E se #3: autofertilização

ou: ter um filho de si mesmo

Andre Mazzetto
Ciência Descomplicada
5 min readSep 6, 2017

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Este mês, na nossa sessão de perguntas (quase sempre) impossíveis, vamos falar de autofertilização. Há algum tempo os cientistas estão tentando produzir espermatozoides a partir de células tronco da medula óssea. Alguém com (muita) imaginação, perguntou:

E se uma mulher pudesse criar espermatozoides de suas próprias células tronco e fecundasse seu próprio óvulo com este espermatozoide. Qual seria a relação dela com sua filha?

Vamos começar do começo:

Pra fazer um ser humano, é preciso unir dois conjuntos de DNA. Os dois conjuntos encontram-se em um espermatozoide, do pai, e em um óvulo, da mãe. Pergunte pros seus pais ou pro Google como se faz pra unir os dois.

Detalhe importante: quem fez a pergunta começou já acertando. Se uma mulher sofrer autofertilização, a criança gerada será uma menina, já que apenas serão gerados espermatozóides com cromossomo X, sem nenhum com o cromossomo Y.

Até hoje, apenas um grupo de pesquisa afirmou em 2009 que havia dado um passo neste sentido e produzido espermatozoides funcionais a partir de células tronco. Os problemas:

Primeiro: na verdade eles nunca disseram que haviam produzido espermatozoides, mas sim células similares a espermatozoides. Como já sabemos, jornalistas não ligam pra isso e colocaram nas capas dos jornais que eram espermatozoides mesmo. Vende mais jornal.

Segundo: houve uma retratação, pois descobriram que os autores haviam plagiado uma parte do artigo.

Apesar disso, a pergunta é sim relevante. Vamos então ver como ficaria a genética neste caso de uma forma simples…pelo menos pra fãs de RPG. Hora de começar Cromossomos: Edição Dungeons and Dragons (D&D).

Se você não sabe o que é isso, você ainda não atingiu o potencial máximo da vida.

Nosso DNA é organizado em 23 pares de segmentos, chamados cromossomos. Cada cromossomo carrega várias características diferentes. Nesta nossa versão vamos supor apenas 7 cromossomos, sendo que cada um carrega apenas uma característica. Vamos aos atributos dos nossos personagens, por número de cromossomo:

1) Força

2) Constituição

3) Destreza

4) Carisma

5) Sabedoria

6) Inteligência

7) Sexo

Cada cromossomo possui um pedaço de informação (número de 1 a 18) ou um multiplicador (1x, 2x, etc). O último atributo é o que define o sexo do nosso personagem. Lembrando que no atributo SEX mulheres são XX, homens são XY. Um exemplo de um filamento de DNA:

1) FOR 15

2) CON 12

3) DES 1x

4) CAR 12

5) SAB 0,5x

6) INT 14

7) SEX X

No exemplo acima, o filamento pode ser tanto de homem quanto de mulher, pois ambos tem X. Se houvesse um Y no sétimo cromossomo, necessariamente seria um homem.

Agora as regras de RPG: se você tiver um número nos dois filamentos dos seus cromossomos, seu atributo será o número maior. Se você tiver um número em um filamento e um multiplicador em outro, seu atributo será o resultado da multiplicação. Se tiver um multiplicador dos dois lados, o resultado será 1 (neutro multiplicativo). Conheçam Alice:

Como vocês viram, quando um progenitor entra com um número e outro entra com um multiplicador (atributos CON, DES, CAR e SAB), o resultado é excelente. Os atributos de Alice são ótimos.

Digamos que ela agora conheça nosso outro personagem, o Bob:

Bob também tem atributos bons. Se eles resolverem ter um filho, cada um vai entrar com um filamento do seu DNA, que será uma combinação aleatória dos DNAs do pai e da mãe.

Vamos dizer que o óvulo de Alice é:

Entre parênteses: os números aleatoriamente escolhidos para o óvulo

Agora, o espermatozoide de Bob:

Entre parênteses: os números aleatoriamente escolhidos para o espermatozóide

Se espermatozoide e óvulos se combinarem, teremos:

Agora sim, a criança tem a força da mãe e a sabedoria do pai.

Vejamos então se Alice tivesse uma filha sozinha. Vamos dizer que Alice tenha o mesmo óvulo em relação ao exemplo anterior. Temos que fazer a combinação aleatória para o “espermatozoide” de Alice:

Entre parênteses: os números aleatoriamente escolhidos para o espermatozóide

Agora, juntamos óvulo e “espermatozoide”, ambos da mesma pessoa, no caso, Alice

Como já vimos, a criança será mulher, porque não tem ninguém para entrar com o cromossomo Y. O problema desta criança é que ela herdou algumas características (INT, DES e CON) iguais. Em CON ela herdou um multiplicador dos dois lados, o que deixou seu atributo baixo (1).

Se alguém fabrica um filho por conta própria, cresce a probabilidade da criança herdar atributos repetidos. Se ela for azarada mesmo, pode ter todos os mesmos atributos dos 2 lados, o que chamamos de homozigosidade.

Nos humanos é um pouco mais complicado, porque cada cromossomo contém MUITA informação. Além, disso, mutações surgem por todos os cantos. Muitas doenças estão relacionadas com a homozigosidade, como amiotrofia espinhal (AME). Ao evitar a endogamia (cruzamentos entre parentes próximos), a população reduz a chance de mutações estranhas e danosas surjam no mesmo lugar dos dois lados do cromossomo.

Respondendo então a pergunta inicial: A criança seria um clone da mãe, com avarias genéticas graves.

A endogamia ficou famosa na Dinastia Européia dos Habsburgo, uma família de governantes europeus que resolveu manter sua linhagem “pura”. Ocorriam normalmente casamentos entre primos e irmãos, o que culminou com o nascimento do Rei Carlos II da Espanha.

Ta aí a simpatia, Carlos II.

Carlos sofria de várias debilidades físicas e emocionais. Além disso era bastante incompetente e, veja aí a ironia, estéril. Isso acabou com a linhagem real dos Habsburgo.

Não é uma boa idéia se auto-fecundar…não mesmo.

Adaptado e inspirado em “E se? — Randall Munroe”

Mate a sua curiosidade lendo todos os textos desta série neste link!

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Andre Mazzetto
Ciência Descomplicada

Biólogo, um cientista que não é movido a café. Entusiasta da Ciência e da Educação. Editor e autor do blog Ciência Descomplicada.