“Bichos” de Lygia Clark

Arte ou Crime?

Uma análise legal do episódio do MAM

Tassio Denker
10 min readOct 6, 2017

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A programação era outra. Queria falar de algo mais técnico e pedagógico, algum conceito ou teoria do Direito. Mas outra vez nos vemos em meio à uma nova polêmica e, lá vamos nós de novo tentar apreciar, dentro da ótica da ciência do direito, toda essa confusão que se desencadeou durante os últimos dias, em relação à mostra ocorrida no dia 26 de setembro.

Sei que dificilmente alguém aqui lendo este texto não saberá do que se trata, mas vai que você acabou de chegar de Marte, no ano de 2037, e não soube deste caos que se desenrolou nas redes sociais brasileiras. Então neste caso, vale à pena um parágrafo resumindo o acontecido:

No dia 26 de setembro, durante a estreia do 35º Panorama de Arte Brasileira, o artista Wagner Schwartz apresentou a performance chamada “La Bête”, em homenagem ao trabalho de Lygia Clark, intitulada “Bichos”, em que a obra era interativa. Neste trabalho específico, o artista se pôs nu, como sendo ele mesmo o próprio bicho, e estava à disposição para interação com os espectadores. E, dentre estes espectadores, estava uma criança que, encorajada pela própria mãe, toca nas pernas do homem nu, deitado no chão.

Museu de Arte Moderna IR — Photo by Nicolas de Camaret — Flickr

Aí, o resto todos nós já sabemos: temos as pessoas que não viram absolutamente nada demais até o outro extremo, onde já acenderam as fogueiras e acusam o museu, o artista e a mãe da criança de pedofilia.

Agora que já está baixando um pouco a poeira desta confusão toda, talvez seja o momento mais adequado de se expor uma análise jurídica deste caso. Vou deixar claro — embora muitas vezes este detalhe não faça diferença nenhuma — de que vou expor “meu parecer” com base na legislação e no direito, e não no que eu acho, quero ou penso que deva ser correto ou moral.

A primeira coisa que devemos nos ater é que o Direito brasileiro prevê 3 tipos diferentes de esfera de “punição” para os atos que são considerados ilícitos: a sanção administrativa, civil e penal.

Apenas para entendermos, uma rápida analogia — imagine um acidente de carro, onde uma pessoa atravessou o sinal vermelho e colidiu com outro carro, causando uma lesão corporal em outra pessoa. Esse acidente pode gerar para você uma punição administrativa — que é a multa de trânsito e os pontos na carteira. Da mesma forma, pode te gerar uma punição civil, que é reparar os danos materiais e cobrir custos de hospital, por exemplo. E, por fim, pode te punir criminalmente — por ter causado uma lesão corporal.

Este aspecto é importante para avaliarmos de uma maneira mais ampla toda a situação ocorrida no MAM, pois ali, naquele caso, temos que avaliar eventualmente quais foram as ilicitudes, quem as praticou e quais as consequências para estas ilicitudes.

Da mesma forma, é importante registrar quais pessoas estão envolvidas neste episódio, para delimitarmos quais as possibilidades plausíveis. E, neste caso, destacamos: O Museu; o artista; a mãe da criança; e, por fim, quem registrou e divulgou a imagem da criança.

Vamos começar, então, pelo Museu. A primeira coisa que devemos destacar é que o Museu, como pessoa jurídica, não está sujeita, neste caso específico, a nenhuma punição penal, apenas civil e/ou administrativa. Afinal, não se leva um museu para a cadeia. No entanto, poder-se-ia dizer que haveria responsabilidade penal para algum diretor ou funcionário do museu. Mas vamos com calma, que você já verá que não tem essa possibilidade.

À princípio, temos no Brasil uma liberdade artística e cultural que se regula, quanto à exposição do seu conteúdo, pela classificação indicativa. Não é proibido uma performance que contenha sexo explícito. Tampouco nudez. Não é proibido um quadro retratando zoofilia, escravidão, homicídio. Não é ilegal gravar um filme pornográfico, com atores maiores de idade. Não é crime fazer um strip tease em uma casa noturna.

Mas, para que tais exposições ou performances não incorram em irregularidades, é necessário indicar, de acordo com algumas regras que são estipuladas pelo Ministério da Justiça, qual a classificação etária adequada para determinada obra.

Estas regras são previstas, atualmente, na Portaria 368 de 2014 do Ministério da Justiça. Vamos dar uma olhada no art.9º desta norma:

Art. 9º As obras de que trata esta Portaria são classificadas nas seguintes categorias:
I — livre;
II — não recomendado para menores de dez anos;
III — não recomendado para menores de doze anos;
IV — não recomendado para menores de catorze anos;
V — não recomendado para menores de dezesseis anos; e
VI — não recomendado para menores de dezoito anos.

Enquanto algumas obras, como filmes e jogos, precisam ser enviadas ao Ministério da Justiça para serem classificadas, outras obras podem ser autoclassificadas. É o caso, por exemplo, das mostras e festivais. Vejamos o art.38 da Portaria:

Art. 38. As obras audiovisuais destinadas a mostras e festivais podem ser
autoclassificadas, devendo apresentar os símbolos e as demais informações da classificação indicativa conforme o Guia Prático da Classificação Indicativa, e são dispensadas da inscrição de processo de autoclassificação no Dejus.

No caso do Museu e das mostras que estavam sendo expostas, é responsabilidade dos organizadores do festival — não o artista, que fique bem claro. Aqui, a responsabilidade por efetuar a classificação indicativa é do Museu que organizou o 35º Panorama de Arte Brasileira.

E como ele faz a classificação indicativa? Volta lá no artigo 38, e veja que ele menciona um guia prático da classificação indicativa, que é fornecida pelo próprio Ministério da Justiça. Você pode acessar ele clicando aqui.

Na pagina 16 do guia, nós encontramos as orientações à respeito da NUDEZ. E, pasmem vocês, na classificação LIVRE, isto é, para qualquer idade, ele traz o seguinte texto:

NUDEZ NÃO ERÓTICA — Nudez, de qualquer natureza, desde que exposta sem apelo sexual, tal como em contexto científico, artístico ou cultural. EXEMPLO: Documentário mostra a realidade de uma tribo indígena onde as pessoas estão nuas.

Para dez anos, ele prevê o seguinte:

CONTEÚDOS EDUCATIVOS SOBRE SEXO — Diálogos e imagens não estimulantes sobre sexo e que estejam dentro de contexto educativo ou informativo. EXEMPLO: Em escola, estudantes aprendem sobre o sistema reprodutor.

E, assim, gradativamente temos a inserção de outros contextos dentro da nudez, como a erotização, sexo não explícito e sexo explícito. Convenhamos que não há, ali naquela cena, nenhum conteúdo erótico ou pornográfico. Só pra não ficarmos sem adentrar as outras faixas, podemos resumir que já é permitido aos 14 anos a nudez com erotização e relação sexual não explícita. Aos 16,além da nudez, já podemos mostrar relação sexual intensa, não explícita e, aos 18, tá tudo liberado.

Acho que estamos entrando, agora, em um terreno mais tortuoso, que implica em juízos de valores que se apoiam em fatores subjetivos. Ter uma pessoa nua, em uma mostra de arte, é necessariamente erótica? Se, ao invés do artista nu, tivéssemos na sala um índio nu ou uma índia nua, teria sido diferente? Onde começa a erotização dentro da nudez? Qual faixa de idade teria sido adequada?

Esta interpretação, se a classificação indicativa deveria ser livre, ou 10, 12 ou 14 anos, por mais que suscite dúvidas ou divergências, acaba ficando secundária se pensarmos que não houve nenhuma indicação, o que, por si só, já é uma irregularidade. Se tivéssemos ali uma cena de sexo explícito, ocasião em que o funcionário do Museu poderia ser responsabilizado criminalmente por permitir a entrada de uma criança, a situação seria outra.

Mas impor 18 anos como classificação para aquela apresentação, pela legislação atual, seria forçar a barra. Novamente, vos lembro de que não se trata de opinião pessoal sobre que grau de nudez ou erotização deve estar em cada faixa. É o que temos definido na norma, neste momento, e que deve pautar a análise jurídica.

Outro detalhe é que, as classificações de Livre até os 16 anos são meramente indicativas. Não desautorizam o poder familiar de tomar a decisão. Se tivesse a indicação de 12, 14 ou 16, a mãe poderia ter entrado com sua filha da mesma forma, sem nenhum problema legal para o MAM.

Bem, o que podemos concluir com relação ao Museu? Que, tecnicamente, o Museu é obrigado, por força da lei e da portaria, a apresentar a classificação indicativa, não meramente trazer informações sobre nudez ou congêneres. Ao que parece, o MAM apenas indicou haver nudez, mas não apresentou a classificação indicativa. E isso seria fundamental, pois existem diversos contextos de nudez.

Neste caso, independente de qual classificação deveria ter sido usada, por deixar de indicar, ele cometeu uma irregularidade e pode ser punido, administrativamente e eventualmente na esfera civil também. Administrativamente, com multa ou mesmo um embargo, fechamento provisório até que a situação seja sanada, por exemplo. E civilmente por alguém que tenha se constrangido por não ter sido corretamente avisado das indicações etárias.

Vamos agora, à conduta do artista. Embora muitas pessoas tenham direcionado seu ódio ao performer, juridicamente falando, não podemos encaixar ele em nenhum artigo ou conduta que possa ser considerada ilícita. Pelo menos, não encontrei. Se alguém encontrar, pode me dizer que eu dou uma olhada e vejo se cabe ou não.

E digo porque: ficar nu, para apresentar-se artisticamente, não é crime. Ora, os atores vivem ficando nus, na televisão e nos teatros. Nas casas noturnas, temos striptease à vontade — tirar a roupa não é crime (favor não confundir com prostituição, isto é outra coisa). O que precisamos ter em mente é que existem locais reservados e apropriados para tal apresentação. Sair nu na rua, por exemplo, é considerado crime — art.233 do Código Penal.

Agora, se um menor burlar a portaria de uma casa noturna e assistir um show erótico, vamos prender a striper?

“Ah, mas o cara viu a menina lá, tocando ele…”

Sim, ele viu. Mas a menina estava acompanhada e, à princípio, não se trata de nenhum espetáculo com sexo explícito ou pornográfico que impedisse uma criança, devidamente acompanhada, de estar presente. Mais que isso, o artista estava no exercício regular de um direito, o que exclui dele qualquer ilicitude — artigo 23, inciso III do Código Penal. Estar nu, em uma performance, por mais que suscite repulsa ou venha a ser considerado uma péssima arte, é um direito regular.

Ninguém mostrou nenhum ato que ultrapassasse a barreira e adentrasse a seara da erotização. A menina tocou sim, o artista, mas na perna, não na genitália. Não há relato de que ele tenha tido uma ereção ou algo do gênero, nem que ele tenha retribuído o toque. Portanto, legalmente, não há crime nenhum que o artista tenha praticado.

Se vocês quiserem procurar um, sugiro que tentem encontrar no ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas vai por mim que não tem. Algumas pessoas disseram que enquadraria no art.240 do ECA:

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente

Meio forçado, não? Não teve sexo nem pornografia — a não ser que nudez, por si só, seja considerado pornográfico. Aí, meu amigo, ficar nu em qualquer exame médico pode passar a ser perigoso.

Bem, vamos à responsabilidade da mãe. Aqui, sim, encontramos algum embasamento para os ávidos à jogar alguém na fogueira. Será?

Vamos começar já dizendo qual crime a mãe poderia ter cometido. E ele tá no código penal:

Art. 247 — Permitir alguém que menor de dezoito anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância:
(…)
II — freqüente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza;

É, parece que temos algo aqui. Em uma lei de 1940. Mas, antes de pegar as suas pedras, ou acender a fogueira, faça um exercício de empatia. Mais uma vez nós entramos em um terreno tortuoso e acabamos caindo em questões muito subjetivas. O espetáculo ali seria capaz de subverter uma criança? Ou de ofender-lhe o pudor?

Tudo bem, eu entendo a preocupação. Eu não levaria uma criança a tal espetáculo e muito menos à incentivaria a tocar um homem nu. Quem sabe não seja muito pedagógico e, talvez, como dizem muitos, você pode criar na criança uma impressão de que tocar homens nus não seja nada demais. Mas esta é uma opinião pessoal minha e, por mais que eu não considere correto, não vejo, por outro lado, nenhuma implicação legal que possa punir estas pessoas.

E, não é porque eu quero ou que eu ache errado, que o direito deva ou irá punir alguém. O direito não se confunde com a moral. Somente o direito, somente a LEI pode restringir direitos, ou criminalizar condutas.

Para encerrar, e surpreender a grande maioria das pessoas, temos a responsabilidade da pessoa que gravou e divulgou o vídeo. Isto porque o ECA, no seu art.18, traz a seguinte redação:

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

E, ao expor a situação que, em tese, muitos acharam criminosa, outros acharam regulares mas de mal gosto, o vídeo e a imagem da criança se propagou por todas as redes sociais.

E, tal viralização pode expor a criança ao vexame e ao constrangimento, segundo a Promotoria de Interesses Difusos de Crianças e Adolescences de São Paulo. Tanto o é que o Ministério Público já solicitou à Google e ao Facebook que retirem do ar as imagens não borradas que não preservam, no entendimento do Promotor, a imagem da criança.

Pois é. Mais uma vez, damos a cara à tapa para expormos uma opinião pautada no regime legal vigente no Brasil. E, para variar, esse “parecer” não vai dar subsídios à grande maioria das pessoas que estão suscitando os debates nas redes sociais. Mas, como já desabafei no A ciência e a Sociedade, é o preço que se paga por expor cientificamente algo que atente à moral e os bons costumes (e não o direito!) de um país que, estranhamente, tem se mostrado cada vez mais conservador — pelo menos nas redes sociais.

Estou também divulgando a ciência do Direito lá no Youtube, tentando ser claro e acessível para todos os públicos. Se você quiser ver em vídeo mais sobre este assunto — ou outros, corre lá e se inscreve! Nas descrições dos vídeos você poderá encontrar toda a bibliografia e os materiais de apoio utilizadas para a elaboração do vídeo e deste artigo!

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Tassio Denker
Ciência Descomplicada

As palavras, sem cores. Preto no branco. Words, without colors. Black characters on white screen.