Royal Courts of Justice — photo by James Petts- — Flickr

Common law & Civil law

Traduz pra mim?

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Eu nunca sonhei em cursar Direito, ser advogado ou prestar concursos da carreira, mas sempre gostei de filmes com grandes julgamentos, debates inesquecíveis, reviravoltas incríveis e desfechos memoráveis nos Tribunais.

E quando falamos em filmes, principalmente àqueles que tivemos acesso em uma infância sem Netflix, Torrents e afins, temos que falar em TV aberta. E as nossas redes de TV aberta sempre priorizaram os filmes americanos. Também pudera: ninguém fez mais filmes que eles.

Tempo de matar, O Povo contra Larry Flint, Acima de qualquer suspeita, 12 homens e uma sentença são alguns filmes interessantes que mostram todo o suspense e glamour dos julgamentos americanos.

E nós, muitas vezes “contaminados” pela idealização destes filmes americanos, acabamos acreditando que muitos destes acontecimentos, como a testemunha surpresa que chega durante o julgamento, por exemplo, ou aqueles debates acalorados entre advogados são fatos corriqueiros em todos os tribunais.

Chegou a hora de bancar um momento meio Nerdologia e destruir seus sonhos: quase nada do que vemos nos Tribunais dos filmes americanos acontece. Muitas coisas, como a própria testemunha surpresa no Júri, são inclusive proibidas no Brasil.

Aliás, Tribunal do Juri, no Brasil, só para os crimes contra a vida (homicídio, aborto, instigação ao suicídio e infanticídio). Não espere ver advogados e promotores se digladiando em audiências sobre crimes de roubo ou furto. Muito menos advogados discusando passionalmente para jurados a respeito dos danos morais que uma empresa causou em seu cliente.

Aqui, com raras exceções, quase tudo é escrito. Como a lei. Até porque porque só é lei se estiver escrito. Codificado. E isso faz todo sentido ̶b̶i̶o̶l̶ó̶g̶i̶c̶o̶ jurídico!

É que o sistema jurídico que vigora na nossa terrinha é conhecido como civil law e prioriza as normas escritas, as leis, enquanto nos Estados Unidos e na Inglaterra, por outro lado, adotam um regime conhecido como common law, que priorizam, por outro lado, regras não escritas, os costumes.

De um lado, a tradição romano-germânica; de outro, o quase milenar sistema anglo-saxônico:

O mundo em sistemas jurídicos

Um mundo dividido? Calma: não há uma luta ou um embate. Na verdade, trata-se apenas de demonstrar quais nações usam essas diferentes formas de de regime jurídico. E, historicamente, estas duas formas foram as que mais se desenvolveram e hoje estão presentes na maior parte dos países.

Os romanos foram os pioneiros no estudo do Direito como um conjunto de regras e técnicas específicas, bem como na codificação de leis e, lá pelos séculos XII e XIII a Europa estava começando a desenvolver um sistema mercantilista, as cidades estavam crescendo e foi necessário separar o Direito da religião e trazer mais segurança jurídica para os negócios.

Com a cissão e a formação dos diversos estados europeus, ocupando o que antes fora do Império Romano e posteriormente do Sacro Império Romano Germano, estes países herdaram estas técnicas e a forma de legislativa, colocando criação das leis como fundamentais para o desenvolvimento dos seus sistemas de solucionar os conflitos.

Mais tarde, com a Revolução Francesa e os movimentos constitucionalistas (que foram mencionados aqui) e a ruptura com os sistemas absolutistas, a lei passou a ser vista como a grande ferramenta para a conquista da liberdade e da igualdade. Todos seriam iguais, perante a lei. E todos estariam sujeitos à lei, inclusive os reis e presidentes. A lei seria a certeza jurídica, a garantia do Estado no respeito aos direitos dos seus governados, limitando os poderes e garantido direitos.

Com isso, estes Estados — e o próprio Brasil, colonizado por Portugal — desenvolveram seus regimes legais com base na lei. Por isso, mais e mais códigos foram sendo editados, como a base de todo o sistema legal. Se algum costume funciona, vira lei.

Se definirmos o Direito como o estudo e a aplicação das normas, poderíamos dizer que a principal fonte normativa do Brasil e dos países que adotam o civil law é a lei.

Já nos países que adotam o common law, a história é um pouco diferente. Lá, a base do sistema jurídico são as regras não escritas, o costume, a lei comum que, por seguinte, formam os precedentes judiciais.

Temos que fazer uma ponderação importante: tanto o civil law quanto o common law podem ter nos costumes a origem ou a inspiração das suas normas (leis ou precedentes).

Enquanto no primeiro (civil) as tretas geram uma discussão que vai ser levada para o legislador criar leis que possam resolver estes problemas, no segundo caso (common), as confusões são levadas diretamente aos tribunais, onde juízes decidem diretamente os casos, com base nos costumes.

A diferença, é que estas decisões criam os precedentes judiciais, que passam a ser a principal fonte do Direito deles, enquanto aqui, é a criação de uma lei que vai ser fundamental. E esta lei pode inclusive ter o costume como sua base ou inspiração.

É com base nos precedentes, julgamentos já feitos, que os juízes decidem nos países que adotam o common law. Por isso, os estudos de casos são importantíssimos e fundamentais para quem quer operar o direito nestes países, enquanto aqui, o mais importante é o conhecimento da estrutura e do teor das leis.

E existem leis nos países que adotam o common law? Sim, muitas! Inclusive, em 1999, foi elaborado e entrou em vigor o Código de Processo Civil inglês, ou The Civil Procedure Rules, para os íntimos. Só que a diferença é que, mesmo havendo leis, elas tem um peso menor ou uma influência menor no sistema que as decisões.

E no civil law, tem precedentes? Tem sim senhor! O nosso código de processo civil de 2015, por exemplo, trouxe a questão dos precedentes (pois é, ele veio, mas veio por lei…) para dentro do nosso ordenamento. E, muito antes, também já tínhamos como fonte (não tão forte quanto à lei, mas importantíssima) a jurisprudência, que nada mais é que é o resultado de um conjunto de decisões judiciais, aplicações e interpretações das leis no mesmo sentido sobre uma mesma matéria. Em breve farei um artigo específico sobre precedentes e jurisprudências, pois estes assuntos merecem um texto à parte.

Se olharmos atentamente, veremos que há um movimento do common law em se aproximar do civil law, ao mesmo tempo que o civil law também está caminhando em direção ao seu primo de origem britânica. Lá em cima, no mapa, já pudemos ver que existem países que adotam regimes mistos, que equilibram as normas entre precedentes e leis.

E porque essa aproximação é boa? Basicamente, porque ambos os sistemas possuem algumas vantagens e desvantagens. E ao caminharmos por um sistema híbrido, talvez possamos ter uma eficácia maior em termos da aplicação do direito e da solução dos conflitos.

Algumas das vantagens do common law é a economia processual e a previsibilidade das decisões. Além de tramitarem mais rápidos os processos (afinal, os julgamentos se baseiam em decisões anteriores, já debatidos), neste sistema, os advogados conseguem, muitas vezes, aconselhar melhor seus clientes em casos que sejam semelhantes a outros já decididos judicialmente, pois eles têm uma probabilidade maior de obter o mesmo resultado.

E, um ponto importantíssimo também é o respeito por essas decisões, já que elas vinculam o próprio tribunal e os juízes de instâncias inferiores. Aqui no Brasil, como vemos, o plenário do STF decide de uma forma e, na semana seguinte, um Ministro da mesma Corte decide de forma contrária em processo semelhante, de forma monocrática (individual).

Por outro lado, a ausência de legislação ou da obrigação dos magistrados à obediência da lei, pode criar também situações de certa insegurança jurídica. Embora tenhamos citado a questão da previsibilidade, nada impede que um juiz no common law determine uma situação completamente diversa, substituindo o precedente atual por outro(overruled). E por algo que nem possamos imaginar ou prever — afinal, não há lei que exista para ser aplicada ou servir de guia.

Enquanto no common law o direito é criado e aperfeiçoado pelos magistrados, o nosso sistema dá preferência de ditar o direito ao Poder Legislativo, que é eleito democraticamente. Desta forma, ao sujeitar o juiz à lei, e não aos precedentes, temos a efetivação de um regime democrático também no Poder Judiciário.

Em outras palavras, o nosso sistema exige do juiz uma fundamentação com base na lei, criada por representantes do povo, enquanto lá, o magistrado pode fundamentar sua decisão em qualquer outro parâmetro.

Se lá existe uma previsibilidade maior das decisões, aqui temos uma previsibilidade maior das condutas em abstrato. Não precisamos praticar algo -ou esperar que alguém tenha praticado, e tenha sido submetido a um julgamento para sabermos se tal fato é ou não ilícito, pois a lei tem um caráter abrangente e genérico.

Existem inúmeras pequenas diferenças, com vantagens e desvantagens para cada sistema. Enquanto o common law é eminentemente fluido e variável, o nosso sistema é formal e dedutivo, muitas vezes engessado.

Por tal razão é que o intercâmbio, a aproximação dos dois sistemas é salutar à todos. Essa “hibridização” poderá trazer benefícios mútuos à todos os países, sem que seja necessário sacrificar suas histórias, tradições e seus séculos de desenvolvimento. É, antes de mais nada, um aperfeiçoamento mútuo.

Se a natureza já nos deu grandes exemplos de como a simbiose pode ser benéfica, porque não imitarmos o que já deu certo em bilhões de anos de evolução, e aprimorarmos nossos sistemas, equilibrando as leis e os precedentes?

Olá, tudo bem? Além de participar das publicações do Ciência Descomplicada, da Revista Subjetiva e da TRENDR, todas aqui no Medium, estou também me dedicando a divulgar a ciência do Direito lá no Youtube. Inclusive, você pode assistir ao tema deste artigo, mas em vídeo:

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Tassio Denker
Justiça

As palavras, sem cores. Preto no branco. Words, without colors. Black characters on white screen.