Um universo que se expande e esfria hoje, como o nosso, deve ter sido mais quente e mais denso no passado. Inicialmente, o Big Bang era considerado a singularidade da qual surgiu esse estado final, quente e denso. Mas sabemos melhor hoje. Crédito: NASA/GSFC.

O Big Bang não foi o começo, afinal

Por que você não pode extrapolar de volta à uma singularidade.

Marcos Oliveira
Ciência Descomplicada
7 min readOct 23, 2017

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Texto originalmente publicado por Ethan Siegel. Leia o original (em inglês) aqui

“Apesar do seu nome, a teoria do big bang não é realmente uma teoria do ‘início’. Ela é na verdade apenas uma teoria das consequências de um ‘início’.” — Alan Guth

O universo começou não com um gemido, mas com um estrondo! Pelo menos, é o que normalmente dizem: o universo e tudo o que existe nele surgiram no momento do Big Bang. O espaço, o tempo e toda a matéria e energia começaram a partir de um ponto singular, e depois expandiram-se e resfriaram-se, dando origem a bilhões de anos de átomos, estrelas, galáxias e aglomerados de galáxias espalhados por muitos bilhões de anos-luz que compõe nosso universo observável. É uma visão atraente e bonita que explica o que vemos, da atual estrutura em grande escala dos dois trilhões de galáxias do universo até o brilho restante da radiação que permeia toda a existência. Infelizmente, isso também está errado, e os cientistas sabem disso há quase 40 anos.

Vesto Slipher foi o primeiro a notar que a galáxia mais distante é, em média, a que mais rápido se observa afastar-se de nós. Durante anos, essa explicação desafiadora, até as observações do Hubble, nos permitiu juntar as peças: o universo estava se expandindo. Crédito: Vesto Slipher, (1917): Proc. Amer. Phil. Soc., 56, 403.

A ideia do Big Bang surgiu nas décadas de 1920 e 1930. Quando olhamos para as galáxias distantes, descobrimos algo peculiar: quanto mais longe elas estavam de nós, mais rápido elas pareciam estar se afastando. De acordo com as previsões da Relatividade Geral de Einstein, um universo estático seria gravitacionalmente instável; tudo o que precisaria para se afastar um do outro ou colapsar um para o outro se o tecido do espaço obedecesse às leis dele. A observação dessa aparente recessão nos ensinou que o universo estava se expandindo atualmente, e se as coisas estão se afastando com o passar do tempo, significa que elas estavam mais próximas no passado distante.

Se você olha ainda mais longe, você também olha ainda mais para o passado. Quanto mais no início você for, mais quente e denso, além de menos evoluído, o universo será. Crédito: NASA/STScI/A. Felid.

Um universo em expansão não significa apenas que as coisas ficam mais distantes à medida que o tempo passa, também significa que a luz existente no universo se estende em comprimento de onda enquanto viajamos para a frente no tempo. Uma vez que o comprimento de onda determina a energia (mais curto possui mais energia), isso significa que o universo esfria à medida que envelhecemos e, portanto, as coisas estavam mais quentes no passado. Extrapole isso suficientemente para trás [no tempo], e você chegará a um momento em que tudo estava tão quente que nem mesmo os átomos neutros poderiam se formar. Se isso estivesse correto, deveríamos ver um brilho restante da radiação atualmente, em todas as direções, que se resfriou apenas alguns graus acima do zero absoluto. A descoberta desta Radiação Cósmica de Fundo, em 1964, por Arno Penzias e Bob Wilson, foi uma confirmação do Big Bang de tirar o fôlego.

De acordo com as observações originais de Penzias e Wilson, o plano galáctico emitiu algumas fontes astrofísicas de radiação (centro), mas acima e abaixo tudo o que restava era um fundo de radiação quase perfeito e uniforme. Crédito: NASA/WMAP Science Team.

É tentador, portanto, continuar extrapolando para trás no tempo, quando o universo foi ainda mais quente, mais denso e mais compacto. Se você continuar a voltar, encontrará:

1. Um momento em que era muito quente para formar núcleos atômicos, onde a radiação era tão quente que qualquer ligação próton-nêutron seria destruída.

2. Um momento em que a matéria e os pares de antimatéria poderiam se formar espontaneamente, pois o universo tem tanta energia que os pares de partículas/antipartículas podem ser criados espontaneamente.

3. Um momento em que os prótons e os nêutrons individuais se dividem em um plasma de quark-glúon, pois as temperaturas e densidades são tão altas que o universo se torna mais denso que o interior de um núcleo atômico.

4. E, finalmente, um momento em que a densidade e a temperatura se elevam a valores infinitos, e como toda a matéria e a energia no universo estão contidas em um único ponto, [temos]: uma singularidade.

Este ponto final — essa singularidade que representa onde as leis da física se desintegram — também é entendido como representando a origem do espaço e do tempo. Essa foi a ideia final do Big Bang.

Se extrapolarmos todo o caminho, chegaremos nos estados anteriores, mais quentes e mais densos. Isso culmina em uma singularidade, onde as leis da própria física se quebram? Crédito: NASA/CXC/M.Weiss.

Claro, tudo, exceto o último ponto, foi confirmado como verdadeiro! Nós criamos plasmas quark-glúon no laboratório; criamos pares de matéria-antimatéria; fizemos os cálculos para quais elementos leves devem formar e em quais quantidades durante os estágios iniciais do universo, medimos e descobrimos que eles combinavam com as previsões do Big Bang. Avançando ainda mais longe, medimos as flutuações na Radiação Cósmica de Fundo e vimos como as estruturas ligadas gravitacionalmente, como estrelas e galáxias, se formam e crescem. Em todos os lugares que olhamos, encontramos um tremendo acordo entre teoria e observação. O Big Bang parece ser um vencedor.

As flutuações de densidade na Radiação Cósmica de Fundo fornecem as sementes para a estrutura cósmica moderna, incluindo estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, filamentos e vazios cósmicos de grande escala. Crédito: Chris Blake e Sam Moorfield.

Exceto, ou seja, em alguns aspectos. Três coisas específicas que se esperaria do Big Bang não aconteceram. Em particular:

1. O universo não tem temperaturas diferentes em direções diferentes, mesmo através de uma área de bilhões de anos-luz de distância em uma direção, nunca teve tempo (desde o Big Bang) para interagir ou trocar informações com uma área de bilhões de anos-luz na direção oposta.

2. O universo não tem uma curvatura espacial mensurável diferente de zero, embora um universo perfeitamente espacial requer um equilíbrio perfeito entre a expansão inicial e a densidade de matéria e radiação.

3. O universo não tem nenhuma relíquia de energia ultra-alta restante [como resquício] desde os tempos mais antigos, embora as temperaturas que teriam criado essas relíquias de fato existiram se o universo fosse arbitrariamente quente.

Os teóricos que pensavam nesses problemas começaram a procurar alternativas a uma “singularidade” para o Big Bang e, em vez disso, que poderiam recriar aquele estado quente, denso, em expansão e resfriando, evitando esses problemas. Em dezembro de 1979, Alan Guth atingiu uma solução.

Em um universo em inflação, há energia inerente ao próprio espaço, causando uma expansão exponencial. Há sempre uma probabilidade não nula de que a inflação terminará (denotada por um ‘X’ vermelho) a qualquer momento, dando origem a um estado quente e denso onde o universo está cheio de matéria e radiação. Mas em regiões onde não termina, o espaço continua a inflar. Crédito: E. Siegel / Além da Galáxia.

Em vez de um estado arbitrariamente quente e denso, o universo poderia ter começado a partir de um estado onde não havia matéria, sem radiação, sem antimatéria, sem neutrinos e sem partícula nenhuma. Toda a energia presente no universo preferiria estar ligada ao tecido do próprio espaço: uma forma de energia do vácuo, fazendo com que o universo se expanda a uma taxa exponencial. Neste estado cósmico, as flutuações quânticas ainda existiriam, e assim que o espaço se expandisse essas flutuações seriam esticadas pelo universo, criando regiões com densidades de energia ligeiramente superiores ou ligeiramente inferiores à média. E, finalmente, quando essa fase do universo — esse período de inflação — chegou ao fim, essa energia seria convertida em matéria e radiação, criando o estado quente e denso, sinônimo do Big Bang.

As flutuações quânticas inerentes ao espaço, espalhadas pelo universo durante a inflação cósmica, originaram as flutuações da densidade impressas na Radiação Cósmica de Fundo, que por sua vez deu origem às estrelas, galáxias e outras estruturas em larga escala no universo atual. Crédito: E. Siegel, com imagens derivadas da ESA/Planck e da força tarefa das interagências DoE/NASA/NSF em pesquisas sobre RCFM.

Isso foi considerado como uma ideia convincente-mas-especulativa, porém havia uma maneira de testá-la. Se pudéssemos medir as flutuações do brilho restante [a Radiação Cósmica de Fundo] do Big Bang, e eles exibirem um padrão particular consistente com as previsões da inflação, isso seria uma “evidência irrefutável” para a inflação. Além disso, essas flutuações teriam que ser muito pequenas em magnitude: pequenas o suficiente para que o universo nunca tenha atingido as temperaturas necessárias para criar relíquias de alta energia, e muito menores que as temperaturas e densidades onde o espaço e o tempo pareceriam emergir de uma singularidade. Nas décadas de 1990, 2000 e, novamente, em 2010, medimos essas flutuações detalhadamente e descobrimos exatamente isso.

As flutuações na Radiação Cósmica de Fundo, medidas pelo COBE ¹ (em grandes escalas), WMAP ² (em escalas intermediárias) e Planck ³ (em pequenas escalas), são consistentes com não apenas decorrentes de um conjunto invariante de flutuações quânticas, mas de ser tão baixa em magnitude que não poderia ter surgido de um estado arbitrariamente quente e denso. Crédito: equipe de ciência da NASA/WMAP.

A conclusão era inescapável: o Big Bang quente definitivamente aconteceu, mas não se estendeu todo o caminho de volta a um estado arbitrariamente quente e denso. Em vez disso, o início do universo passou por um período de tempo em que toda a energia que estaria na matéria e na radiação presentes hoje, estava ligada ao tecido do próprio espaço. Esse período, conhecido como inflação cósmica, chegou ao fim e deu origem ao Big Bang quente, mas nunca criou um estado arbitrariamente quente e denso, nem criou uma singularidade. O que aconteceu antes da inflação — ou se a inflação era eterna para o passado — ainda é uma questão aberta, mas uma coisa é certa: o Big Bang não é o começo do universo!

Nota do tradutor:

[1]: COBE (Cosmic Background Explorer), ou Explorador do Fundo Cósmico, foi o primeiro satélite dedicado exclusivamente ao estudo da Cosmologia. Seu principal objetivo era investigar a Radiação Cósmica de Fundo, e o fez tão bem que revolucionou nosso entendimento sobre o início do universo e confirmou, como o Ethan disse, muitas previsões da teoria inicial do Big Bang. Saiba mais: https://science.nasa.gov/missions/cobe

[2]: WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe) é uma sonda espacial da NASA que procura estudar e medir as diferentes temperaturas que observamos na Radiação Cósmica de Fundo nas profundas distâncias do espaço. Saiba mais: https://map.gsfc.nasa.gov/

[3]: Planck é uma sonda espacial da ESA (Agência Espacial Europeia) muito sensível que mede uma ampla gama de comprimentos de onda do infravermelho e com uma precisão sem precedentes. Saiba mais: http://sci.esa.int/planck/

Veja todas as traduções neste link.

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Marcos Oliveira
Ciência Descomplicada

Agora faço divulgação científica em: www.universodeparticulas.com.br. Uso esse espaço para desabafos e reflexões