e na preservação do Parque Nacional do Xingu. É mexer em um dos vetores de crescimento de câncer no Brasil (uma pesquisa que encontrei na UFMT mostra que a doença cresce muito mais em polos de produção de soja, como Sinop e Sorriso). É mexer no clima e no ciclo da água em todo o Brasil e na nossa lógica de fazer cidades.

Mas mexer por onde?

Dos diversos caminhos que a cidade tem para se reinventar, um me chama a atenção. Sinop tem a rara vocação de gerar inovação no maior problema urbano do Brasil, aquele sobre o qual ninguém tem coragem de falar — o esgoto. O Brasil nunca aprendeu a lidar com esgoto — a prova disso é que quase todas as nossas cidades despejam mais da metade do seu esgoto in natura nos rios e, por causa disso, segundo a Fundação SOS Mata Atlântica, não há mais rios urbanos com qualidade boa no país. Quando não jogamos direto no rio, “tratamos” o esgoto — mandamos tudo para uma caixa de concreto e enchemos de aditivos químicos para purificar os resíduos. Mas, como bem explica o engenheiro permacultor Guilherme Castagna, tratar o esgoto é uma ideia anacrônica, é jogar fora todos os nutrientes, toda a energia que fica ali acumulada (na casa dele, o esgoto é reciclado e gera o biogás que alimenta o fogão da cozinha). Compreender o esgoto como fonte de recursos é uma chance de lidar melhor com essa questão no país.

sistema de bio-digestor do esgoto do engenheiro permacultor Guilherme Castagna

Pensar nisso numa metrópole como São Paulo é complexo demais. Mas em Sinop, uma cidade média de 150 mil habitantes, próspera, diversa, planejada e precisando se reinventar, é possível. Apenas 30% do esgoto gerado lá é coletado. Mas garantir a coleta na cidade toda é replicar um modelo que já não deu certo no resto do país. Todas as milhares de casas em Sinop com sistemas de fossa são potenciais laboratórios para criar uma solução melhor do que as que temos no país. Uma solução escalável para outros municípios pode nascer ali. E isso pode começar a mudar a cultura e a economia de Sinop, disseminando cura para todos esses temas complexos do país que se manifestam lá.

Mas para fazer algo desse tamanho, eles precisam de ajuda. De gente que entenda de inovação, complexidade, orgânicos, regeneração da mata nativa, reciclagem de resíduos, bio construção, gestão da água, cultivo de espaços públicos, política hacker, nova economia, nova educação, futuro do trabalho, financiamento coletivo, liderança, arte nas suas diversas linguagens, jornalismo, terapias holísticas, auto-conhecimento, parto humanizado e demais talentos que possam influenciar positivamente a vida em Sinop. Se sentir que pode ajudá-los de alguma maneira, se apresente nos comentários, mostre que você está disponível, apenas para que os sinopenses aqui marcados possam te conhecer, saber que você existe. Comecemos por essa ponte e vejamos onde ela nos leva.

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