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“Cura gay” e o ativismo judicial

Em tempo: a homofobia e a ignorância têm cura!

Tassio Denker
9 min readSep 23, 2017

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Se depender das polêmicas — e das trapalhadas — jurídicas que vemos nos noticiários, será impossível ficar alguma semana sem assunto para abordar ou debater nestas linhas “mediúnicas” (desculpem o trocadilho, às vezes eu não me controlo).

Já que o assunto de hoje envolve a psicologia, antes de entrar no mérito eu preciso fazer uma confissão, para que os leitores compreendam um pouco do “estilo literário” ambíguo deste que vos fala: o eu-narrador destes artigos sofre de dupla personalidade.

É estranho, eu sei (e eu concordo). Sou tanto o que vos fala aqui de fora dos parenteses (e eu, que habito o imprevisível mundo entre estes dois caracteres). É de se esperar, vez ou outra, que quando eu abra um parenteses, eu acabe dando voz à um outro ser, mais sarcástico e menos ponderado, mais sincero e menos polido (vou levar isso como um elogio, hein).

Talvez minha dupla personalidade até tenha tratamento (qual é, não gosta de mim?), mas tem certas coisas que não tem tratamento. Não porque sejam uma doença ou uma patologia, muito pelo contrário. É porque simplesmente são o que são, sem que seja algo ruim ou que faça mal à qualquer pessoa, inclusive à ela mesma.

Mas a sociedade, sempre retrógrada e imbuída de um grau incrível de pseudo-cientificismo, de misticismo e muitas vezes de superstição, ainda crê que determinadas características sejam problema para alguém. Pobre do gato que nasceu preto.

A história, outra ciência, também nos mostra que, ciclicamente, nos deparamos com estas anomalias sociais. Há tempos atrás, ser canhoto era um problema muito sério. E essas coisas acabam sempre respigando no direito. Cesare Lombroso, conhecido como o “pai da criminologia”, chegou afirmar que aos canhotos faltam senso sobre a moral, sendo estes mais suscetíveis às psicopatias, à criminalidade e à violência. Lombroso era médico.

Cesare Lombroso

E assim, assutados com as voltas que esse mundo já deu (e continua dando) chegamos à questão (que só é polêmica porque falta bom senso e vontade de estudar para muitas pessoas) da homossexualidade. Para falar a real, eu nem vou perder meu tempo falando sobre a questão, senão ressaltar que não se trata, sob hipótese nenhuma, de qualquer tipo de problema de saúde ou de patologia.

Se você tiver interesse em saber mais sobre o assunto, recomendo muitíssimo esse vídeo, do Pirula (Paulo Miranda Nascimento), que é biólogo e paleontólogo, mestre e doutor pela USP, que explica, bem certinho, praticamente tudo sobre o assunto. O vídeo tem cerca de 30 minutos de duração, mas resume bem décadas de estudos científicos e coloca, parafraseando o próprio vídeo, um ponto final da questão. Vale mesmo à pena assistir. Eu até espero.

O que vamos discutir hoje é até que ponto pode o Poder Judiciário interferir não somente em outros Poderes Constitucionais como interferir também nas ciências?

Este problema, que não é atual, tem até um nome: ativismo judicial.

O ativismo judicial é um fenômeno jurídico que costuma designar a interferência de maneira regular e significativa nas opções políticas dos demais Poderes — Legislativo e Executivo. É um tema bastante polêmico e que, hoje, ganha mais um pequeno contorno — pois interfere também nas opções científicas das classes.

Isto porque o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal interferiu na esfera de atuação de uma ciência — a Psicologia — ciência esta que, segundo consta (ou melhor, não consta!) o Magistrado não possui formação. Mais que isso: o magistrado também interferiu na esfera do Poder Legislativo, uma vez que as atribuições da profissão do Psicólogo devem ser disciplinadas, conforme a Lei Federal 5.766/71, pelo Conselho Federal de Psicologia.

Trocando em miúdos, existe uma Lei Federal que diz que quem disciplina o exercício da profissão de Psicólogo é o Conselho Federal de Psicologia e, mesmo assim, um Juiz de Direito (que não tem formação em psicologia, tampouco é inscrito ou membro do mencionado Conselho) decidiu, por sua conta e risco, o que um psicólogo pode ou não deixar de fazer. Ou seja: decidiu contra uma lei. Contra o Legislativo.

Vou explicar um pouco melhor: todas as ciências, em especial às que são profissionalizadas no Brasil, são regulamentadas e fiscalizadas por um grupo de cientistas da sua própria área. Esse poder regulador e fiscalizador foram estipuladas por lei federal — temos a lei que cria o CREA, para as engenharias, a OAB, para os advogados, o CFM, para a medicina, e por aí vai.

E porque são os próprios cientistas, das próprias classes, que compõem e regulam suas profissões? Vou responder com outra pergunta: imagina se fossem os nossos deputados que as regulassem? Deu pra imaginar quantos prédios já teriam desabado? Quantas cirurgias teriam fracassado?

Óbvio que estas regulações devem ser feitas por cientistas das suas respectivas áreas. Não seria nem um pouco indicado que engenheiros regulamentassem cirurgias do aparelho digestivo, assim como não é nem um pouco seguro que médicos editem normas técnicas de construção civil.

E, da mesma forma, não pode um juiz de direito interferir em uma seara à qual o mesmo é um completo estranho. Não é nem função dele — a própria lei diz quem tem tal poder. Se existem resoluções e essas resoluções merecem ser discutidas, elas devem ser discutidas dentro dos Conselhos específicos, com cientistas de formação compatível, para revogarem ou reformarem estas resoluções.

No caso específico, o Juiz determinou “uma nova interpretação” da resolução 01/1999, firmado pela então Presidente, a conselheira Ana Mercês Bahia Bock, cujo currículo lattes, você encontra aqui. Os demais conselheiros da Gestão 1998/2001 do Conselho Federal de Psicologia, você encontra aqui.

Vá até o Google, ou mesmo ao lattes, e busque pelos currículos acadêmicos dos demais membros do Conselho Federal de Psicologia daquela época. E pode procurar também de todos os demais conselheiros, das gestões seguintes, até os dias atuais, já todas elas também não modificaram a resolução.

Viste? Diversos mestres e doutores. Pós-doutores. Autores de livros acadêmicos. Autores de diversos estudos científicos nas áreas psicológicas. E aí, eu te pergunto: Você sabe mais que eles sobre esse assunto? Eu sei que nada sei. E será que o Juiz sabe mais que eles sobre esse o assunto?

Tá, mas vamos nos focar mais no direito mesmo. A decisão, proferida pelo Juiz, é em caráter liminar e pode ser cassada, à qualquer momento, pelos Tribunais superiores ou mesmo pelo próprio juiz — inclusive se ele julgar a ação como improcedente. Dai, os efeitos dessa decisão são extintos.

Mas como ainda é válida e, como qualquer decisão (aí é que entramos um pouco da ciência do direito), estas devem conter, necessariamente, um relatório, uma fundamentação e um dispositivo.

O relatório nada mais é do que um breve resumo da ação, dos fatos acontecidos e relevantes durante o trâmite do processo. Logo depois, o Juiz coloca os argumentos — prós e contrários — na mesa, bem como os fundamentos jurídicos que embasarão a decisão. Essa é a fundamentação. E, por fim, temos a parte dispositiva da decisão, que é onde o juiz profere, de forma mandamental, constitutiva, declaratória ou condenatória, o que deve ser feito.

Lendo com bastante atenção à decisão do Juiz, é necessário afirmar que o magistrado foi bastante técnico e atencioso, chegando a fixar, entre as premissas da sua fundamentação, que a homossexualidade não pode ser considerada condição patológica. Também teceu críticas ao projeto de lei denominado “cura gay” e, por fim, trouxe um dos fundamentos da nossa Constituição Federal, que é a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística e científica.

Depois, o magistrado citou (Ctrl+C — Ctrl+V) a resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia. Até aí, tudo bem.

Só que, depois disto, o mesmo afirma que:

“…se mal interpretados, podem levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação e reorientação sexual”.

Mais grave que isso, o juiz ainda disse que a liberdade científica e a plena realização da dignidade da pessoa humana não podem ser desrespeitados pela resolução.

Aí, o juiz decidiu que não se deve privar o psicólogo de estudar ou atender aqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade. Por fim, ele decide também que não se deve impedir os psicólogos de “promoverem estudos ou atendimento profissional, pertinente à (re)orientação sexual, garantido-lhes, a plena liberdade científica da matéria”.

Vamos com calma, agora. Percebe-se que o juiz entendeu que a resolução impunha duas censuras aos psicólogos: o estudo da sexualidade, como patologia; e o tratamento da sexualidade, também como patologia.

Com relação à questão do estudo, creio que se a decisão se referisse tão somente à esse ponto, não seria um problema tão sério. Até porque já existem milhares de estudos científicos sérios e todos eles concluem que a homossexualidade não é uma patologia. Prova disso é que desde 1990, a Organização Mundial de Saúde excluiu do CID a homossexualidade.

Estudos sérios, portanto, levariam os psicólogos às mesmas conclusões. Quer estudar? Ótimo, atenda as pessoas, colete dados, faça entrevistas mas, de forma alguma efetue ou tente impor um tratamento de algo que a ciência — tanto a medicina quanto à psicologia — não dizem ser doença.

O problema maior é a segunda parte da decisão. O juiz, mesmo tendo feito um relatório bonitinho, uma fundamentação com muitos pontos acertados, escorregou e permitiu que os psicólogos façam a “reorientação” sexual”. Reorientação é só um nome menos chocante para “cura gay”. Tem gente bradando, nas redes sociais, que o juiz não disse nenhuma vez “cura gay”. Não precisa — existem sinônimos.

Sabe aquele lance, nos EUA, de querer incluir o criacionismo nos currículos de ciências? Deu errado. Mas o que eles fizeram? Trocaram o nome, para Design Inteligente. Ainda bem que lá, essa não pegou. Os juízes não foram tapeados. Mas aqui, ao trocarem o nome de cura gay para reorientação sexual, até mesmo um juiz de direito, em um mesmo documento, após criticar a cura gay, deu um ok para a reorientação sexual.

E a maior ironia do destino? Ainda usou a dignidade da pessoa humana, como fundamento!

Agora veja isto: em um relatório baseado em dois anos de pesquisas, 150 profissionais afiliados ao APA — Associação Americana de Psicologia — manifestaram firme oposição à chamada “terapia reparadora”(outro sinônimo, fiquem espertos!), que busca a mudança de orientação sexual. O relatório afirma que não há evidência sólida de que essa mudança seja possível. Pelo contrário: o relatório indica até mesmo que esse tipo de esforço pode induzir à depressão, ansiedade e a tendências suicidas:

“We found that there was some evidence to indicate that individuals experienced harm from SOCE. Early studies documented iatrogenic effects of aversive forms of SOCE. These negative side effects included loss of sexual feeling, depression, suicidality, and anxiety.”

SOCE é a sigla que designa “sexual orientation change efforts

Vamos brincar de analogias? Imagina que um engenheiro quer construir castelos de areia para pessoas morarem. O que, evidentemente, deve contrariar as normas técnicas editadas pelo CREA a respeito da construção civil. Mas aí ele entra na justiça e bingo: o juiz autoriza ele a construir! E com base no princípio constitucional do direito à moradia!

É preciso, às vezes, ir ao extremo e ser sarcástico — mesmo fora dos parenteses — para fazer-se perceber o absurdo à que estamos sujeitos (eu também tenho outra: você que é canhoto, já pensou em fazer um tratamento psicológico para se tornar destro?)

Não é de hoje que se fala no risco de cairmos em uma “ditadura do judiciário”. Particularmente, não acredito nisso. Mas vejo com preocupação algumas decisões que parecem não somente interferir em outros Poderes, como também interferir dentro das próprias ciências.

Por fim, é necessário concluir este já extenso artigo, dizendo que a plena liberdade científica alegada pelo juiz é uma verdadeira ameaça, pois pode gerar alguns monstros, como as experiências dos nazistas nos campos de concentração, ou outras questões ainda mais recentes, como a clonagem humana. Existem sempre questões éticas que precisam ser ponderadas a respeito das técnicas científicas.

A liberdade científica é como o direito à liberdade de expressão, à propridedade, enfim, à qualquer outro direito: ele se limita pelas fronteiras que, se ultrapassadas, podem ferir os direitos alheios (e desta vez eu concordo com você, ou comigo, ou, sei lá!).

Estou também divulgando a ciência do Direito lá no Youtube, tentando ser claro e acessível para todos os públicos. Se você quiser ver em vídeo mais sobre este assunto — ou outros, corre lá e se inscreve! Nas descrições dos vídeos você poderá encontrar toda a bibliografia e os materiais de apoio utilizadas para a elaboração do vídeo e deste artigo!

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Tassio Denker
Ciência Descomplicada

As palavras, sem cores. Preto no branco. Words, without colors. Black characters on white screen.